Internacional

Víctor de Gennaro, secretário-geral da Central dos Trabalhadores Argentinos (CTA) esteve no Instituto da Cidadania no dia 11 de março passado para ajudar a entender melhor a crise, as mobilizações sociais e o cenário político da Argentina. O encontro foi com Lula, Aloízio Mercadante e outros dirigentes da CUT e do PT. A seguir, uma síntese de seu depoimento

A crise na Argentina é muito profunda e para a maioria do povo trouxe uma deterioração das condições de vida nunca antes conhecida. Quero diferenciar duas crises: a crise dos setores dominantes e a do campo popular. Para entender o que está acontecendo, é necessário separá-las.

Há 26 anos ocorreu um genocídio na Argentina, que veio acompanhado,no campo econômico, por uma mudança: a priorização da acumulação da renda no setor financeiro. Isto acarretou um processo sistemático de desindustrialização que acabou gerando, no bloco dominante, setores privilegiados: os mais ligados ao capital financeiro. O endividamento serviu para permitir a manutenção da renda dos grandes grupos econômicos. Numa primeira etapa, estatizou-se a dívida externa dos grupos locais. Logo depois vieram as privatizações, e aqueles grupos se tornaram sócios das empresas transnacionais que se instalaram no país. O processo de dolarização, o famoso “um a um”, significou a possibilidade desse bloco dominante compartilhar negócios com os setores financeiros estrangeiros. A presença do grupo produtivo local foi paulatinamente diminuindo e foi-se priorizando mais e mais as empresas públicas privatizadas que, com a paridade entre o peso e o dólar, podiam fazer remessas ao exterior. O setor financeiro podia obter lucros especulativos extraordinários; isto significou a possibilidade de continuar financiando esse tipo de rentabilidade com o endividamento externo durante muito tempo.

Hoje, está em evidência todo o estrago causado por esse processo. Para se ter uma idéia, a Argentina tinha, em 1976, 22 milhões de habitantes, dos quais 2 milhões eram pobres; atualmente, tem 37 milhões de habitantes, 3 milhões de desempregados, 18 milhões de pobres e 6,6 milhões de indigentes, segundo dados de maio de 2002.

Houve um processo de destruição das pequenas e médias empresas, do mercado interno, da qualidade de vida, e um retrocesso na participação na renda nacional. Em 1975, os assalariados tinham 44% de participação na renda nacional; na atualidade, os mais otimistas dizem que essa participação não chega a 20%.

Foram 25 anos de duro retrocesso, sendo que, durante a maior parte do tempo, essas políticas foram levadas adiante no marco da democracia.  Tudo começou com a ditadura, porém, a partir de 1983, iniciou-se um amplo processo de participação democrática, e isso faz com que os partidos tradicionais apareçam diante da opinião pública como co-responsáveis por tudo que aconteceu. Assim, não se trata somente da responsabilidade da direita, mas também dos partidos tradicionalmente populares: a UCR (União Cívica Radical), com sua bandeira histórica de defesa dos valores democráticos; e o PJ (Partido Justicialista), com a da justiça social. Foram eles que governaram o país nos últimos 18 anos e, sem dúvida alguma, são co-responsáveis por essa política.

Com a posse do presidente De la Rúa iniciou-se um processo novo, à medida que, naquele momento, a maioria do povo já tinha começado a votar contra as políticas econômicas da direita. De la Rúa gerou expectativas de reversão da situação. Porém, rapidamente imperou a subordinação à aliança dos grupos econômicos transnacionais e locais, e então começou uma disputa entre estes para ver quem hegemonizava as políticas econômicas. Em 2001 se discutiu muito acerca da manutenção do câmbio, da dolarização ou da desvalorização. Para nós, é um debate falso. Mas para o bloco dominante era essencial, porque, por um lado, a desvalorização significava, para os grupos econômicos produtivos locais, a possibilidade de competir nas exportações e, de certa forma, se recompor, já que o processo de importações havia destruído a estrutura industrial nacional. Depois de dez anos de uma economia “um a um” com o dólar, a indústria local que conseguiu sobreviver é minoritária. Já para os partidários da dolarização - Telefónica de España, Telecom, Repsol-YPF, isto é, todos os setores de investimento estrangeiro –, esta significava a possibilidade de continuar efetuando as remessas de dólares ao exterior. Essa disputa durou o ano todo. Expressou-se na proposta de López Murphy, que queria um ajuste permanente na economia para poder pagar a dívida externa, porque não há mais possibilidade de crédito. Depois, Cavallo voltou querendo encontrar uma saída que levasse em conta os interesses dos dois setores. Não foi possível e houve uma crise muito forte entre eles. Pela primeira vez em 25 anos os grupos de poder econômico estão se confrontando na Argentina. Mas o importante é que, além de uma briga entre eles, trata-se de uma crise de consenso. Eles já não conseguem convencer a população da correção dessas políticas. Há dez anos, quando Menem estava no poder, lamentavelmente houve um momento em que existiu um consenso a favor das políticas privatistas, da política do “um a um”; o povo acreditou que esse era o caminho em direção ao primeiro mundo, acreditou na possibilidade de que, entregando o gás, a luz, a água e o petróleo, poderia haver educação, saúde, previdência. Isso terminou. Hoje, a UCR e o PJ não têm nenhuma possibilidade de conseguir apoio para essas políticas.

Estamos diante de uma crise institucional de dimensões até então desconhecidas. A crise não é só partidária. Ela também sindical, religiosa, cultural, comunicacional, empresarial. Hoje, não há quem represente um projeto de estabilidade. Por isso é que há uma crise espantosa de governabilidade. Como disse antes, há uma crise “deles”, que se choca com essa crise “nossa”.

Novos atores sociais

No início de 2001 as pessoas começavam a questionar o sistema, mas ainda não se sabia muito bem como. A idéia força era: “É preciso tirar Menem e abrir o espaço de democratização”. A Frente Grande, um partido que foi juntando setores de centro-esquerda e esquerda, que  depois conformou a Aliança que levou De la Rúa  ao poder, havia aberto um espaço de debate. Mas essa experiência logo acabou; ficou claro que o país era governado pelos grupos econômicos. E a subordinação a essas políticas fez com que a crise de representação se expressasse muito mais claramente.

O ano de 2001 foi de mobilizações populares, de muitas lutas setoriais. Uma das principais lutas foi a empreendida para salvar a Aerolíneas Argentinas. E não foi por acaso que esse conflito teve tanto apoio na sociedade. Aerolíneas Argentinas era como a Argentina: levava a bandeira azul e branca, foi privatizada, endividada, mandaram os trabalhadores embora e flexibilizaram... E estava a ponto de falir.

Também marcou presença o movimento de piqueteiros, que teve origem na mobilização de pessoas que perderam seu trabalho, como na YPF, ou nas empresas de água ou luz. Começaram a protestar bloqueando o tráfego nas estradas. Nos últimos anos, em especial em 2001, os piquetes  já não eram defensivos como no início, e estavam articulados num movimento nacional de assembléias de piqueteiros que, durante três semanas, bloqueou as estradas. A Tenda Branca,1 dos professores, que já antes, durante o governo Menem, havia sido um exemplo de luta, continuou com a disputa pelo processo educativo. Os trabalhadores estatais também continuaram na batalha.

Os setores que lutaram pelos direitos humanos durante e depois da ditadura, agora não só brigam pelos direitos humanos,  mas se integraram ao movimento social. É importante dizer que o terror, na Argentina, teve uma instrumentalização política permanente, até na democracia. Menem dizia: “eu ou o caos”, “eu ou o golpe militar”, “isto ou o abismo, a "hiperinflação”, colocações nas quais o terror era ferramenta para gerar políticas e condicionar consensos. Isto foi um fator de muito peso, tanto que gerou um campo popular muito defensivo, de resistência. É impressionante a luta de resistência de nosso povo, mas ele demonstra dificuldades para passar à ofensiva.

A Frenapo

No ano passado, a Confederação de Trabalhadores Argentinos (CTA) colocou a necessidade de começar a dar corpo a um movimento social e político no país. Para nós, a questão não é criar um novo partido, já que a crise de representação é de tais dimensões que não adianta trocar o representante, mas sim dar poder aos representados. É necessário voltar a crer que a Argentina pode ter um projeto político diferente, porque hoje a lembrança do genocídio, ainda presente, faz-nos aceitar que se pode lutar, mas não se pode mudar. Sem mudar esses termos, será muito difícil colocar um projeto de transformação.

No ano passado, fizemos uma longa marcha, de Rosário até Buenos Aires (300 Km), durante 15 dias, para colocar uma proposta para o país. Dizíamos que não era possível construir uma proposta partindo do eleitoral, que havia que construí-la a partir de um programa construído em consenso com o povo. A idéia força era “nenhum lar pobre na Argentina”. É uma imoralidade que, num país exportador de alimentos, morram de desnutrição cem crianças por dia. Essas são as cifras oficiais de dois anos atrás, mas supomos que estejam muito mais altas.

Convocamos o campo popular a apoiar nossa proposta pensando que é possível resolver o problema de “nenhum lar pobre na Argentina” com 4% do PIB. De que modo? Dando um salário mínimo, por lar, de 500 pesos – naquele então 500 dólares –, que significaria um seguro de emprego e formação. Não o chamamos de seguro desemprego, porque entendemos que não é um subsídio; é um seguro de emprego e formação para chefes de família – homem ou mulher – desempregados, além de um salário universal para todas as crianças, de 60 pesos, graças ao qual 72% da classe trabalhadora, que integra a categoria “precária”, seria favorecida também. E um salário para os maiores de 65 anos que não tivessem nenhuma cobertura de aposentadoria. Isto significaria um investimento de 4% do PIB,com o qual conseguiríamos acabar com a pobreza. Seria algo fácil de se alcançar se houvesse vontade política.

Fomos debater com os meios de comunicação, com o governo etc. E escolhemos uma metodologia: exigir do governo uma consulta popular. Argumentamos que havia uma proposta alternativa que permitiria um choque de distribuição de renda, que permitiria reativar a demanda interna, que permitiria às pequenas e médias empresas voltarem a entrar em atividade, e solicitamos que ela fosse avaliada em consulta popular. Diante da falta de resposta do governo, decidimos que faríamos a consulta popular nós mesmos. Convocamos então vários setores a construir uma Frente Nacional contra a Pobreza, pelo Trabalho e pela Produção, que hoje é conhecida como Frenapo. Nessa frente estão presentes as organizações de direitos humanos, que têm muito prestígio; setores religiosos que constituem também uma referência muito digna; empresários – a Federação Agrária, que agrupa os pequenos produtores agrários, a APyME (Associação de Pequenos e Médios Empresários) que se incorporou porque, para eles, o problema principal não é financeiro e sim de demanda, já que hoje não há consumo interno e o comércio vai à falência. Também se fazem presentes estudantes, setores culturais e partidos políticos. Rompemos assim a dicotomia entre “o social que resiste” e “o político que só coloca a questão eleitoral”. Começamos a integrar tudo e obteve-se um resultado espetacular.

Fizemos uma marcha de 11 dias, de sete colunas, em setembro, saindo de Buenos Aires e indo para o interior buscar apoio em cada cidade. Formalizaram-se então as juntas promotoras da Frenapo pelo país. As eleições da consulta popular se realizaram de 14 a 17 de dezembro. E houve uma surpresa agradável: os mais otimistas pensavam que conseguiríamos chegar a 1,5 milhão de votos, mas votaram 3,1 milhões de pessoas! Vínhamos das eleições de 14 de outubro, nas quais o povo manifestou em grande parte um voto de protesto, em branco, nulo, contra o sistema político. De la Rúa perdeu 5 milhões de votos entre 1999 e 2001. E o PJ, que era a oposição, não os capturou; saiu como primeira força, mas perdeu um milhão de votos em relação a 1999. Cresceram as forças de esquerda, os companheiros da Alternativa para uma República de Iguais (ARI)2, da Frente para a Mudança (Frente para el Cambio3,do Pólo Social, que não chegaram a conformar uma frente única, mas mostraram um avanço de todos os setores populares.

O fim de De la Rúa

Paralelamente a isso, a partir de 14 de outubro o Partido Justicialista avançou no seu propósito de derrubar De la Rúa. O processo foi acelerado com o acordo entre Alfonsín e Duhalde. Foram os dois, radicalismo e peronismo, que avançaram num acordo de governo de unidade. Aí começaram os saques no dia 19 de dezembro, num primeiro momento impulsionados “de cima”. Mas logo eles perderam o controle, porque o desespero das pessoas é imenso. E não se saquearam os supermercados e hipermercados, porque esses estão bem vigiados; saqueou-se o que era possível. Gerou-se um confronto muito grande na maioria dos bairros da Grande Buenos Aires, da Grande Rosário, das grandes cidades em geral, onde há muita pobreza concentrada. Seguiram-se momentos de tensão. De la Rúa se negava a renunciar e convocou uma reunião de gabinete, na qual se falou da adoção do estado de sítio, o que em nosso país tem uma conotação muito forte. O Partido Justicialista e as forças da oposição começaram a convocar para ir ao Congresso pedir a renúncia de De la Rúa ou instaurar um processo de impeachment. De la Rúa declarou, às nove horas da noite, o estado de sítio, e então aconteceu algo que nos surpreendeu. Meia hora depois do seu discurso, começou o panelaço nas ruas de todo o país; foi impressionante a manifestação do povo. A televisão tentou explicar o fato como uma manifestação contra o corralito financeiro, medida econômica anunciada por Cavallo. Mas, na verdade, o maior panelaço que houve foi contra o estado de sítio! Terminou assim a ditadura militar dentro do nosso povo. Por isso é que esse fato é tão transcendental: é a primeira vez que, sem liderança política, saiu-se às ruas, de forma massiva e unitária, para não permitir o avanço do autoritarismo. Uma parcela significativa do povo argentino havia apoiado o golpe de 76, a maioria por medo. Desta vez houve uma reação popular espetacular.

Na época de Alfonsín, houve uma tentativa de golpe militar. Alfonsín tinha certo prestígio no início de seu mandato e quando ocorreu a tentativa de golpe, as pessoas também saíram às ruas, o que foi muito importante. Foi então que Alfonsín disse a famosa e lamentável frase: “Vão para suas casas, porque a casa está em ordem”, depois de negociar com os militares.

Mas, naquele momento, havia uma liderança política. Hoje não, há um processo de manifestação popular que abriu caminho a uma crise no campo popular. Por isso é que, em nosso jornal da CTA, nós dizíamos: “A casa está em desordem”, a casa, a Central, nossas cabeças, os partidos políticos, a cultura, tudo está em desordem na Argentina. Tudo está em discussão, não há uma alternativa clara.

O governo Duhalde

Duhalde começou com um discurso de abertura. Como havíamos tido algumas reuniões em virtude do debate sobre a Frenapo, e como tenho uma relação pessoal com ele, pelo fato de vir do peronismo, ele nos convocou rapidamente para conversar. Disse querer aprovar o seguro de emprego. Disse também que ia enfrentar os Estados Unidos, que ia se unir ao Brasil. Disse que estaria disposto a brigar contra as empresas públicas privatizadas, que ia pedir poderes especiais ao Legislativo e que precisava de uma trégua de noventa dias para encontrar um caminho de renegociação com o Fundo Monetário Internacional. É claro que não estávamos de acordo. Não só não achávamos que ele devesse pedir poderes especiais como pensávamos que havia que democratizar mais. A única forma de evitar as pressões, ou pelo menos condicioná-las, é gerando uma participação política maior. Dissemos que a prioridade política devia ser democratizar, que não havia possibilidade de trégua; que a questão não era desvalorizar ou dolarizar, mas sim distribuir a riqueza, gerar um choque distributivo.

Duhalde hoje representa os grupos empresariais locais que se transnacionalizaram. Suas primeiras medidas foram para ajudá-los: a desvalorização significou diluir suas dívidas, além de abaixar os salários e permitir melhores condições para as exportações. Estes grupos estavam endividados no mercado local, portanto, ao terem suas dívidas diluídas, puderam obter lucros espetaculares, pois têm a maior parte dos dólares investidos no exterior. Depois disso, Duhalde começou uma negociação com as empresas públicas privatizadas e com os setores financeiros, que começaram também a ter seus problemas resolvidos, e transferiu, por meio da aprovação do orçamento, a maior parte das riquezas para esses grupos. A aprovação do orçamento significou a ruptura de Duhalde conosco. A partir de então, deixamos de participar do diálogo público, que era convocado pela Igreja.

O governo vai tender ao autoritarismo porque não consegue obter o consenso. Não há possibilidade de golpe militar, mas sim de repressão. Hoje temos mais de 3 mil processados pertencentes à CTA, por lutas sociais ou sindicais. Temos a política do “gatilho fácil” da polícia. Os militares estão numa posição secundária depois de perder a guerra das Malvinas. Mas o que cresceu foi a polícia. Quem matou em 19 de dezembro foram as polícias, federal e das províncias. E há também um exército privado de mais de 100 mil homens, que corresponde à estrutura de segurança particular dos grupos econômicos, dirigido por ex-repressores, ex-militares. Eu não tenho medo de um golpe militar institucional, mas sim de uma “paramilitarização” contra o campo popular. A polícia é quem comanda a droga, a prostituição, o jogo, a estrutura do mercado negro, ou seja, possui um setor econômico; portanto, não devemos subestimá-la. Vai haver autoritarismo e repressão.

Começou novamente então um processo de muita mobilização, já cada vez mais organizada e com uma proposta que começa a colocar uma alternativa. A discussão hoje não é se Duhalde pode ser um governo populista – uma imagem que, nos primeiros dias, transmitiu-se em muitos lugares – e sim qual vai ser a saída. E aí entra o papel do campo popular, que tem que resolver sua própria crise.

A mobilização popular é grande. Há incerteza sobre a forma de construir a força política nacional e popular, é verdade, mas não acreditamos que tudo que está acontecendo seja só eleitoral.

Desvalorizar ou dolarizar?

O projeto que estamos apresentando foi idealizado por um grupo de economistas que propõe um choque de distribuição de renda, que implica o avanço da discussão sobre a abertura da economia e começar a discutir a concessão do crédito. No ano passado, com esta proposta, conseguimos convocar a universidade, que continua sendo um ponto de referência. Elaborou-se o Plano Fênix, apoiado por diferentes organizações. Não é apenas um plano, são muios instrumentos alternativos, e começou a se discutir que a questão não é desvalorizar ou dolarizar. A Argentina não é um país pobre, é um país no qual a concentração da riqueza faz com que, hoje, 12% da população fique com 54% da renda, e os 20% mais pobres com 3,4%. O problema não é de falta de riquezas. Para acabar com a fome, há meios de sobra, há possibilidades de emprego. Nós invertemos a lógica imperante e geramos uma alternativa que vem da produção. Hoje o FMI diz que para garantir o aumento do crédito temos que pagar; ora, para pagar são necessários dólares e a única maneira de obtê-los é tendo mais exportações que importações. Mas como não vai haver aumento das exportações, é necessário diminuir as importações, isto é, a única maneira de comprar dólares é ajustando. E mais ajuste significa menos trabalho, mais inflação, mais crise social, mais fome.

Para nós, não há contradição entre a saída da crise e a distribuição da renda. E não só por uma questão de justiça, e sim porque é a única forma de resolvê-la. A crise na Argentina é de falta de demanda, de impossibilidade de reativar o mercado interno, de cobrar impostos, de um Estado que arrecada menos. Os impostos arrecadados são fundamentalmente impostos ao consumo. O IVA (Imposto ao Valor Agregado), que é o imposto mais alto, depende do consumo. Se o consumo cai, a receita do Estado cai. Não há impostos sobre o patrimônio, nem sobre a riqueza. Não há imposto sobre o movimento das ações, o setor financeiro está desonerado; a Argentina é um dos países mais atrasados em política tributária. Os patrões não pagam os encargos trabalhistas em troca da promessa de gerar emprego. Hoje há artifícios para burlar o fisco – não estou dizendo sonegação – que permitem uma isenção fiscal calculada em 10 bilhões de dólares, quantia suficiente para pagar o seguro de emprego, o salário universal por filho e o salário para os idosos. Atualmente, para cobrir o déficit fiscal, calculado em 4 bilhões de dólares, seria suficiente a restituição do sistema das administradoras de fundos de pensão privados, que foram uma forma de financiar a aliança com o setor financeiro, em detrimento do sistema  público de aposentadoria. São 4,9 bilhões anuais que o Estado, antes da mudança, recebia de  forma direta, e agora vão para o sistema de  previdência privada e depois são emprestados para o Estado por meio da compra de títulos da dívida interna, cobrando juros. E este sistema  privado não garante que a maioria dos trabalhadores possa se aposentar, porque 65% dos trabalhadores que foram obrigados a optar pelo sistema privado não têm condições de pagar sua contribuição. A re-estatização do sistema  privado de fundos de pensão é uma das coisas que terminaria com o déficit público. Assim, acabar com a pobreza e com a fome na Argentina, por meio de um choque de distribuição de renda, não é só justo, mas também a única forma possível de resolver a crise financeira do Estado. A política atual, que está querendo resolver as coisas com um maior endividamento, só vai conseguir mais ajuste, mais pobreza, menor capacidade de pagamento da dívida e um processo hiperinflacionário que vai ser desencadeado como conclusão. Portanto, a única solução é reconstituir o mercado interno, aumentando a demanda. A crise argentina não é produto do não pagamento da dívida, é produto da falta de demanda e de mercado interno.

No setor financeiro, não se pode deixar de falar do corralito. Só para ficar bem claro, dos 5,5 milhões de usuários da massa financeira, 1.229 – estamos falando de menos de 0,03% – são receptores de 48% da mesma. Há uma concentração do crédito impressionante. Se as primeiras 87 empresas ou pessoas físicas devolvessem os créditos que obtiveram, ou seja, se não pudessem voltar a tomar ou ampliar o crédito, seria possível devolver o dinheiro a 98% do total dos correntistas. Isto quer dizer que 87 pessoas jurídicas ou físicas detêm o dinheiro de 98% dos correntistas que estão no corralito! Portanto, não é um problema financeiro, mas sim político.

Futuro imediato

Há setores que estão pedindo eleições já, mas acontece que o PJ e o radicalismo seriam os primeiros afetados, então não vão permiti-las, porque consideram que não é o momento. A própria direita está preparando uma proposta para o futuro – López Murphy com Mauricio Macri4 e alguns empresários. As únicas forças que estariam em condições favoráveis para o processo eleitoral agora são a esquerda e a centro-esquerda. Elisa Carrió e Luis Zamora5 aparecem como os melhores posicionados numa eleição. Zamora aparece pela primeira vez com 4%, ele, um homem de esquerda que era do MAS (Movimento ao Socialismo) e agora saiu desse partido e criou um movimento chamado Autonomia e Liberação.

Quando De la Rúa caiu, o primeiro presidente que o sucedeu foi Rodríguez Saa, com a promessa de que haveria eleições dali a 90 dias. Quando Rodríguez Saa assumiu, o Congresso decidiu que as eleições seriam no dia 30 de março. Como não haveria possibilidade de primárias, inventaram a Lei de Legendas, uma lei eleitoral que permite apresentar diferentes candidatos de um mesmo partido e somar seus votos, ou seja, o partido majoritário ganha e o presidente é o candidato mais votado desse partido. Isso demonstrava que havia divisões no Partido Justicialista, para ver se o candidato era Duhalde, Ruckauf, Reutemann, De la Sota, ou até mesmo Rodríguez Saa. Mas provavelmente o candidato mais votado do Partido Justicialista teria menos votos do que a candidata da oposição, Lilita Carrió, da ARI. Agora ela está com 14, 15% das intenções e, naquele momento, o PJ estava até um pouco melhor, pois não havia sofrido ainda todo o desgaste que vem sofrendo. Duhalde assumiu e pôs como condição que não houvesse eleições até 2003 e, em vez de ser um governo de transição e tomar medidas que abrissem o espaço de democratização, compactuo com os grupos econômicos e deu início a uma crise com final em aberto.

Pode haver eleições, pode-se gerar um processo de recessão maior. Nós levantamos a bandeira das eleições já. Nós, com a ARI, o Pólo Social, a Frente para a Mudança reunimos todos os deputados e formamos uma interbancada (interbloque). Eu, a esta altura, não tenho partido, mas sim um conceito de construção. A Frenapo serviu para que todos esses deputados de partidos diferentes, que não conseguiam se juntar, começassem a fazê-lo e para que tivéssemos um projeto em comum. Conseguimos que a divisão partidária, que na Argentina tem uma tradição forte, começasse a ficar num segundo plano, em função da luta social e política. Assim, o mais importante que temos hoje é a existência dessa interbancada, que tem 30 deputados – mais dois ou três que votam junto – que pedem eleições já, que se opõem ao orçamento, que apóiam a luta social e vão forjando uma liderança política. Queremos eleições já, mas não só para presidente e sim para todos os cargos porque, com um Parlamento dominado pelo Partido Justicialista mais os setores da direita e governos provinciais na maioria justicialistas, a governabilidade do novo presidente seria muito pequena. Para isso precisamos de uma força política muito grande. Hoje o questionamento à instituição democrática chegou a tal ponto que se fazem manifestações para pedir a renúncia da Suprema Corte de Justiça. Antes isso era impensável. Quando pedíamos que investigassem a Corte, porque argumentávamos que ela era cúmplice das privatizações, nem passava pelas nossas cabeças que chegaríamos a ver mobilizações pedindo a sua destituição.

A ARI e o Pólo Social participam ativamente da Frenapo. Há setores que vêm do peronismo, setores do radicalismo que têm se incorporado, o PC também está, através da APyME. Esse movimento está gerando uma revolução interessante, porque os setores de representação sindical, social, cooperativista estão dentro da Frenapo. É inexorável o destino eleitoral deste processo, mas a Frenapo não é um partido, é um campo de acumulação de iniciativa política muito alta. Mas a construção de um partido só virá quando servir para consolidar um processo. Nós olhamos a experiência do PT com admiração tremenda, mas em nosso país há algumas particularidades, pela tradição e cultura diferentes. Na Argentina, sem necessidade de liderança política, podemos fazer uma greve nacional que pára o país, mesmo com os dirigentes sindicais sendo questionados. É uma cultura de reconhecimento de um instrumento que em outros países não há. Mas tentar converter isso rapidamente em representação eleitoral e partidária, não funciona. É um processo e eu não sei quando ele vai gerar um partido.

Devemos evitar o atalho que seria fazer rapidamente o partido para ter um candidato. Isso proliferou na Argentina. Por um lado, não podemos negar a importância do eleitoral. No Congresso de 99, dissemos em quem não se devia votar; não sei se em 2003 vamos poder dizer positivamente em quem votar. Nosso crescimento não teve a ver, durante todo o ano de 2001, com a proposta de ter candidato e sim de caminhar, de organizar o país.

Víctor de Gennaro é secretário-geral da Central dos Trabalhadores Argentinos (CIA)