Nacional

O atual modelo baseado na estrutura militarizada de policiamento preventivo, somado à ineficiência da investigação policial, esgotou-se

O legado do período escravocrata e dos quase 40 anos de períodos de exceção – da ditadura Vargas ao período militar – foi uma força policial ineficiente para a tarefa de segurança pública da população, corrupta e autoritária. A lógica do aparato repressivo do Estado autoritário era a lógica da defesa do status quo das elites conservadoras. O obscurantismo por que passou o Estado brasileiro forjou um modelo de polícia alicerçado no arbítrio e na violência, cujo descontrole se justificava por ser capaz de segregar amplos setores “indesejáveis” da sociedade. A polícia foi inspirada para guerra e não para a paz.

A transição democrática que tem como marco a Constituição de 1988 não estabeleceu mudanças no setor1.A política de segurança pública continua sendo a mesma da violência explicita e ilegal da ditadura. O combate contra o crime comum segue linhas convencionais e anteriores à ditadura, enriquecidas pelas ilegalidades empregadas durante a militarização do policiamento preventivo, aliás, consagrada pela Constituição de 1988... A Constituinte reescreveu o que os governos militares puseram em prática. Não há transição, mas plena continuidade”.

O ex-secretário da Segurança Pública do Distrito Federal, professor Roberto Aguiar, define bem os parâmetros da polícia da democracia: “A segurança pública só tem sentido se operar dentro da estrita legalidade democrática, respeitando os direitos dos cidadãos, implementando os direitos humanos em suas práticas, formação e treinamentos. As ações policiais têm de respeitar as diferenças de gêneros, orientações sexuais, classes, idades, pensamentos, crenças ou etnias e combater a violência, não somente por via de ações específicas de segurança, em todas as suas formas, mas, principalmente, por vias de políticas públicas que atendam às demandas por habitação, saúde, educação e justiça, pois segurança, antes de tudo, é a possibilidade de se garantir condições de melhoria na qualidade de vida”.

A integração que queremos

Um dos maiores problemas estruturais das polícias estaduais é a dificuldade que de trabalharem de forma integrada. A dualidade histórica do setor de segurança pública criou um distanciamento das duas instituições. Conflitos de competência e duplicidade de gerenciamento, de equipamentos e de ações de policiamento, fazem parte do cotidiano.

A Polícia Militar, que tem função constitucional de fazer o policiamento preventivo e ostensivo na maioria dos estados, criou mecanismos de investigação, o chamado PM2 (2ª Seção do Comando), que acaba concorrendo com a Polícia Civil no que é de competência investigativa. Por outro lado, as polícias civis que não aprofundaram a investigação técnico-científica, não raramente, criam unidades de policiamento preventivo ostensivo com viaturas e policiais tão ou mais caracterizados que as PMs. As polícias civis pouco andam à paisana com viaturas descaracterizadas para investigação. Os governos estaduais nunca deram importância para isso.

Há duplicidade até mesmo nos sistemas de comunicação e informatização de dados. Só há pouco tempo alguns estados estabeleceram a integração territorial e gerencial das polícias e a esfera de atuação de ambas nas regiões e municípios passou a ser a mesma. Mas isso é pouco, é necessária, mesmo com a limitação constitucional, a criação de um Sistema Integrado de Segurança Pública nos estados, em que as duas polícias estejam diretamente subordinadas ao secretário. Em vários estados, em especial no Nordeste e em Minas Gerais, os secretários só têm poder de comando prático das polícias civis. Os comandantes gerais das PMs têm total autonomia, constituindo-se órgão com status de secretaria, definindo orçamentos e o planejamento da ação policial. Com exceção de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, os efetivos das PMs são muito superiores aos da civil. É praticamente impossível estabelecer um planejamento estratégico integrado da ação policial se a Secretaria de Segurança não tiver poder de comando da PM, que representa de 70 a 80% do efetivo em vários estados. Só a partir da subordinação das duas polícias ao secretário de Segurança será possível criar um Sistema Integrado que deverá contar com os eixos básicos a seguir.

  • Unificação progressiva das academias e escolas de formação.
  • Integração do sistema de comunicação, área territorial e informatização de dados criminais.
  • Criação de órgão integrado de informação e inteligência policial, vinculado ao gabinete do secretário.

Os antigos Deops das polícias civis e o serviço reservado das PMs tiveram sua inteligência e informação mais a serviço da polícia política, com intuito de “bisbilhotar” os movimentos sociais, populares e sindicais e até o próprio governo. Um órgão de informação e inteligência tem que ser voltado exclusivamente para combater o crime organizado, prevenir e inibir práticas delituosas de agentes policiais e subsidiar o planejamento estratégico da ação policial.

  • Corregedoria única, composta de policiais das duas polícias, vinculada diretamente ao secretário e não aos comandos.
  • Programa Integrado de Saúde Mental.

A função policial é extremamente estressante. Muitas vezes policiais tornam-se alcoólatras, dependentes químicos, cometem suicídio por não terem o devido acompanhamento. Soma-se a isso a necessidade de fazer bico (serviço extra de segurança) para complemento salarial. Um programa integrado de saúde mental, coordenado e executado por profissionais de fora da atividade policial, contribuirá com a qualidade de vida dos policiais e influirá na relação desses com a população.

  • Plano integrado de cargo e carreira e estabelecimento de piso salarial.

As manifestações de policiais e as greves ocorridas nos vários estados refletem o descontentamento de setores das polícias estaduais com a questão salarial. Mesmo com a proibição constitucional de greve no setor, os baixos salários pagos para a maioria têm levado ao agravamento da crise. No estado de São Paulo, segundo pesquisa da Ouvidoria da Polícia, de cada dez PMs mortos, oito morrem na folga, possivelmente fazendo o “bico da morte” para complemento salarial. É emergente piso mínimo salarial compatível com a importância e essencialidade da função policial, diminuindo a diferença entre o maior e o menor salário.

Uma das medidas de curto prazo para minimizar a situação é o pagamento de horas extras para evitar os bicos. Um sistema integrado deve priorizar repensar o plano de cargos e carreira na atividade policial. Duas polícias prevêem na prática duas carreiras. Estudar e viabilizar carreira única é uma motivação para o conjunto dos policiais. Enquanto isso não acontece é preciso criar mecanismos que possibilite policiais da base operacional galgarem outros cargos ou postos nas instituições.

  • Proteção à integridade física do policial.

É costumeiro os governos estaduais estabelecerem como prioridade ou política de segurança a compra de viaturas, armas, munições e helicópteros. A maioria dos policiais que exerce atividades de rua não conta com colete leve à prova de bala. É preciso garantir que nenhum policial em atividade de rua deixe de ter equipamento essencial.

  • Cargos de confiança ou direção não devem ser ocupados por policiais sócios ou donos de empresas de segurança.
  • Policiais que participaram de tortura não devem ocupar cargos de confiança ou direção no Sistema Integrado de Segurança Pública.

Durante os períodos de exceção pelos quais passou o Estado brasileiro, a prática da tortura era endêmica e o setor de segurança pública o que, com maior visibilidade, exercia o arbítrio. A Constituição 1988 consagrou o princípio de que a tortura é crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Não obstante, apenas depois de quase uma década foi que o Congresso Nacional aprovou, em 1997, lei que tipifica o crime de tortura. No entanto, a tipificação do crime de tortura não atuou como fator inibitório de sua prática.

No Sistema Integrado de Segurança Pública proposto que visa a estabelecer as diretrizes para um novo modelo de polícia, a prática da tortura não será tolerada. Policiais que durante os períodos ditatoriais participaram da prática de tortura não deverão ocupar cargos de direção ou confiança e os órgãos corregedores integrados devem investigar com absoluta prioridade todos os casos em que há indícios dessa prática. Na comprovação do ato delituoso, os agentes devem ser indiciados com tipificação correta (prática de tortura) e não por lesões corporais como costumeiramente se verifica.

  • Grupo Integrado de Mediação de Conflitos.

Os chamados grupos de elite das polícias civis e militares foram criados fundamentalmente para a repressão, são as unidades de choque das militares e os grupos de operações especiais das civis, não têm cultura de especialização na mediação de conflitos, como reintegração de posse, greves e manifestações sociais ou populares. Criar um grupo integrado pelas duas polícias que vise resolver questões de conflitos urbanos e rurais muito mais pela mediação do que pela força estabelecerá uma nova cultura nas polícias estaduais.

  • Ouvidorias de polícia autônomas e independentes com atribuição de fiscalização e investigação.

A criação de Ouvidoria de Polícia no Brasil ocorreu em 1995 no estado de São Paulo e representou a maior inovação no setor de segurança pública no que diz respeito à fiscalização externa da atividade policial. Constituindo-se em espaço público institucional da sociedade, contribui para a transparência no setor, recebendo, encaminhando e monitorando denúncias e reclamações. Pelos relatórios públicos de prestação de contas, a população tem conhecimento das irregularidades estruturais das polícias e dos delitos cometidos por policiais. Além de atender majoritariamente à população, as ouvidorias são canais privilegiados para que os próprios policiais encaminhem queixas de abusos de autoridade cometidos por superiores. A experiência de São Paulo se estendeu a outros estados culminando com a criação do Fórum Nacional de Ouvidores de Polícia, órgão consultivo do Ministério da Justiça.

A principal referência desse novo órgão de fiscalização é a total autonomia e independência em relação às polícias e ao próprio governo, à medida que os ouvidores têm a prerrogativa de mandato. Talvez a maior limitação estrutural seja o impedimento de efetuar investigações. Quando não concordam com os relatórios de conclusão de apuração das corregedorias, o máximo que podem fazer é encaminhar a denúncia ao Ministério Público. Para que as ouvidorias de polícia possam intervir com maior eficiência na violência policial é necessário que possam também ter a atribuição de investigação, elaborando relatórios de investigação diretamente ao Ministério Público, quando entenderem que a apuração dos órgãos corregedores é insatisfatória. Apoiar e incentivar as ouvidorias existentes e propor sua criação nos estados onde não existe faz parte do projeto de construir uma polícia democrática e transparente.

  • Política multidisciplinar e avaliação sistêmica.

Problemas sociais como desemprego, concentração exorbitante de renda e riqueza, desagregação familiar e falta de políticas públicas para erradicar a pobreza alimentam a violência. Entretanto, as causas sociais não podem ser usadas como justificativas para escamotear deficiências estruturais das polícias e sim servir de parâmetro para a necessidade de uma política multidisciplinar para o Sistema Integrado de Segurança Pública que se pretende. Articular o setor com as áreas de políticas sociais dos governos, implementando ações integradas de combate à violência, não somente específicas de polícia, mas, principalmente, por políticas públicas que atendam às demandas por habitação, saúde, educação, cultura, lazer e justiça, compreendendo segurança como melhoria da qualidade de vida é prioridade.

Nessa perspectiva é importante a criação de comissões civis de polícia, compostas por representantes da sociedade civil organizada, principalmente nas regiões periféricas.

  • Avaliação e reciclagem sistêmica.

Estabelecer avaliação sistemática do trabalho policial e reciclagem obrigatória para que os policiais possam apreender novas técnicas e recursos para investigação e para o policiamento preventivo ostensivo.

Mudanças necessárias na PM

Desmilitarização do policiamento preventivo ostensivo – O Brasil teve poucos momentos em que o policiamento preventivo e ostensivo não tenha sido feito por instituição de caráter militar. A militarização histórica do policiamento de rua criou uma dicotomia estrutural nas PMs, elas têm uma função de natureza civil e uma estrutura de natureza militar. Essa dicotomia trouxe entre outros problemas, uma polícia militar que não demonstra nas funções de natureza civil o mesmo vigor na disciplina e hierarquia observado “interna corporis”. Soma-se a isso a criação de uma justiça especial para julgar os crimes cometidos por policiais militares, não só os “propriamente militares” como também os de natureza civil (projeto de lei n.º 9.299/96, do ex-deputado Hélio Bicudo, mudou a competência nos casos de homicídio passando da justiça militar para a justiça comum o julgamento). Os regulamentos disciplinares das PMs reproduzem o do Exército.

Os efeitos dessa dicotomia atingem em cheio a população. Punidos por questões internas a partir de regulamentos arcaicos, os policiais “descontam” na população a pressão sofrida, com agravante de serem treinados para irem à rua como se fossem para a guerra. A “caça aos inimigos” tem trazido como resultado prático a violência policial letal. Rever os regulamentos disciplinares, tratando como transgressões graves àquelas cometidas quando o policial estiver exercendo sua função civil (com punição de suspensão e não prisões), além de elevar a auto-estima dos policiais, será fator determinante na desmilitarização do policiamento preventivo ostensivo.

Exemplo é o novo regulamento da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, criado pelo governador Olívio Dutra, que acabou com a prisão administrativa, eliminou dezenas de transgressões internas absurdas e combinou disciplina e hierarquia com Estado de Direito. Manteve-se a estética militar e não a estrutura militar, característica de unidades fechadas, com funções institucionais diferentes das forças policiais. No novo Regulamento da Brigada é destacada a expressão “ordem legal”. O fim da pena de prisão administrativa, o fato do regulamento não atingir a reserva e punir como transgressão grave policial dono ou sócio de empresa privada de segurança, por último, considerar como manifestações essenciais de disciplina e hierarquia o respeito à dignidade humana, à cidadania, à justiça, à legalidade democrática e à coisa pública, caracterizam uma perspectiva de polícia democrática com regulamento democrático.

Diminuição de patentes – Os graus hierárquicos das PMs reproduzem os graus hierárquicos do Exército, que são doze. Para diminuir a distância entre oficiais em função superior, em função intermediária e praças em função subordinada, são fundamentais projetos de leis, decretos que diminuam as patentes nas polícias militares.

Controle rigoroso do uso da força letal (regulamentação do uso de arma de fogo por policiais) – Dos quase 400 mil policiais militares efetivos dos estados e do Distrito Federal, 82 mil estão em São Paulo. É a maior polícia estadual da América Latina. Na década de 90, segundo dados da Ouvidoria da Polícia, colhidos junto à Corregedoria da Polícia Militar, a PM do estado foi responsável em dez anos pela morte de 7.087 pessoas (80% dos policiais envolvidos estavam em serviço policial e 20% na folga). Nesse mesmo período, 153 policiais militares foram mortos em serviço em confronto com marginais. A tese comum dos comandos das PMs é que as mortes de civis têm como causa o “confronto com marginais”. É possível que nenhuma teoria de guerra consiga justificar essa tese.

Em 1999, a PM paulista vitimou 577 pessoas (outros 89 foram mortos por policiais civis). Pesquisa realizada pela Ouvidoria da Polícia, em 222 mortos a tiros pela polícia nesse ano, procurou identificar as circunstâncias em que as pessoas foram mortas. Das 193 ocorrências pesquisadas envolvendo 474 policiais militares, 62 policiais civis e 365 civis, o resultado geral da pesquisa apresentou os seguintes dados:

Dos civis – As ocorrências envolveram 365 civis, 236 mortos e 18 feridos, ou seja, 93% de mortos e 7% de feridos;

- Das vítimas civis, em 51% havia perfurações nas costas (dentre esses 11% eram menores);

- 36% das vítimas apresentaram perfurações de arma de fogo na cabeça;

- 56% não tinham antecedentes criminais (11% menores);

- Da situação das vítimas, em 28% não eram objetivos o ato delituoso e 28% estavam na condição de suspeitos, ou seja, 56% eram suspeitos ou inocentes;

- Do total de ocorrências, em 44% não havia testemunhas;

- Entre às 18h e às 6h, estão 68% das ocorrências, 41% delas entre às 18h e 24h. Nesse período morreram 44% das vítimas – 82% com perfuração na cabeça ou na região das costas;

- Com relação à cor da pele, 54% das vítimas eram negras e 46% brancas;

- Das armas recolhidas, 67% eram de policiais (463) e 33% de civis (233), apenas 18% do total de armas recolhidas foram periciadas.

Dos policiais – As ocorrências envolveram 474 PMs, 7 foram mortos e 34 feridos. Policiais civis envolvidos, 62. Desses, 2 foram mortos e 7 feridos. Total geral dos mortos, 96% civis e 4% policiais.

Esses dados exemplificam que nossas polícias, principalmente as PMs, foram treinadas mais para caçar o inimigo do que para evitar o crime; e as vítimas são quase sempre as mesmas: jovens, pobres das periferias. A violência policial letal no Brasil é estrutural. Um dos pontos fundamentais relativos à desmilitarização do policiamento preventivo e ostensivo é estabelecer um controle rigoroso do uso da força letal por policiais militares. Na democracia, o monopólio do uso da força pelo Estado, por meio das polícias, tem que estar pautado na legalidade, sob controle e fiscalização.

Na perspectiva de regulamentação do uso de arma de fogo por policiais é necessário colocar em prática os “Princípios básicos sobre o uso da força e das armas de fogo por agentes da lei” da ONU: “os Agentes da Lei não usarão armas de fogo contra pessoas, exceto em defesa própria ou em defesa de outros, contra ameaça iminente de morte ou ferimentos graves, para prevenir a ocorrência de um crime particularmente grave que envolva séria ameaça à vida ou para prender uma pessoa que apresente perigo e que resista à autoridade, ou para evitar a sua fuga e apenas quando meios menos extremos sejam insuficientes para conseguir esses objetivos (...) Sempre que o uso da força e das armas de fogo seja inevitável, os agentes deverão:

1-Minimizar o dano e os ferimentos e respeitar e preservar a vida humana;

2-Exercitar contenção neste uso e agir em proporção à seriedade do crime e ao objetivo legítimo a ser alcançado;

3-Assegurar que seja dado assistência médica a qualquer pessoa ferida ou afetada o mais rápido possível;

4-Assegurar que os parentes ou amigos íntimos da pessoa ferida ou afetada sejam notificados o mais rápido possível..”

Os comandos das PMs devem implementar:

- Relatório obrigatório sobre uso de arma de fogo, em que os policiais envolvidos nas ocorrências terão de descrever detalhadamente as circunstâncias das ocorrências com vítimas fatais;

- Orientação expressa de não utilizar arma de fogo em operações de reintegração de posse, estádios de futebol, greves e outros eventos com multidões;

- Orientação expressa para que em blitz, quando o veículo não responder à ordem de parada, em nenhuma circunstância deverá ser efetuado disparo de arma de fogo que possa atingir o “infrator”;

- Condicionamento de tiro preventivo, onde se prioriza nos stands de tiro acertar pernas, braços e ombros e não as partes letais do corpo.

Corpo de Bombeiros na defesa civil dos estados – É preciso desvincular o Corpo de Bombeiros das PMs, em razão de ser uma instituição a defesa civil e não ao policiamento preventivo e ostensivo.

Redução do efetivo nas funções administrativas.

Mudanças necessárias na Civil
Investigação técnico-científica como princípio – É preciso resgatar e implementar o caráter técnico-científico da investigação. A tradição autoritária e arbitrária da polícia investigativa e judiciária estabeleceu a violência e a tortura como método de investigação. O surgimento dos informantes acabou estabelecendo relação de “promiscuidade da polícia com a criminalidade”. Os chamados “gansos ou X-9” passaram a ter importância na estrutura da Polícia Civil, pela incapacidade de criar novas técnicas científicas de investigação. Quanto mais ciência na investigação, menos violência.

Autonomia dos órgãos periciais – A perícia é vital para persecução penal. Os institutos de criminalística e os institutos Médico Legal têm que ter autonomia para não sofrer nenhuma ingerência nos laudos que produzem. Maior vinculação desses órgãos com as universidades, centros de pesquisas e com o Poder Judiciário é fundamental para um Sistema Integrado de Segurança. Eles devem estar vinculados ao secretário da Segurança e não às direções das polícias civis.

Desvinculação dos departamentos de trânsito das polícias civis.
Descaracterização das viaturas para investigação – Não é possível estabelecer uma investigação eficiente com uma frota de viaturas caracterizada como a polícia preventiva e ostensiva. Descaracterizar pelo menos 50% das viaturas das polícias civis é medida que visa condicionar os policiais para investigação.

Programa de assistência social nos distritos policiais. – Parcela considerável do atendimento à população nos distritos e delegacias não são relativos a crimes. Na verdade, por qualquer desinteligência corriqueira, é à delegacia de polícia que se dirige grande parte da população. Criar um programa de assistência social nos distritos, executado por profissionais não pertencentes à polícia, melhora a imagem da instituição e contribui para que os policiais se ocupem dos casos mais graves.

Oxigenação da direção da Polícia Civil – Na maioria dos estados, as cúpulas das Polícias Civis não se alteram há décadas. A aposentadoria compulsória dos delegados de polícia de Classe Especial aos 70 anos impede oxigenar a instituição. Estabelecer um novo plano de cargos e carreira que reveja essa aposentadoria, possibilitando maior ascensão às direções das polícias civis, é condição para um Sistema Integrado de Segurança Pública, pois motivará os setores intermediários. Além disso, é preciso estabelecer um período máximo no último posto ou cargo que não ultrapasse 7 anos.

Custódia de presos por agentes penitenciários e não por policiais civis – Em São Paulo, a Polícia Civil é responsável pela custódia de mais de 40 mil presos dos 90 mil no estado. Em condições subumanas devido à superlotação, parte desses presos acaba cumprindo pena nas delegacias, em situação totalmente ilegal. Cuidando de presos, os policiais civis se distanciam da atividade fim que é a investigação. Supressão a curto e médio prazos dos cárceres em delegacias, substituindo-se por casas de custódia vinculadas ao sistema penitenciário, é uma necessidade para tornar mais eficiente o trabalho da polícia e estabelecer condições civilizadas de cumprimento da pena.

Improdutividade dos inquéritos policiais – O que mais dá caráter de polícia judiciária dessa polícia é o inquérito policial. Talvez seja também o que mais simboliza sua ineficiência estrutural. Revelou-se ser um mecanismo em que os trâmites burocráticos sobrepujaram a finalidade da Polícia Civil, a investigação, com indisfarçável prejuízo à eficiência punitiva e ao respeito aos direitos do cidadão. Na fase do inquérito são constituídas, sem o crivo do contraditório, provas que ganham caráter definitivo, como aquelas destinadas a certificar a existência material do crime. Essa prova pré-constituída, na medida em que orienta toda prova judicial, atribui ao policial civil poder sem controle, pois sua elaboração não conta com a presença do Ministério Público (MP) e do advogado de defesa. O indiciamento, mesmo sem implicar prejuízo de culpa definitiva, traz danos irreparáveis aos cidadãos. Essa capacidade de vulnerar o cidadão, transforma o inquérito policial, muitas vezes, em sua fonte geradora de corrupção e violência, transformando suspeitos, vítimas e testemunhas em autênticos reféns de maus policiais.

Por outro lado, há enorme abismo entre a comunicação do crime e a persecução penal propriamente dita, ou seja, a maioria absoluta dos boletins de ocorrências sobre crimes não se transformou em inquérito policial e os poucos inquéritos não produzem denúncias no MP. São Paulo, por exemplo, que tem 36 mil policiais civis, em 1999, registrou só na capital 523.396 boletins de ocorrências de crime, 73% de delitos de natureza patrimonial. Com base nesses boletins foram instaurados apenas 84.519 inquéritos policiais (cerca de 16% do total), sendo que o MP formalizou 25.301 denúncias com fundamento nesses inquéritos, dos quais 12.102 foram iniciados por autos de prisão em flagrante em que a atividade investigatória é praticamente inexistente2. A produtividade de polícia judiciária da maior Polícia Civil do Brasil não ultrapassou, nesse aspecto, 3%. O aprimoramento da persecução penal passa pela extinção ou reforma radical do inquérito policial. Como não cabe aos governos estaduais sua extinção, é preciso estabelecer algumas reformas para torná-lo menos inútil e fonte propiciadora de violência e corrupção.

Novo modelo de segurança

O atual modelo de polícia dualizado, com estrutura militarizada de policiamento preventivo e ostensivo, somado à cultura de ineficiência no que tange à investigação policial esgotou-se. A criação do Sistema Integrado de Segurança Pública nos estados tem por objetivo um novo modelo de polícia para o país. Essas mudanças práticas dependem fundamentalmente da vontade política dos governantes.

O Sistema Integrado propiciará mais policiais nas ruas, com melhoria na qualidade e eficiência do serviço público prestado. Com salários compatíveis com a importância da função, teremos policiais mais motivados. A otimização de recursos propiciará o aprimoramento do aparelho policial com melhorias tecnológicas e investimentos.

Entretanto, as mudanças mais profundas na segurança pública, que demarcarão o fim do ciclo de polícia criada nos períodos autoritários, passam pelo estabelecimento de um novo marco legal para o setor. O Sistema Integrado deve ter como objetivo a criação paulatina de uma ou várias polícias estaduais de ciclo completo, todas de caráter civil. As mudanças constitucionais fundamentais para unificação das funções policiais são:

- Extinção dos tribunais e auditorias militares estaduais;

- Lei Orgânica Única para os policiais estaduais de ciclo completo;

- Desvinculação das polícias militares como reserva do Exército;

- Investigação preliminar sem indiciamento;

- Estabelecimento de piso e teto nacionais de vencimentos para policiais, diminuindo a distância entre os vencimentos da base e do topo da instituição;

- Órgãos periciais vinculados ou ao Poder Judiciário, ou às secretarias de Justiça;

- Ouvidorias de polícia autônomas e independentes, com poder constitucional de fiscalização, investigação e auditoria;

- Carreira com poucos graus hierárquicos.

Com a mesma ênfase com que defendemos o aumento do piso salarial dos policiais, defendemos o fim das execuções sumárias e da tortura.

Os policiais devem ter mecanismos novos de relação com os cidadãos. Sua formação não pode estimar a morte; ele deve se convencer de que evitar o crime é mais eficaz do que “caçar criminosos”. É preciso priorizar o combate ao narcotráfico, ao crime organizado, aos homicídios dolosos e aos grupos de extermínio, investigando e reprimindo do grande ao pequeno.

Pobres, negros, minorias e moradores da periferia devem deixar de ser “estereótipos de marginais”. Se temos 70% de pobres e são eles que sofrem cotidianamente a violência policial (ao mesmo tempo em que são as principais vítimas dos efeitos da criminalidade), é com eles como sujeitos do processo que preferencialmente tem de ser forjado um modelo de polícia cidadã, incompatível com militarização, corrupção policial e impunidade.

O nível de desenvolvimento humano de um país é também medido pelo perfil de sua polícia.

Benedito Domingos Mariano é sociólogo, foi ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo na gestão Mário Covas e um dos fundadores do Movimento Nacional de Direitos Humanos, é ouvidor geral do Município de São Paulo.