Sociedade

Sintoma da confusão entre o dever público e a liberdade privada é o interesse da imprensa e da população pelos detalhes da vida pessoal dos políticos

A piada, bastante conhecida, talvez só faça sentido em português: "fulano é um político honrado, ele faz na vida pública o mesmo que faz na privada". Diz respeito à corrupção, ao descaso dos políticos em relação a suas responsabilidades, à falta de caráter que parece já ter se tornado uma regra entre os homens públicos no Brasil. Mas a piada revela um erro de avaliação: certamente o político corrupto não faz, em sua vida privada, tanta sujeira quanto em sua vida pública. Quando um corrupto é pego com a mão na massa, é freqüente que o vejamos chorar diante das câmeras de televisão, jurando inocência em nome de Deus e da família. A vida privada, que na sociedade burguesa é a vida em família, representa o altar do indivíduo para o pensamento liberal; mesmo os políticos corruptos estão convencidos de que sua vida familiar está preservada da imoralidade de sua conduta pública. Não é impossível que PC Farias tenha sido um pai dedicado, ou que dona Sylvia Maluf esteja satisfeita com o marido que tem.

Em nome do bem-estar da família, afinal de contas, tudo é permitido; o homem corrupto um dia já teve vergonha de ser pobre, mas não se envergonha de enriquecer, "pelo bem da família", com o dinheiro alheio.

A vergonha é um sentimento que se refere justamente ao caráter público de nossos atos, como a culpa, mola mestra da consciência cristã, é a grande sinalizadora da lei moral que rege a conduta privada. A vergonha diz respeito à nossa imagem pública; um homem que inadvertidamente sai à rua com o zíper da calça aberto não se sente culpado ao perceber a distração – sente-se envergonhado. Claro que os sentimentos de vergonha se orientam de acordo com os valores que a sociedade reconhece como fundamentais para compor a imagem que apresentamos aos outros. Se os políticos que agem na vida pública como se fosse a privada não sentem vergonha disto, se ao depor nas CPIs que investigam suas irregularidades eles se apresentam antes como ofendidos do que como envergonhados, se são capazes de seguir até o fim com a mesma cara de pau, rebatendo as acusações com ameaças e tentativas de chantagem aos acusadores, é porque existe uma espécie de consenso inconsciente, entre o eleitorado e os eleitos, sinalizando que a corrupção é tolerada, quando não valorizada, no Brasil.

O clientelismo que rege a relação entre os políticos e seu eleitorado, tão antigo quanto a república, acaba por corromper a sociedade inteira. "Não vou votar em ninguém, até hoje nenhum político nunca me deu nada": quantas vezes já ouvimos frases como estas na rua? E se ela é mais freqüente entre os eleitores mais pobres, não significa que estes sejam mais corruptíveis que os ricos, e sim que os ricos têm meios de se articular melhor para vender seus votos em troca de vantagens particulares. Ora, se os governos descuidam de suas responsabilidades públicas, se não garantem aos cidadãos aquilo que é sua obrigação garantir – vagas suficientes nas escolas, atendimento hospitalar, urbanização decente, alimentos a preços acessíveis –, o político clientelista propõe compensar a falência do serviço público na forma de uma troca de favores, como se fossem privilégios particulares que só ele, o "doutor" que conhece uma porção de gente importante, pode oferecer a seus eleitores.

O que deveria ser conquista coletiva é cedido a uns e outros na forma de favor, como se o político fosse o dono da escola em que conseguiu matricular o filho de um cabo eleitoral, ou do hospital em que conseguiu vaga para a mãe de um prefeito do interior. Essa prática de desmoralização do espaço público, com a destruição dos mecanismos de articulação e construção da vida social em troca de uma corrida por supostos privilégios, freqüentemente é orquestrada pelos meios de comunicação, sobretudo a televisão.

A televisão substitui o espaço público no Brasil, transformando os cidadãos em telespectadores, a sociedade civil em mercado e o exercício da liberdade política em novas formas de reivindicação em nome dos direitos do consumidor. É entre as camadas sociais mais abandonadas pelo poder público que se sustenta o Ibope dos programas assistencialistas que, vendendo a miséria humana como espetáculo, se propõem a conseguir atendimento, proteção e justiça, suprindo de alguma forma, nos casos isolados que se apresentam ali, as carências da rede pública, da polícia, da justiça.

Hoje, substituímos a cidadania pela fama: o único jeito da população carente reivindicar aquilo a que teria direito, se esta sociedade fosse efetivamente democrática, é ter a sorte de seu problema aparecer no Ratinho, no Datena ou no Fantástico, onde seu desamparo é apresentado na forma de um caso particular, excepcional, capaz de comover os espectadores com o espetáculo de um sofrimento privado. O que se apaga e apazigua, com este dispositivo, é a dimensão política, portanto pública, do problema de cada um. Os participantes exibem na televisão a miséria social brasileira travestida de drama íntimo, particular, de apelo sentimental. Aceitam os cinco minutos de fama (que num outro contexto, regido por outros valores, seriam vividos como cinco minutos de vergonha e humilhação) em troca da falta de cidadania. O espectador comovido apaga o cidadão. O show e a caridade mediada pela TV substituem a articulação da sociedade em defesa de seus direitos.

Não é de se estranhar que o palco privilegiado deste apagamento da dimensão pública da vida pelas imagens do drama íntimo seja a televisão. Quase sempre nos esquecemos de que as emissoras no Brasil também são concessões públicas tratadas como propriedades privadas. A sociedade nem sabe que pode cobrar dos donos das emissoras de televisão o cumprimento de suas responsabilidades públicas com a cultura, a informação, a educação. As concessões são renovadas quase automaticamente quando vence o prazo, sem debate no Congresso e muito menos com a sociedade. Já nos acostumamos a pensar que as emissoras pertencem ao Silvio Santos, ao Roberto Marinho, ao pastor fulano de tal, e que ninguém tem o direito de interferir na qualidade da programação. Confunde-se a  irresponsabilidade na gestão de mais este espaço público com liberdade de expressão. Eles mentem, e a gente gosta.

Também no período eleitoral o que deveria ser debate político vem sendo tratado como show. O eleitor é um consumidor? O político é um produto? Elegemos quem oferece o comercial mais divertido, tem melhor aparência, apresenta as propostas mais fantasiosas numa linguagem infantilizada, de modo a nos fazer gozar com a imagem do candidato antes mesmo do dia da eleição?

Não quero, com estes argumentos, conduzir à idéia fatalista do fim da política. As administrações petistas estão provando, em muitas cidades brasileiras, que é possível se refazer a costura esgarçada do espaço público a partir da ação responsável dos governantes. Quando uma administração assume suas responsabilidades e responde por elas, prestando contas aos cidadãos e abrindo canais de escuta e diálogo, a dimensão da cidadania se refaz. Porto Alegre, com suas quatro gestões seguidas a cargo do PT, é o melhor exemplo desta empreitada bem-sucedida.

No entanto, mesmo os partidos de esquerda que têm tomado o poder às vezes parecem confusos quanto a suas responsabilidades. Em São Paulo, penso num exemplo singelo que, a meu ver, não é fruto de má-fé da prefeitura e sim de uma confusão deste tipo. Refiro-me à limpeza da cidade, cujo sentido metafórico foi insistentemente alardeado durante a campanha da atual prefeita Marta Suplicy: "limpar" São Paulo significa, a um só tempo, livrar a administração da herança de duas gestões corruptas como também tirar lixo das ruas, ajardinar as praças, dotando de dignidade tanto o espaço urbano quanto os cidadãos que circulam por ele. Além de rever as concessões com as companhias de limpeza, a prefeitura inaugurou sua administração com uma campanha pelo envolvimento dos paulistanos com o trabalho de limpeza da cidade. Alguns gestos simbólicos foram divulgados na imprensa, como o da participação voluntária de algumas pessoas na limpeza das paredes do estádio do Pacaembu.

Só que, por algum descuido ou falta de entendimento, a prefeitura até hoje não colocou cestos de lixo nas ruas. Nem um milhão de garis dariam conta da limpeza de uma cidade onde as pessoas não têm outra opção a não ser jogar o lixo na rua. Não importa que, num primeiro momento, estes equipamentos que faltam há anos possam ser recebidos com atos de depredação, sinalizando justamente a falta que faziam. Cabe à prefeitura repor cada cesto de lixo quebrado, até que sejam tão incorporados à paisagem quanto postes e orelhões. Se a prefeitura não oferece condições para que o cidadão cuide do espaço urbano, o apelo à consciência transforma-se num apelo culpa, à má consciência individual.

Não é pela má consciência que os paulistanos vão se engajar na recuperação da cidade. Pelo contrário: se um líder político tenta se sustentar apelando, não para valores próprios do espaço público, mas para a culpa que rege o âmbito da vida privada – não nos esqueçamos que este é o espaço da neurose de cada um – corre o risco de se tornar a primeira vítima de acusações e maledicências a respeito de sua vida pessoal.

Pois este é o outro sintoma da confusão entre o dever público e a liberdade privada: o interesse da imprensa e da população pelos detalhes da vida pessoal dos políticos. Por um lado, isto pode ser efeito da impunidade da qual ainda gozam muitos políticos corruptos ou irresponsáveis. É como se, descrentes da possibilidade de puni-los por sua má conduta pública, procurássemos culpá-los pelos pecados cometidos na vida familiar, afetiva, que escapam ao âmbito da política. Por um lado, se para a mentalidade liberal a vida privada parece valer mais do que a vida que se pode construir no espaço público, se a liberdade e os prazeres da vida familiar nos são oferecidos como pobres compensações pela mediocridade de nossas possibilidades de criação coletiva, é nos fatos da vida privada que a sociedade vai procurar evidências do valor e da confiabilidade dos políticos.

O episódio da separação do casal Suplicy, poucos meses depois da posse da prefeita de São Paulo, nos deu provas disto. É verdade que ambos tiveram uma grande sabedoria no trato com a imprensa, não ocultando o que podia ser revelado e deixando rigorosamente de lado todos os detalhes que poderiam alimentar a fome por fofocas da mídia e do público. Mas mesmo esta sabedoria não impediu que uma certa confusão se estabelecesse. Mais de uma vez escutei, de gente mais ou menos informada, comentários do tipo: "se ela não sabe administrar o casamento, como vai administrar uma cidade?" Como se o casamento fosse uma empresa a ser administrada, ou como se a competência quanto à gestão de uma cidade fosse uma questão sentimental. Evidentemente esta confusão aumenta em se tratando de uma mulher, já que até hoje a divisão entre o público e o privado é pensada nos moldes do século XIX, como uma divisão entre o espaço dos homens e o das mulheres. Não foi só pela novidade de seu cargo executivo que, no período da separação, a conduta de Marta Suplicy provocou mais curiosidade que a de seu marido.

O interesse pela vida privada dos políticos mostra a desorientação dos eleitores a respeito de qual deve ser o âmbito da atuação política, que é onde deve se provar o valor do homem público, e o limite de sua vida íntima e familiar.

Maria Rita Kehl é psicanalista.