Internacional

Entrevista com Samuel Pinheiro Guimarães

O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães foi diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty, cargo do qual foi afastado por suas fortes críticas à entrada do Brasil na Alca. Nesta entrevista, ele nos fala dos processos em curso no mundo e dos prováveis efeitos dos atentados terroristas de 11 de setembro e da guerra do Afeganistão sobre estes processos.

Os acontecimentos de 11 de setembro nos Estados Unidos, fato maior na cena política internacional, desencadearam uma série de conseqüências e especulações sobre suas repercussões mais a longo prazo. Como o senhor vê isso?

Apesar da importância dos atentados para legitimar o governo Bush, fruto de eleição contestada; para justificar a mudança da política econômica em direção ao keynesianismo; para alinhar os Estados da periferia em torno da política americana; para dar uma demonstração de força aos rivais americanos na Ásia e na Europa, esses atentados não alteraram o curso das grandes tendências do sistema mundial. Primeiramente, a fantástica aceleração do progresso científico-tecnológico; em segundo lugar, a extraordinária reorganização produtiva no plano das empresas e dos mercados; em terceiro, a reorganização territorial, com a fragmentação de Estados, em especial a da União Soviética, e, de outro lado, a integração econômica e política, em que se destaca a criação do Estado europeu. O processo europeu tem importantes aspectos econômicos mas o importante é a existência das instituições supranacionais como o Parlamento, a Corte de Justiça, a Comissão Européia e a vasta legislação comunitária que assegura políticas comuns. É a criação de um mega Estado, rival e aliado dos Estados Unidos.

E na questão militar?

A reorganização produtiva também significa reorganização na esfera militar. Reorganização produtiva é resultado da aceleração do progresso científico-tecnológico, que tem repercussões nas empresas civis e militares, com a produção de armamentos extremamente sofisticados. A reação aos atentados de setembro revelou uma constelação de armas extremamente sofisticadas e poderosas.

Aquelas grandes tendências internacionais que mencionei cooperam para a reincorporação de áreas ao sistema capitalista global, em um processo chamado de globalização, em que a questão militar é fator importante. O período de 1914 a 1989 foi um período de fragmentação do sistema mundial, entre um campo capitalista e outro socialista. E, de outro lado, surgiram em certos países da periferia pequenos e médios setores industriais. Nesses países, graças à competição Leste-Oeste, se abriram espaços para políticas de construção de economias capitalistas nacionais. As megaempresas multinacionais não podiam em geral atuar nem nos países socialistas nem em certos setores desses países periféricos. No Brasil, por exemplo, os setores de telecomunicações, de petróleo, de mineração estavam reservados ao capital nacional, estatal ou privado. A partir de 1989 se verifica a reincorporação desses países e áreas ao mercado global, com a possibilidade das megaempresas multinacionais atuarem em suas economias.

E todas essas tendências provocaram a concentração de poder. De poder econômico, político e militar no centro do sistema em relação à periferia e dentro de cada país. A concentração de poder militar tem enorme importância para o fenômeno de globalização.

Esse processo de concentração de poder leva à superação das contradições entre os países ricos?

Não. Ao mesmo tempo em que ocorre a concentração de poder no centro em relação à periferia, há também um processo de multipolarização. Os EUA não têm o comando que tinham sobre o mundo ocidental nas décadas de 60 ou 70. Hoje temos os EUA, a União Européia e a China, três grandes pólos de poder. E há outros pólos importantes ainda que menores como a Rússia, o Japão e a Índia. É um mundo multipolar. E para os EUA faltava nesse mundo, desde o fim da União Soviética, algo muito importante, um inimigo.

Por que é importante um inimigo?

Apesar do peso de seu mercado nacional e regional, com o Nafta, a economia americana não é apenas nacional ou regional. Ela é essencialmente global, a única economia de natureza global. Em qualquer país do mundo há empresas americanas, há interesses econômicos e políticos americanos. Primeiro, a necessidade essencial de ter acesso a insumos estratégicos, tais como o petróleo. Em segundo lugar, há o interesse vital em ter acesso a mercados para colocar suas exportações, e em terceiro lugar, para conseguir importações de produtos baratos. Finalmente, o que indica sua natureza global única, os EUA são o único país que executam programas de exploração econômica e militar do espaço exterior.

Para proteger essa economia americana global é necessário organizar e manter um sistema de bases com as funções de realizar operações militares rápidas de abastecimento e ataque e de intimidar governos que imaginem adotar políticas contrárias aos interesses e ao funcionamento da economia global americana.

Mas voltando à questão do inimigo...

Após a 2ª Guerra Mundial, para conter o bloco soviético os EUA criaram um sistema de tratados e instalaram bases militares no mundo inteiro, que foram mantidas após a queda do Muro de Berlim. Hoje continuam a existir bases na França, na Alemanha, na Espanha, na Inglaterra, na Itália, no Japão etc, mas até setembro não havia mais um inimigo.

Os atentados do dia 11 de setembro permitiram "reencontrar" um inimigo, que é o terrorismo internacional. O terrorismo antes de setembro era visto apenas na ação de grupos isolados: espanhóis, irlandeses, americanos – vide Oklahoma –, palestinos, tchetchenos etc. Nada conveniente do ponto de vista estratégico para justificar aquele amplo sistema de bases militares. Era preciso personificar um inimigo poderoso e crível.

Há uma "teoria" que afirma existir uma rede terrorista internacional sob o comando de Bin Laden. Os terroristas bascos e os irlandeses "obedeceriam" a Bin Laden? Quem sabe se as Farc não obedecem a Bin Laden? Bin Laden está sendo "promovido" pela máquina de propaganda a uma espécie de Stalin ou Hitler, líder de um novo e terrível inimigo.

Aspecto essencial da estratégia militar americana é a de promover a não proliferação de armas de destruição em massa. A não proliferação significa que os Estados que detêm essas armas poderão continuar a tê-las e a desenvolvê-las, e aqueles que não as têm estão proibidos de tê-las, desenvolvê-las ou importá-las.

Impedir que os desarmados se armem.

Sim e implica igualmente induzir os Estados periféricos a reduzir as Forças Armadas convencionais enquanto os poderosos simultaneamente automatizam as suas forças. O episódio do Afeganistão vem mostrando a importância de todo tipo de armas controladas de forma automática, por computadores à distância, com o objetivo de evitar que ocorram perdas humanas.

Perdas americanas...

Sim. E há também a "teoria" da guerra asséptica, aquela em que não se mata o inimigo. Seria uma guerra contra instalações físicas para assim evitar movimentos de protesto da própria população do agressor, devido à morte de civis inocentes, de seres humanos, ainda que inimigos.

Os atentados de 11 de setembro permitiram então criar o inimigo?

Esses atentados tiveram vários efeitos. Permitiram criar um inimigo, rearticular as alianças, ou seja, reforçar a solidariedade do centro contra a periferia, onde estariam os terroristas ou os que os apóiam. Enfim, é possível apresentar a situação de forma a consolidar politicamente as forças do antigo Ocidente e conseguir novas adesões, pois como a operação vai se dar num país muçulmano e como há vários países mulçumanos em sua volta, é necessário cooptá-los a participar ativamente do ataque..

É um inimigo mais conveniente, num lugar mais adequado para criar o máximo possível de consenso entre os poderes, pois pode envolver China, Índia, Rússia, o próprio Japão...

Todos os países naturalmente se solidarizaram com os EUA diante do atentado. Mas a idéia de uma guerra indefinida e difusa é complexa e causa apreensão, mesmo nas elites e populações aliadas. Ao final desse ataque ao Afeganistão possivelmente vão subsistir bases militares americanas em vários países da região, próximas à fronteira com a Rússia e muito perto da China. É um salto qualitativo no quadro estratégico militar da região.

Um segundo aspecto é a demonstração de força real que a reação aos atentados permitiu com relação aos demais pólos de poder, e em especial a China. O número e a capacidade de navios, submarinos e aviões que foram mobilizados para o teatro de operações é muito além do necessário e útil para enfrentar o Taleban e a Al Quaeda. Porém serve para demonstrar ao mundo e a eventuais desafiantes do poder americano que os Estados Unidos dispõem de extraordinário poder militar, têm a capacidade de mobilizá-lo e a vontade política de utilizá-lo.

Em terceiro lugar, a situação gerada pelos atentados facilita enfrentar a recessão da economia dos EUA. Permite uma mudança nos rumos da administração da economia, de uma política neoliberal para uma política intervencionista que injeta recursos em grande escala num momento de crise. Em vez de confiar nas livres forças do mercado para resolver a questão da recessão americana, o Estado republicano vai ajudar firmemente a enfrentá-la.

Seria uma volta ao keynesianismo?

Há uma nítida tendência de mudança de política econômica e de estratégia política em nível mundial que parece um retorno disfarçado ao passado. Antes havia o conflito Leste-Oeste, hoje há um conflito do Ocidente contra os terroristas e todos aqueles que cooperarem com eles. Quem? Vamos supor que os EUA concluam que há atividades terroristas em determinado país, concluam que esse país não está tomando as medidas que consideram necessárias para combatê-las e solicitem permissão para instalar escritórios de suas agências nesse país para combater tais atividades. Se o país não aceitar, em nome de sua legítima soberania estará cooperando com o terrorismo? É um retorno às práticas maniqueístas da Guerra Fria.

Na economia, há um retorno à política keynesiana para enfrentar os crescentes problemas sociais internos, de concentração de renda, de reativação da economia etc. Há ainda outro aspecto que é a justificação das despesas orçamentárias militares que tem, aliás, natureza keynesiana. Com o fim da Guerra Fria surgiu a idéia dos "dividendos da paz". Não havendo mais um inimigo, os orçamentos militares deveriam ser reduzidos, as indústrias militares deveriam ser reconvertidas para produção civil e os recursos liberados deveriam ser destinados a programas de auxílio econômico, tanto às populações desfavorecidas como os negros nos EUA, como aos países da periferia. Aquela situação de paz e de "fim do inimigo" gerou um problema grave. Na sociedade capitalista americana é fundamental para as empresas manter a competitividade para ampliar suas posições de controle do mercado. Há uma corrida tecnológica permanente para reduzir custos e criar novos produtos em todas as áreas. Esses produtos resultam de programas de pesquisa que sendo vitais para as megaempresas têm altíssimo custo e resultados aleatórios. Ora, os programas militares são programas de subsídio à pesquisa tecnológica e de subsídio à própria produção em geral, porque as indústrias que fabricam armamentos muitas vezes também produzem bens civis, como a siderurgia, a indústria naval e até a indústria têxtil.

Existiria uma ligação estrutural entre o dinamismo da economia capitalista e o militarismo?

No caso dos EUA há um tabu com relação à intervenção do Estado na economia. Como o Estado americano não pode fazer política industrial por meio do financiamento direto a empresas, aquele enorme orçamento militar permite financiar os programas de pesquisa científica e tecnológica.

Portanto, tem uma importância enorme ter um inimigo, porque os contribuintes americanos são muito zelosos quanto aos impostos que pagam. Como explicar aos contribuintes a inclusão no orçamento americano de extraordinárias despesas militares, que beneficiam empresas, se não existem inimigos? Depois, é preciso testar periodicamente os armamentos para saber se aquilo que custou tão caro realmente "funciona". No caso estas e outras armas estão sendo testadas no Afeganistão na luta contra o Taleban e o terrorismo.

Esta política de combate ao terrorismo terá resultados?

Hoje há uma crescente convicção de que o terrorismo não é uma manifestação do demônio, mas sim o resultado do desespero de indivíduos, que, por razões justas ou injustas, são levados a medidas extremas na defesa daquilo que julgam ser seus interesses. Enquanto as causas de conflito e de opressão não forem superadas surgirão novos terroristas. Como a concentração de poder econômico e militar é permanente e diante da enorme disparidade de meios surge o recurso ao terrorismo. Não se trata de defender o terrorismo como arma política. Mas há causas para o terrorismo. São manifestações extremas de conflitos, são tentativas desesperadas de ação. Quanto maiores as desigualdades, quanto maior a opressão política, quanto maior a diferença de forças e a ausência de perspectivas de solução, mais os conflitos políticos deixam de ser pacíficos para se tornarem violentos e até desesperados.

A situação do Oriente Médio, por exemplo, é extremamente tensa pois ali se conjugam questões religiosas de extraordinária importância, econômicas da magnitude do petróleo, regimes políticos de grande artificialidade, regimes religiosos, ditaduras laicas, movimentos fundamentalistas de profundas raízes sociais. O fundamentalismo não é apenas uma questão religiosa mas também cultural, é uma reação a um processo de ocidentalização, de transformação acelerada de costumes em situação de estagnação econômica. O que acontece agora é um processo de transformação dos costumes na área familiar, comportamental, decorrente dos interesses econômicos. Isso se soma a outros desequilíbrios, aos fracassos da modernização, da industrialização, ao desemprego e assim por diante.

A globalização levaria assim a passar por cima de tradições culturais?

Uma das principais tendências do processo econômico e tecnológico moderno como mencionei é a concentração do poder. Porém, há outra característica de grande importância que é a padronização, a homogeneização. Quando se criam mercados abertos globais há interesse em padronizar legislações, pois isso facilita a operação das empresas e reduz o custo das transações. As megaempresas pressionam seus governos para pressionar os demais governos a remover obstáculos ao comércio, aos investimentos, aos capitais. Há igualmente o interesse de padronizar hábitos de consumo, hábitos culturais.

Daí surge um outro fenômeno, que é a utilização de movimentos legítimos, que lutam por direitos humanos, como instrumento para transformar hábitos de consumo. Não necessariamente para liberar as pessoas para o exercício de formas espirituais mais elevadas mas para liberá-las para formas de consumo mais sofisticadas. Essa questão é delicada, envolve os direitos individuais de pessoas que estão submetidas, muitas vezes, a bombardeios de propaganda. São usados os mais diferentes mecanismos. Grande número de ONGs são financiadas por governos ou instituições multilaterais, como o Banco Mundial, para desempenhar certos papéis, e quando essas ONGs se manifestam de forma que não "interessa" a seus financiadores têm seus recursos cortados. Há exceções, mas um grande número de organizações na esfera internacional tem contribuído para que se "explore" politicamente reivindicações dignas para alcançar objetivos políticos. Não me recordo, por exemplo, de terem as ONGs ambientalistas brasileiras reclamado do fato dos EUA não aceitarem suas obrigações estipuladas no Protocolo de Kyoto. Não me recordo de ONGs, que lutam por direitos humanos no Brasil, protestarem contra a pena de morte nos EUA aplicada preferencialmente a negros e pobres. É um fato a utilização pelas grandes potências de causas nobres e de organizações em que se engajam pessoas bem intencionadas, para atingir seus objetivos internacionais.

Ou seja, há um processo de manipulação de causas legítimas por interesses escusos...

Sim, a manipulação dessas causas legitimas é um fato. Além dessa manipulação, há a ação muito importante dos serviços de inteligência das grandes potências, como a publicação periódica de documentos secretos nos EUA revela. Os documentos secretos sobre o Chile, recentemente divulgados, mostram como foi financiada pelos EUA a campanha para impedir a eleição de Allende, a ação interna para derrubá-lo e quem financiou o regime militar de Augusto Pinochet. As agências de inteligência das grandes potências têm vastas dotações orçamentárias e atuam efetivamente, mas obviamente suas atividades não são divulgadas diariamente nos jornais.

Fala-se que está colocada como perspectiva no século 21 o desencadear de guerras assimétricas, de um tipo diferente do que a Humanidade já viu, e que isso redefine muito a forma como deve ser pensada a questão da segurança dos Estados e o sistema de relações internacionais. O que o senhor acha disso?

O que se pode observar mais recentemente são intervenções de potências militares em regiões "rebeldes", com maior ou menor êxito. Por exemplo, a intervenção russa na Chechênia e em outras regiões do Cáucaso, a operação ocidental nos Bálcãs após a dissolução gradual da Iugoslávia, a intervenção "humanitária" no Kosovo etc.

Operações contra focos de instabilidade e rebelião.

Apenas quando isto interessa. Em Ruanda, na Libéria, em Angola morreram milhões de pessoas e isso sequer recebeu o destaque devido na imprensa. Há guerras localizadas de natureza étnica, religiosa, econômica e assim por diante. Mas isto não é novidade. Na história da América Central, os EUA ocuparam militarmente a Nicarágua durante trinta anos, ocuparam Cuba por muitos anos, ocuparam o Haiti por dezenove anos. Foram intervenções militares, claro que com outras armas, mas a desigualdade de forças na época também era enorme. Isso vai continuar a ocorrer. Não acho que seja nada de novo. Há uma ligeira mudança no "sistema" de intervenção militar na periferia como, por exemplo, a consolidação da Otan em substituição à ONU como um foro legal e legítimo para autorizar intervenções militares em países "renegados".

O senhor prevê um período de aumento das tensões entre centro e periferia?

O processo de concentração de renda é muito grande, as transferências de recursos da periferia para o centro são enormes. Há um processo de redução demográfica em países do centro como na Itália, na Espanha, na Alemanha, onde a população nos próximos anos será menor do que é hoje e, portanto, seu nível relativo de bem estar geral será ainda mais elevado. Na periferia, a população cresce e se torna cada vez mais urbana. Isso gera um potencial extraordinário de instabilidade em todas as regiões. Somando-se a isso a influência dos meios de comunicação, que divulgam modos de viver altamente confortáveis, porém inacessíveis para a maioria, a frustração causada é enorme. Em países com dívidas externas enormes, que transferem bilhões de dólares por ano para o centro, com políticas de arrocho fiscal cada vez mais severo, reduzindo programas sociais e aumentando impostos, a população pode acabar identificando os interesses externos como responsáveis pela sua desgraça. Se a população de um país tivesse conhecimento dos lucros das grandes empresas multinacionais enviados todo ano para seus acionistas no exterior, que por isso têm um nível de vida muito melhor, poderia identificar na atividade dessas empresas multinacionais um fator central que dificulta e causa sua pobreza, desemprego e violência.

E esses atentados de setembro não interrompem o processo de construção da União Européia, não interrompem e até aceleram o ritmo de progresso tecnológico, não interrompem o processo chinês, com suas características próprias. Os atentados tiveram efeitos sobre a economia americana, sobre o posicionamento estratégico militar americano. Mas não interromperam nem a concentração de poder militar, nem a de riqueza, nem a de controle dos meios de comunicação.

Fale um pouco sobre a relação entre concentração de poder, multipolaridade e gestão das instituições internacionais.

Creio que já existe uma governança mundial. Ela não é cartesiana, ela é anglo-saxônica e pragmática. Ela vai criando mecanismos e incorporando as estruturas de poder novos membros, quando necessário, como ocorreu com o G-7 em relação à Rússia. Quem administra hoje grande parte das economias da periferia é o Fundo Monetário Internacional, pelas condições que exigem para a aprovação de programas de "salvamento" em situação de crise. Há mecanismos de vários tipos, como o G-8, a Otan, o TNP, o MTCR que, em distintos setores do sistema internacional, ditam as regras de comportamento e criam os mecanismos que configuram a governança mundial.

Nesse processo a ONU vem perdendo peso como fórum de negociações internacional?

Não no caso do Conselho de Segurança. Pelo contrário. Há uma concentração de poder também na ONU, com a virtual "desaparição" da Assembléia Geral, cujas resoluções aliás nunca tiveram caráter obrigatório. Uma decisão do Conselho todavia é obrigatória, e todos os países da ONU são obrigados a contribuir para implementar as decisões do Conselho de Segurança que impliquem despesas. Se houver uma operação de paz, de "apoio" à população afegã, de "reconstrução" do Estado afegão autorizada pela ONU todos os Estados-membros terão de arcar com as despesas. Na realidade, o Brasil participa de um sistema no qual não participamos do processo decisório mas pagamos suas decisões sem poder argumentar em defesa dos nossos interesses nem de nossas idéias.

O senhor falou de uma certa consolidação do papel da Otan...

Os organismos e as alianças regionais, pela Carta das Nações Unidas, são subordinados à ONU, e a Otan é, originalmente, uma aliança defensiva regional. A Otan só poderia agir em legítima defesa, o que, aliás, qualquer Estado da ONU pode. Mas a Otan vem sendo convalidada como um foro legítimo de decisão para a intervenção militar, isto é, para o uso da força na política internacional, quando esse foro é legalmente apenas o Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Estaria em curso uma mudança nas leis internacionais, se estaria criando uma nova jurisprudência?

Existe um processo em curso nessa direção. A Carta das Nações Unidas é a única Carta de que todos (quase) os países do mundo são signatários. Suas decisões são obrigatórias para todos. O capítulo relativo ao Conselho de Segurança determina que nenhum Estado pode usar da força contra outro Estado. E o Conselho de Segurança detém o monopólio do uso da força em nível internacional, mas esta só pode ser utilizada em caso de ruptura da paz e ameaça à paz. E a Carta da ONU determina que se deve, antes de usar a força militar, procurar usar de todos os meios não militares para restaurar a paz. Há uma série de procedimentos, sanções diplomáticas, econômicas. De alguns anos para cá surgiu a idéia de que outros "fenômenos" poderiam ameaçar a paz, e assim justificar a intervenção, tais como episódios de genocídio interno, situações humanitárias, colapso de Estados, restauração de democracia etc. Há uma tendência pragmática e sorrateira de ir ampliando a competência do Conselho de Segurança em prejuízo da soberania dos Estados periféricos. Mas o que define a ameaça a paz é uma decisão política do Conselho de Segurança e não a realidade da situação. É a conveniência política dos cinco membros permanentes do Conselho. Assim, a situação na Chechênia ou na Argélia nunca foram definidas como situações de ameaça ou de ruptura da paz.

O Afeganistão não era até o Taleban...

As Nações Unidas não chegaram a aprovar uma ação militar contra o Taleban. Os EUA estão interpretando uma frase de uma resolução que menciona que o terrorismo é uma ameaça à paz, mas esta resolução não é uma autorização para a ação militar.

Muitos idealistas desejam a criação de um governo mundial como solução para os conflitos gerados pela globalização. As grandes potências não desejam ter um governo mundial, elas praticam um governo mundial. Não é possível pensar em governabilidade mundial democrática se esta não se organizar como um sistema em que cada Estado tem um voto, ou em que o número de votos é definido de acordo com a população. Em ambos os casos, os países que hoje constituem o centro do sistema mundial estarão em absoluta minoria. Porém eles detêm a maior parte da riqueza mundial, do poder tecnológico, do poder militar. Então o que hoje existe é um sistema mundial pseudo-democrático, em que há um número muito grande de agências internacionais, cada uma com seu processo decisório distinto. Mas, de um modo geral, os países altamente desenvolvidos detêm influência maior e decisiva em cada uma dessas agências. Isso é o que chamei de estruturas hegemônicas de poder. A influência das grandes potências nessas estruturas varia de acordo com a situação específica. No centro dessas estruturas estão as grandes potências, em especial os EUA. Então as normas internacionais que configuram a governança mundial são elaboradas em diversos foros, de forma distinta do que ocorre no caso do Estado nacional, onde há um foro único de elaboração, que é o Parlamento nacional. No sistema mundial não há isso. Nem pode haver por causa da concentração de poder, de um lado, e da distribuição demográfica, de outro. Mas há um processo de alteração em curso, que visa conferir maior poder às grandes potências, por meio desses organismos, para interferir na periferia, principalmente. O Fundo Monetário interfere nos países periféricos de forma supostamente legítima por ser uma agência "internacional", porém na realidade suas decisões são controladas pelas grandes potências.

Às vezes novos países são admitidos nessas estruturas. A Rússia foi admitida no G-8. O chanceler da Alemanha propôs há tempos um convite à China para integrar o G-8. Assim, o desafio para cada Estado individualmente, é de como participar desse processo. Não se tenha ilusões sobre ele, de pensar que o mundo está caminhando para a paz. Isso seria uma ilusão terrível e que tem levado a políticas nacionais altamente equivocadas. Porém, nada é impossível quando há determinação. No Japão do século passado, seus estadistas iniciaram uma estratégia consistente e persistente, que permitiu que um arquipélago de ilhas feudais, arcaicas e fracas se transformasse na segunda potência econômica do mundo. E em uma das maiores potências militares.

É possível portanto inclusive para o Brasil...

Para qualquer país, principalmente com as características brasileiras. É necessário porém, que suas elites políticas, econômicas e militares, no governo ou na oposição, se convençam dessa possibilidade e da necessidade de mobilizar toda a sociedade para esse extraordinário esforço de superar as disparidades, reduzir a vulnerabilidade e de realizar o extraordinário potencial da sociedade brasileira, fazendo assim com que o Brasil se torne sujeito e não apenas objeto da história.

José Corrêa Leite é editor do Em Tempo e membro do Conselho de Redação de TD.