Economia

O crescimento da economia solidária na década de 1990 assume uma dimensão estratégica de acúmulo social que leva a rupturas com padrões do pensamento político de esquerda

Nos últimos anos, tem havido uma busca de novas formas econômicas alternativas orientadas para introduzir relações de cooperação e solidariedade no cenário de intensa fragmentação social e territorial. A economia solidária, como tem sido enunciada, expressa-se pelo surgimento de uma imensa quantidade e variedade de atividades e de organizações econômicas, por meio das quais numerosos setores populares têm desenvolvido iniciativas pessoais, familiares, associativas e comunitárias com que têm gerado uma economia popular incrivelmente variada.

Ainda que não seja um processo recente e possamos identificar historicamente o surgimento de formas de cooperação econômica entre os trabalhadores1, o crescimento de organizações econômicas de base na década de 90 assume uma dimensão de acúmulo social e estratégica que caracteriza rupturas com padrões do pensamento político de esquerda.

Quem são as novas forças sociais no campo econômico popular?A primeira ruptura está em trazer para o campo econômico a reflexão sugerida pelos movimentos sociais na década de 70, com os novos atores entrando em cena, como afirmava Eder Sader. Também no campo econômico afirma-se a presença de novas energias utópicas voltadas para a construção e a disputa de projetos – em termos de valores éticos e políticos – de radicalidade democrática, da constituição de novos direitos, da socialização da política, de novas identidades territoriais, de uma noção ampliada de esfera pública.

Da mesma forma que as associações de moradores surgiram na década de 50, mas têm seu papel realçado nos anos 70 pela crise das cidades e a incapacidade da organização social capitalista em dar resposta às necessidades básicas de uma vida digna, o crescimento destas formas de organização econômica populares expressam profundos processos de transformação social que permitem que leitos subterrâneos possam emergir com a força de rios caudalosos.

As novas organizações de base econômica popular2 – redes econômicas, associações de produtores, cooperativas – emergem com maior força na economia urbana. Com uma história de cooperativismo já construída em áreas rurais, a dinamização de uma economia popular nas áreas urbanas surgiu por fora das ações sindicais e das associações de moradores. As lideranças sindicais, por restringirem sua ação ao campo do emprego formal, freqüentemente se opunham à formação de uma cooperativa, identificada como desvio ideológico, abandono da trincheira por parte daqueles que queriam se transformar em patrões, ou ainda fortalecimento de caminhos da precarização do trabalho.

A compreensão do papel destes novos atores levou a um debate conceitual sobre economia popular e solidária. Coraggio3, no início dos anos 90, identificava a economia popular a partir das unidades econômicas familiares. Há um certo sentido nesta identificação, à medida que muito dos núcleos de economia popular nascem de relações familiares e se estendem por relações de cooperação em determinado território. Mas estas novas organizações populares não se reduzem apenas a organizações econômicas de base familiar, abrangem também as diferentes organizações de subsistência urbanas e rurais, formas cooperativas e autogestionárias, experiências comunitárias e associativas de recuperação e desenvolvimento de artesanato, iniciativas tecnológicas alternativas e socialmente apropriadas e variadas iniciativas que surgem das atividades de educação popular, capacitação, desenvolvimento local e comunitário.

Singer identifica a empresa solidária a partir das formas de organização autogestionárias e cooperativas. Contudo, o debate não pode se limitar ao formato organizacional – cooperativas, unidades domésticas, rede de pequenos empreendedores – mas deve incluir também a compreensão do que esta transformação social significa. O cenário – o esgotamento de um padrão de acumulação capitalista no qual as sociedades e economias enfrentam uma série de mudanças e problemas que obrigam a repensar o desenvolvimento econômico, a função pública, as relações entre os setores público e privado, a organização do Estado – envolve oportunidades e ameaças. Como problema fundamental: o crescimento do desemprego e a separação entre o crescimento econômico e a criação de emprego. Como oportunidade, a capacidade de uma ação dos sujeitos sociais no sentido de construção de uma economia alternativa.

A construção desta economia alternativa envolve não só as redes de economia solidária que têm se constituído nestes últimos anos, mas também suas atividades e processos, que vão além do especificamente organizacional e acolhem a noção de solidariedade, indo além de um debate especificamente econômico. O surgimento e o desenvolvimento destas organizações e experiências nos colocam alguns dilemas cruciais sobre como pensar uma efetiva transformação democrática da economia e quais as possibilidades de consolidação de uma economia solidária fundada em valores do trabalho e da cooperação.

Um contramodelo econômico?

A necessidade de pensar uma economia alternativa funcionando no mesmo tempo histórico do modelo dominante constitui uma segunda ruptura com o pensamento tradicional da esquerda. Não se trata de pensar a solidariedade de modo externo e a posteriori do ciclo produtivo, ou saídas apenas no campo do emprego formal, como a redução da jornada. Ressurge com força a noção do trabalho respondendo com vitalidade àqueles que apregoam o fim do mundo do trabalho, emergem novas formas de ação popular solidária que se colocam no campo específico da produção, distribuição e consumo. Trata-se de pensar as relações de poder e a solidariedade no interior do processo produtivo. Seu sentido vai além de um acesso ao mercado, mas trabalha a democratização das relações econômicas e a expansão de formas de cooperação e de solidariedade.

Trabalhar a construção de uma economia solidária significa um aprofundamento da crítica à visão determinista e produtivista da "contradição entre desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção", refletindo, como afirma Habermas4, uma consciência moderna do tempo, na qual a construção de um contramodelo se faz no mesmo campo de historicidade do modelo dominante.

A compreensão, sugerida pelo debate dos movimentos sociais que surgem na década de 70, de que diversas formas de opressão geram contradições específicas que rompem com visões dualistas da luta de classes, ampliando o conflito e atingindo todas as esferas da vida cotidiana, reafirma-se de forma vigorosa no campo econômico.

O mercado

A terceira ruptura no pensamento tradicional da esquerda é pensar estrategicamente uma ação no interior do mercado. Se estamos falando de um contramodelo existindo no mesmo tempo histórico do modelo dominante, é necessário pensar as relações de mercado. Para além de uma relação de oferta e procura, o mercado envolve relações de poder. Porter,5 desenvolveu esta discussão e se constituiu numa referência de estratégias competitivas empresariais e do mundo do marketing. Pensar estas relações de poder significa identificar os encadeamentos por cadeia produtiva, quebrar estruturas verticais de dominação do ciclo produtivo, horizontalizar as relações no interior de cada cadeia, dominar o poder de encomenda por meio de uma nova cultura de consumo e de uma marca social.

Podemos dizer que no Brasil são muito recentes as experiências neste campo. As experiências de ONGs e instituições que atuam na constituição de uma economia solidária se deram muito mais no campo da capacitação e do crédito. São recentes as experiências de "moeda social", sejam as iniciativas de feira de trocas, sejam as de comércio solidário. Mesmo a experiência de comércio justo na Europa – fair trade6 – ainda têm se restringido à relação entre consumidores do Norte e produtores do Sul, principalmente com produtos orgânicos, sem se estender a uma rede mais ampla de solidariedade em que não esteja presente a reprodução da velha divisão de trabalho Norte-Sul.

A EFTA (European Fair Trading Association) define o comércio justo como um sistema que tem por objetivo a diminuição da pobreza no hemisfério Sul, por meio da entrada de produtores do Terceiro Mundo nos mercados de venda do hemisfério Norte. A experiência européia procura estabelecer elos entre fluxos econômicos globalizados e as redes solidárias.

Entretanto, é a organização do fair trade – enquanto moeda de negociação de um mercado concentrador e excludente e as redes solidárias – a experiência mais significativa e que nos coloca alguns desafios. Ela está organizada a partir de critérios em que o produtor garante o funcionamento e a coordenação democrática de seu negócio, produção sustentável social e ambientalmente, condições de trabalho dignas e que contribua para o desenvolvimento de sua própria comunidade. Por outro lado, os importadores garantem acesso direto aos mercados de consumo do Norte (com menos intermediários possíveis), pagando um preço justo para o produto (normalmente 20% a 25% acima do preço do mercado), com 40% a 50% antecipados e estabelecendo uma encomenda de longo prazo.

A mudança de cultura está na própria constituição de uma demanda sustentável de longo prazo. Não se trata de um domínio territorial no qual os grandes fornecedores e intermediários determinam onde e quando se produzir. Estabelece-se uma racionalidade econômica capaz de garantir aos produtores renda, crédito, capacitação e mercado de forma sustentável.

A realidade tem demonstrado que oferta e demanda são mediadas por forças de poder e que a única forma de mudança dessas relações de poder está na constituição de sujeitos sociais com capacidade e governabilidade de ação na economia. A capacidade de ação está no próprio avanço da rede de economia solidária em sua expansão pelo país. Por outro lado, esta governabilidade de ação não se fará se estas redes de economia solidária não estabelecerem parcerias no próprio mercado, no sentido de mudança de uma cultura de consumo e reconhecimento de formas econômicas alternativas.

Novas mediações devem ser estabelecidas, estruturadas por organizações econômicas de base popular e gestão empreendedora democrática, de tal modo que não se estabeleçam decisões a partir do monopólio das formas de encadeamento no interior das cadeias produtivas. Deste modo, não estamos falando de setores da economia, mas de redes produtivas locais, de articulação destas redes com macrocadeias regionais. O território se constitui no espaço econômico diferenciado à medida que apresenta diferentes tipos de ambiência produtiva, especificidades das cadeias produtivas, formas diferenciadas de integração horizontal e vertical, distintas correlações de forças locais.

O território

A economia solidária deve ser entendida como um processo socioespacial. Esta também significa uma ruptura no pensamento tradicional da esquerda. As estratégias territoriais não fazem parte do desenho de programas de governo dos partidos de esquerda, como sempre Milton Santos registrava.

Não temos o hábito de pensar o território. Pensamos os setores, as políticas macro e quando muito a cidade. Pensar o território significa identificar as formas distintas de organização econômica, de relações próprias entre sistemas urbanos e agrários, as imposições em termos de mobilidade de trabalho, a história do lugar, sua cultura. Ou seja, significa pensar a sua construção social.

A organização de base popular constitui redes locais que, por relações de vizinhança, pela história comum do lugar, pela proximidade, constroem identidades territoriais e criam relações de pertencimento. A consolidação e sustentabilidade destes grupos produtivos locais necessitam tanto criar elos com redes solidárias mais amplas, como que se desenvolvam políticas públicas de constituição de ambiências produtivas capazes de contribuir para a sustentabilidade destes grupos produtivos.

Por esta razão, o desenho de políticas locais de desenvolvimento deve ter como foco estratégico a constituição de uma ambiência produtiva capaz de garantir a sustentabilidade destes empreendimentos. Esta ambiência envolve um conjunto de formas de apoio que as ONGs têm desenvolvido, como formas de aprendizagem produtiva, microcrédito, comercialização. Experiências internacionais, como as agências de desenvolvimento regional na Espanha ou a experiência italiana da região da Emília Romanha, mostram a importância de uma política pública de constituição destes serviços de apoio.

Identificar a proximidade entre economia solidária e processos de desenvolvimento local não significa restringir este debate a uma lógica localista. Uma dimensão de políticas públicas territoriais significa pensar suas escalas municipais, regionais e nacionais.

A reforma urbana

Uma dimensão específica da questão territorial é a relação entre economia solidária e reforma urbana. O urbano dos anos 90 ultrapassa a dimensão de espaço de regulação imobiliária que a ele foi destinado na década de 80. O urbano é crescimento da pobreza, do desemprego estrutural e tecnológico, do mercado informal e de uma diversidade de tipos de empreendimento e associativismo econômicos. Esta construção de atores sociais territorializados no interior da cidade muda com este novo cenário encontra dinâmicas distintas nos anos 90. Por um lado, há o surgimento de problemas que supostamente afetam o conjunto da população, como a violência, a degradação do meio ambiente, os menores abandonados nas ruas ou a fome. Por outro, retoma-se um olhar da cidade não apenas urbanístico, ou de serviços urbanos, mas também de vida econômica, com ampliação de atividades de sobrevivência e desenvolvimento de atividades de geração de renda.

A essas circunstâncias se soma o contexto mundial, com impacto direto sobre os processos socioespaciais. A exacerbação de especializações espaciais, aliada a um novo recorte horizontal e vertical do território, quebra contigüidades e identidades territoriais. Esta nova dinâmica do processo social estimula a formação de redes que se integram como pontos no espaço, desprovidas de relações de pertencimento do lugar ou constituindo-se em fenômenos de desterritorialização de atores ao integrar pessoas por fluxos que não atravessam o território.

Acelera-se, desse modo, o processo de exclusão social e espacial. Se a questão territorial já se colocava como uma especificidade determinante dos movimentos populares urbanos na construção de sua identidade social e como aspecto essencial para pensar sua estratégia de ação, hoje ela se coloca de forma muito mais vigorosa.

A especialização flexível, os sistemas de produção vertical desintegrados, a quebra de uma contigüidade horizontal e de integração regional sugerem que uma instrumentalização de estratégias espaciais e locacionais, de acumulação de capital e de controle social, está sendo revelada com uma intensidade maior do que em qualquer outro período histórico. Estas novas espacialidades orientam uma reconstituição de novos atores, sujeitos ligados diretamente à formação de redes que acompanham este processo de reorganização territorial e de globalização.

O reconhecimento do surgimento de novos atores sociais por meio da formação das redes econômicas pode ser entendido como o contraponto da chamada crise dos movimentos sociais na década de 90. Ao lado de um movimento de formação de redes voltadas para o novo padrão de acumulação por processos de desconcentração, descentralização e terceirização, novos fluxos de articulação e informação produzem um novo tipo de ação coletiva. Estas redes, fóruns e movimentos sociais têm se organizado não a partir de uma reivindicação de um serviço urbano em seu local de moradia, mas integrada tematicamente constituem-se em articulações sociais que diferem daquelas que têm predominado até então nos movimentos populares urbanos.

Deste modo, o urbano continuará nos desafiando, enquanto uma representação que traz a simultaneidade do tempo e do espaço, que é espaço vivido e é espaço projetado. Por isso continuaremos repensando o urbano como o lugar da utopia, ainda inexistente, mas sempre possível de ser imaginada. Mas que possamos pensar a cidade não só pela democratização da gestão, do controle social do uso do solo urbano, mas também pela constituição destes novos atores que se constituem em sujeitos de uma democratização econômica.

A economia solidária deste modo se constitui num desafio que nos sugere intensos debates7 e que nos questiona ao pensar este contramodelo econômico no mesmo tempo histórico do modelo dominante.

Franklin Coelho é professor da UFF e coordenador de Desenvolvimento Comunitário do VivaRio