Nacional

FHC lançou-se à tarefa de imposição de uma nova hegemonia de classe. Faltava a unificação pela política dos processos que a modernização conservadora havia realizado. As reformas constitucionais significaram radical mudança nas relações de poder econômico e de força política

Em um dos muitos filmes realizados sobre Frankenstein, a fantástica criatura inventada por Mary Shelley, amarga metáfora sobre a banalização da ciência e da técnica, profética, na época em que as esperanças depositadas no progresso técnico e científico estavam em plena ascensão, havia um em que a criatura, um clone de pedaços, surgia belíssima, michelangiana, ao contrário da maioria do tratamento dado à mesma, que a representa, sempre, feia, monstruosa e aterradora. Com o passar do tempo, na face limpa e bela, suave e fresca, começaram a surgir pequenos caroços, que logo se transformaram em grandes, e no final a face angelical era a de escrofulosa aparência.

Estamos assistindo ao apodrecimento da beleza do arranjo presidido pelo PSDB, tendo como condutor máximo o presidente Fernando Henrique Cardoso. Nas trilhas abertas por Fernando Collor de Melo, falsificador da ira popular, que entretanto elegeu-se por ter percebido e explorado canalhamente a enorme insatisfação com os desmandos, desperdícios e corrupção do Estado brasileiro, Cardoso preparou uma edição intelectualmente mais sofisticada da primeira falsificação.

Ungido da aura de intelectual, dispondo do enorme acervo da crítica antiestatizante que vem desde Hayek, atualizado politicamente por Madame Thatcher, hoje baronesa, e dos aparatos técnicos – pois não passam disso – do mainstream da economia, FHC lançou-se à tarefa de imposição de uma nova hegemonia de classe no Brasil, falhada desde a era Vargas – daí sua obsessão em eliminá-la da história brasileira. Uma tentativa, digamos, entre a antiga UDN e a busca do antigo Partido Comunista do Brasil, em uma de suas fases mais direitistas, de encontrar um projeto político para a burguesia progressista. Não é à toa que o presidente ele mesmo foi treinado nos quadros do PCB.

Alguma base material estava disponível, na verdade, pois não só de idéias vive o homem. Uma economia agora já inteiramente capitalista, em que a exclusão não é um resquício de passados pré-capitalistas coetâneos, mas uma produção moderna; na qual se digitam dados e códigos do Itaú e Bradesco desde os hotéis de selva na Amazônia até um remoto gaúcho carneando uma ovelha para churrasco: como se dizia antigamente, do Oiapoque ao Chuí; havendo realizado, virtualmente a unificação das classes, dominantes e dominadas, em todo o território nacional, e as clivagens regionais, obstáculos à hegemonia, transformadas em trunfos da razão burguesa – veja-se o episódio da briga pela localização da Ford, entre a Bahia, que saiu ganhando, e o Rio Grande do Sul, que saiu aparentemente perdendo. Faltava a unificação, pela política, dos processos reais que a modernização conservadora havia realizado. Então, tucanos se uniram às aves de arribaçã dos remotos sertões do Nordeste – tão mal homenageados no centenário do clássico de Euclides da Cunha – e dos countries ricos da ampla faixa que vai de São Paulo ao Paraná, Santa Catarina, os Mato Grossos, Goiás, voltando ao Norte, lendária Amazônia de lendários uirapurus, botos e barbalhos.

No poder, o tucanato – não vale chamá-los de social-democratas porque é uma ofensa à social-democracia – lançou-se ao assalto, reduzindo, de novo, a política à economia, como no tempo do celerado Médici. Manejando maiorias parlamentares confortáveis, embora a Nação, saiba, hoje, o preço dessa confortabilidade, "reformou" a Constituição, transformando-a num clone de sua própria clonagem: a Constituição virou, por sua vez, um Frankenstein da segunda fase, da fase da feiúra. Não é necessário revisar ponto por ponto das chamadas "reformas" constitucionais. Para sintetizar, elas significaram uma radical mudança nas relações de poder econômico e de força política, no interior da constelação burguesa da propriedade e no exterior das relações de classe. Uma porcentagem impressionante da base material da produção mudou de mãos em seis anos, sobretudo por meio das privatizações das empresas estatais e, ainda, pela formidável concentração de capital de que a globalização é sua forma, hoje. Setores inteiros foram transferidos do Estado para poderosos oligopólios internacionais, e o engraçado, se graça houver nisso, é que muitos destes são, em seus países de origem, empresas estatais! A petroquímica, inteirinha, foi privatizada; a distribuição de energia, idem; a telefonia fixa e móvel, nem se fala; a siderurgia inteira, com uma enorme concentração em alguns poucos grupos econômicos, industriais e financeiros, e a sempre lembrada mineração de ferro, com a Vale do Rio Doce sendo vendida na "bacia das almas". Esse processo estendeu-se, por imposição do governo federal, a todos os estados, indo no pacote todos os bancos estaduais, de que o caso Banespa é o emblema maior. Restam estatais, apenas a Petrobrás, o Banco do Brasil, o Banco do Nordeste do Brasil, o Banco da Amazônia, o BNDES e uns 80% da geração de energia elétrica. Tudo isso, vale lembrar, com a utilização dos poderosos fundos de previdência das próprias estatais, tendo o Previ, do Banco do Brasil, na liderança.

Dados do próprio governo, extraídos de relatórios do BNDES, xerife do programa de privatizações, davam conta do balanço, até 1998, segundo nosso saudoso Aloysio Biondi: para uma arrecadação por conceito de vendas de R$ 85 bilhões – alguma parte paga com "moedas podres", títulos da dívida pública sem nenhum valor de mercado, nem liquidez, como os títulos da dívida agrária – par contre, a privatização custou R$ 87 bilhões! Isto é, ainda saímos perdendo! Incluem-se no custo da privatização, os subsídios nos juros dos empréstimos concedidos pelo Estado para que as empresas privadas comprassem as estatais, o prévio "saneamento" financeiro para entregá-las enxutas, esbeltas e belas para o lucro, isenções fiscais concedidas, débitos pesados que ficaram com o Estado, como, por exemplo, obrigações trabalhistas.

Na vastíssima operação realizada – o programa de privatizações do governo brasileiro esteve sempre entre um dos maiores do mundo e agora é o maior do mundo – duas questões são relevantes e ajudam a explicar a crise atual, que já passou para a política. Além do prejuízo real, econômico e financeiro, já sumariamente relatado, o governo federal, com as extensões estaduais, perdeu capacidade para realizar políticas setoriais e mesmo política econômica. Veja-se, agora, o imbróglio do gás boliviano: caberá à Petrobrás arcar com o risco cambial dos utilizadores industriais, até que tais riscos sejam passados às tarifas. Trata-se de um exemplo que vem à mão: a empresa estatal pode ser usada para viabilizar uma determinada política, exatamente ali onde a ação do Estado substitui a incerteza do mercado. Embora este caso deva ser objeto de intensa crítica pela sociedade, fica patente que a existência de uma empresa do porte da Petrobrás viabiliza políticas específicas que o próprio mercado não tem condições de levar adiante. A privatização das estatais realmente estratégicas priva o Estado brasileiro, cuja moeda é uma ficção, de meios não-monetários para realizar política econômica.

A segunda conseqüência é de ordem não menos letal; freqüentemente, ela é localizada apenas no terreno da ética, o que, por si só, já seria de conseqüências trágicas, num país cuja cultura não prima, exatamente, por uma ética pública, mas apenas por moralismos privados, típicos do catolicismo ultramontano. Mas essa inconseqüência ética compromete gravemente a integridade do Estado, de novo sua capacidade de fazer política, e afeta diretamente a capacidade de gasto social do Estado brasileiro. Trata-se do tema da corrupção: uma megaoperação do porte do programa de privatizações realizado açodadamente pelo governo brasileiro abre todas as portas para ela. Em primeiro lugar, pelo volume de recursos em jogo que, na conta de Biondi, atingiu, em termos correntes, até 1998, entre 15 a 20% do PIB brasileiro. Em segundo lugar, porque simultaneamente às privatizações, como conseqüência delas, com o desmonte do Estado, sua capacidade de fiscalização reduziu-se drasticamente, justamente quando a privatização introduzia na economia brasileira grupos econômicos de porte. Para o que o Estado brasileiro não dispunha de experiência, nem de instituições adequadas: apressadamente, montaram-se as famosas agências reguladoras, as Anas da vida, cuja capacidade é quase zero, com os resultados conhecidos, agora, com a crise energética.

Essa convergência de processos abriu as portas para a crise da coalizão de governo, a qual decorre, imediatamente, da erosão do governo e em instância conseqüente, da redução do monopólio da violência estatal. O movimento errático do governo, com idas e vindas que se dão até em menos de 24 horas, como mais uma vez a crise energética deixa à mostra, ora anunciando-se cortes programados, para logo se voltar atrás, a indecisão entre sobretaxar tarifas e recuar por temor do desgaste político não mostra outra coisa senão a absoluta incapacidade de previsão por parte do Estado brasileiro; se necessário, a própria proclamação de que sem medidas provisórias não se pode governar já é um atestado da incapacidade, que é estrutural, e não apenas um dado conjuntural que pode ser aliviado.Trata-se, rigorosamente, de um Estado de Exceção, por mais forte que possa parecer o termo.

A política acusa, imediatamente, esse terremoto produzido nas instâncias do poder econômico e no que deveria ser a capacidade estatal de colocá-lo sob controle.Quando isso ocorre, a coalizão no governo não deixa de entrar em crise: recursos políticos são transformados, mudados de lugar e de "proprietário", e a instabilidade instala-se definitivamente. Para dizer em termos mais rasos: o festim frenético do botim dos recursos públicos transforma-se numa luta feroz para aumentar a apropriação do que sobra, pois todas as partes estão em diminuição. A relação entre a política e as bases materiais da propriedade passam a ser uma incógnita, até que nova acomodação se produza; entretanto, qualquer novo "modelo" dessa relação implica custos políticos e nunca se trata de um jogo zero, mas de um perde-e-ganha permanente. Mas como o sistema é representativo, ocorre, necessariamente, uma defasagem entre as necessidades do poder e sua forma de representação. Isto é que explica, agora, a expulsão de certos membros da coalizão: tudo seria mais simples se o presidente simplesmente pudesse afastar ex-sócios agora indesejáveis, como faz com os ministros. De fato, os processos de cassação são, de um certo ângulo, a exclusão da coalizão, pela força, de parceiros que desejavam apropriar-se de mais do que lhe cabia.

Veja-se nos casos concretos das lideranças colocadas sob suspeita. O processo de industrialização do Nordeste e da Amazônia, que se realizou mediante a utilização de recursos fiscais federais transferidos para empresas que optaram por localizarem-se nas regiões referidas, vem sendo drasticamente reduzido pelo governo, desde Collor de Mello, e Fernando Henrique somente aprofundou essa tendência, até o ponto de propor a extinção das agências coordenadoras, Sudene e Sudam. Apesar do transformismo das medidas provisórias, trocando seis por meia-dúzia, é muito evidente que se trata da extinção das agências especiais. Foi sob as bênçãos da industrialização com renúncia fiscal da União, e por extensão, dos estados e municípios, que a Bahia ganhou um parque industrial considerável, provavelmente o quarto em importância no Brasil. E, por extensão, tornou-se a meca do turismo doméstico. A mesma coisa, em escala bem menor, passou-se na Amazônia, mais particularmente no entorno de Belém e de Manaus, esta com a chamada Zona Franca. Sobre esta plataforma ergueram-se liderançasNacional: O apodrecimento da beleza como ACM e Jader Barbalho. Enganam-se os que pensam – e só por preconceito antinordestino e antiamazônida (amazônida é como o prof. Armando Mendes se designa e a seus conterrâneos) – que ACM e Barbalho são "coronéis" ao velho estilo, políticos de base rural: trata-se de políticos urbanos, cuja base social se constituiu nas dobras da industrialização subsidiada. A base social de ACM é hoje uma poderosa classe média baiana que desfruta e ideologiza as maravilhas da Boa Terra, e os empresários que, sem recursos fiscais, nem teriam surgido.

A sistemática redução do sistema de incentivos fiscais – a Zona Franca de Manaus, outrora florescente, hoje é cemitério de empresas falidas, e as poucas lojas de aparelhos eletroeletrônicos têm o triste ar de lojas suburbanas baratas – minou as bases para a continuada ascensão desse tipo de políticos. Isto não era, ainda, perceptível, nos anos em que FHC forjou a coalizão. Só com as privatizações, ACM perdeu a capacidade de influir em centenas de postos executivos nas empresas que se constituíram orbitando a Petrobrás; Sarney talvez só consiga emplacar alguns office-boys na Vale do Rio Doce e Barbalho tem que se contentar com a produção de rãs.

Mesmo o PSDB, casamento da UDN com o PCB da fase mais direitista, perde influência. Gestado, de fato, no governo Franco Montoro, quando a tucanada hoje em evidência na política, incluindo-se aí o próprio presidente, tomou contato, pela primeira vez, com o que eram, de fato, os poderes econômicos – antes só o conheciam na teoria –, o PSDB foi-se convertendo de um partido com projeto laico e republicano – daí a cobrança que o jornalista Clóvis Rossi me faz seguidamente – em um partido burguês, no rigor da expressão. Assinale-se, desde logo, que esta é uma enorme novidade na política brasileira, posto que nunca houve tal agremiação política no Brasil. Talvez só tenha existido em nível estadual, no caso dos partidos paulistas da primeira república, assim mesmo numa economia basicamente agrícola.

As privatizações, na forma em que foram realizadas, constituem um processo de desnacionalização da política e despolitização da economia.

Esta não apenas parece poder ser conduzida pelos manuais: de fato, o é, a ponto de que o programa das oposições políticas, desde o PT até o PPS, pouco diferem do programa tucano – a única exceção a essa regra parece provir, pasme-se, de Itamar Franco – e isto porque a forte desnacionalização operou o oposto do que Celso Furtado chamou a "internalização das decisões". Desnacionaliza-se a política pelo mesmo caminho: a enorme transferência de propriedade operada dentro da burguesia torna anacrônico o sistema representativo, pois embora a teoria liberal o ancore na cidadania individualizada, basta ver quem doa dinheiro para as candidaturas para decifrar o enigma dessa "representação".

Mas não se deduza disso tudo que a exclusão pela cassação de membros agora indesejáveis da coalizão é uma medida moralizadora, erguendo-se, agora, novos parâmetros éticos e limpando-se a coalizão dos seus traços frankensteinianos da segunda fase, da fase do apodrecimento. Passando-se do legado patrimonialista à impessoalidade do mérito e do mercado, que tudo limpa. Muito ao contrário, como a experiência norte-americana mostra seguidamente, o sistema não apenas convive com a corrupção: mais que isso, esta é um componente irredutível do próprio mecanismo de crescimento, uma forma tanto de "acumulação primitiva" quanto de redução da incerteza exponencial.Os presidentes se transformam em agentes comerciais, como Clinton não deixou lugar a dúvidas no caso do merchandise para a Raytheon, na concorrência do Sivam. O que poderia soar, outra vez, como explicação e justificação cínicas da corrupção: se ela é um componente irredutível, então não há como se livrar dela, e Paulo Arantes já me advertiu que posso vir a ser conhecido como o teórico da corrupção, construtor dos índices de redução da incerteza e dos coeficientes de amoralidade, na sugestão de Giannotti.

Muito ao contrário, estou tentando chamar a atenção para esse "componente irredutível", para não nos contentarmos com provisórias CPIs, que serão incapazes de dar cobro a essa "irredutibilidade", para transitarmos para o fortalecimento das instituições do Estado, como até a experiência liberal norte-americana indica, de um lado, e de outro para o melhoramento das organizações civis de contrapeso ao mercado. O preço que o governo FHC está recebendo, o troco à desregulamentação e à desmoralização das organizações civis e sindicais que podem funcionar freando, corrigindo e eliminando os focos de corrupção, é essa incapacidade e essa impotência de aprendiz de feiticeiro. Nisto, na capacidade de propor o controle do que é próprio do mercado e de sua explosiva combinação com o Estado, estará também a construção de uma alternativa de poder. Cabe a nós enfrentarmos essa complexidade.

Francisco de Oliveira é professor titular de Sociologia na FFLCH-USP e diretor do Cenedic (Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania) da FFLCH-USP.