Internacional

É insustentável interpretar o conflito israelo-palestino como uma simples reprodução do confronto que, supostamente, separa os EUA e seus aliados do resto do mundo

O artigo de Milton Temer na última edição de Teoria e Debate (“Oriente Médio – Guerra? Não. Agressão”) reavivou em minha memória o episódio no qual, uma década atrás, petistas debatiam as implicações do ataque do Iraque ao Kuwait e o conflito do Golfo Pérsico. Foi quando um velho comunista vaticinou para quem quisesse ouvir: “não hesito, nesta guerra torço por Saddam Hussein”. Não importavam – e parece não continuar importando – os objetos, os fatos e os argumentos específicos de cada conflito, ou que o mundo não seja mais o mesmo de outrora. Na “melhor” tradição de uma certa herança do pensamento de esquerda, importa apenas, sempre, alinhar-se contra o grande inimigo da humanidade, leia-se os EUA. A propósito, não surpreende que o aludido ensaio faça uma tímida menção aos “desdobramentos irracionais de 11 de setembro”, eximindo-se de qualquer juízo de valor sobre a irracionalidade, a covardia, a estupidez, a violência e a intolerância inerentes aos próprios fatos que determinaram aqueles acontecimentos trágicos.

Nos meios de esquerda, esta conduta marcada pelo alinhamento automático era conhecida como campismo, isto é, uma forma de tomar partido em todo e qualquer conflito internacional mediante uma adesão negativa que, cega à sua natureza, apenas identificava o inimigo ex ante. (À guisa de exemplos, para esta lógica, a Primavera de Praga teria sido uma contestação do socialismo, justificando-se plenamente sua repressão; inversamente, no plano doméstico, uma aliança com Vargas seria válida se isto pudesse representar a afirmação de interesses nacionais e uma contestação do poder e dos interesses norte-americanos). Durante o largo período no qual vigorou a Guerra Fria, tal atitude continha determinada racionalidade, afinal o planeta dividia-se com mais nitidez: de um lado, o Ocidente sob a liderança norte-americana e, de outro, a URSS polarizando seus satélites. Eram dois sistemas de valores efetivamente antagônicos, cuja marca divisória implicava alinhamentos antitéticos, modelos incompatíveis, formas de organização social, política e econômica e fundamentos doutrinários rigorosamente opostos. Naquela ordenação, a lógica inescapável prevalecente era, pois, a do amigo/inimigo. Com a implosão do campo soviético e a derrota do socialismo – porque nada pode ser mais verdadeiro, concreto e cruel que a realidade –, a antiga ordem bipolar simplesmente desapareceu. A propósito, a Guerra do Golfo, logo após a queda do muro de Berlim, foi o acontecimento mais emblemático da nova ordem internacional que se gestava, a ponto de se agregarem em um mesmo bloco político-militar nações antagônicas até pouco antes: embora a operação Tempestade no Deserto tenha sido protagonizada basicamente pelas Forças Armadas norte-americanas, basta lembrar que teve suporte e apoio russos. De resto, o que antes eram conflitos potencialmente globais passou a constituir contenciosos localizados e/ou regionais.

Tais mudanças engendraram, a partir da última década, transformações profundas no ordenamento mundial, razão suficiente para que se evite interpretar os fatos contemporâneos com os olhos (e os vícios) do passado. O fato é que a emergência e o recrudescimento de guerras quentes e o cenário relativamente nebuloso no que concerne à construção de pólos mais nítidos configuram uma ordem mundial na qual os alinhamentos tendem a ser progressivamente ad hoc, reproduzindo interesses mais localizados e específicos, independentemente de outras variáveis de caráter geral, inclusive ideológicas. Tende-se a valorizar, portanto, a dimensão da diplomacia, constatação confirmada pelo próprio episódio da Guerra do Golfo e mais uma vez revigorada no contencioso atual envolvendo novamente o Iraque, uma vez que a proposição de conflito armado requer um extraordinário esforço de negociação, sem o qual intenções belicosas dificilmente terão êxito. Como se vê, o invocado unilateralismo ianque – embora se manifeste concretamente na forma de uma política externa sintetizada pela Doutrina Bush – precisa ser, no mínimo, relativizado. Aqui cabe uma primeira observação relevante: aqueles que sustentavam não haver diferenças substantivas entre republicanos e democratas precisam, definitivamente, rever seus conceitos.

Novas situações e novas realidades implicam novas interpretações e novas teorias, não obstante a conduta arrogante por parte dos EUA, notadamente a partir da vitória de George W. Bush, que trouxe consigo velhos falcões republicanos que integraram os governos de seu pai e mesmo de Reagan.

O mundo mudou e é preciso compreendê-lo. A China ingressou na OMC, a Rússia associa-se à Otan, o quadro internacional de forças tende à multipolaridade, as relações de interdependência se intensificam, os Estados nacionais perdem soberania ao mesmo tempo que demandam cooperação multilateral, os conflitos internacionais não mais obedecem à lógica da bipolaridade. No caso particular de Israel, as relações privilegiadas com os EUA permanecem, todavia seus movimentos internos e regionais demandam novas e contínuas negociações. Da mesma forma, a Autoridade Nacional Palestina há muito deixou de representar, se é que isto já teve algum sentido, uma perspectiva “antiimperialista” no Oriente Médio.

Nessas condições, é verdadeiramente insustentável interpretar o conflito israelo-palestino como uma simples reprodução do confronto que, supostamente, separa os EUA e seus aliados do resto do mundo. Não só desmoronou a ordem bipolar, como o antigo contraponto revelou-se um completo desastre. Possivelmente este ponto de vista seja recusado por aqueles que, órfãos da mãe-Rússia, do socialismo caprino albanês ou de quaisquer regimes totalitários, identifiquem conteúdos democráticos em referências como Coréia do Norte, Cuba e assemelhados. A propósito, a solução propugnada por Temer para encerrar o conflito entre israelenses e palestinos é espantosamente sui generis: reclama uma aliança com o “conjunto de governos árabes”, fato a deixar perplexos todos aqueles que conhecem minimamente o caráter teocrático do Estado, a violência de suas estruturas de poder e a intolerância de países como Arábia Saudita e todos os outros da Liga Árabe. Em outros termos, tal como na metáfora que invoca a raposa para cuidar do galinheiro, Temer propõe uma solução democrática com fiadores sabidamente antidemocráticos. Estranho? Não, se se tiver em perspectiva que se trata, sempre, de derrotar o “Império”, os “imperialistas” e seus parceiros, daí evidenciando-se uma posição nitidamente anti-Israel (para não dizer anti-semita). Quanto à media­ção da União Européia, a propositura parece sensata, contudo, é preciso lembrar sua impotência e sua tradição de omissão em questões dessa natureza, como no conflito dos Balcãs, protagonizado em seus próprios calcanhares sem que ocorresse uma intervenção digna de registro capaz de evitar o genocídio e os massacres hoje amplamente recriminados no plano retórico.

A democracia israelense

O fato de Israel ser um Estado democrático é reconhecido, mas causa estranheza a abordagem tangencial dessa virtude, sobretudo de uma perspectiva da geopolítica regional. Ademais, Israel está longe de ser meramente o resultado de uma resolução da ONU, antes, é o produto da legítima aspiração de um povo. Neste país há instituições que funcionam – como partidos políticos, parlamento e judiciário – com plurali­dade, eleições periódicas e alternância no poder, o que, aliás, permitiu o êxito eleitoral do direitista Sharon. Aqui cabe outra observação importante: a vitória do Likud se deve, em larga medida, ao blefe e à intransigência de Arafat nas negociações com o ex-primeiro ministro Ehud Barak. Todos sabemos que as condições oferecidas pelo governo trabalhista no esteio dos acordos de Oslo e de Camp David – reconhecimento do Estado palestino e de sua soberania, delimitação de fronteiras, recuo da política de assentamentos com devolução de territórios ocupados e estabelecimento de um cronograma para definição da soberania de Jerusalém –, sob a égide da insígnia “terra por paz”, foram as melhores para aquele momento, a ponto de comprometer a própria governabilidade de Barak. Debite-se na conta da intransigência da ANP e na inabilidade de Arafat parte da responsabilidade pela eleição de Sharon, que, registre-se, para não ficar refém dos ultra-ortodoxos, constituiu um governo de coalizão com participação subalterna dos trabalhistas.

Que a direita israelense e Sharon não apostam no processo de paz e resistem ao reconhecimento da soberania palestina, não há novidade, contudo, é preciso separar o joio do trigo. A sociedade israelense, que é plural, vem pendendo à direita porque o ingrediente da segurança não só não saiu de sua agenda como recrudesceu barbaramente, bastando registrar que, logo após as primeiras ofensivas militares na Cisjordânia, os índices de aprovação desta medida alcançaram quase 80%. Outro esclarecimento importante: ao contrário do que sugere Temer, não foram Sharon e suas incursões militares violentas os determinantes da generalização de atentados contra os israelenses. A bem da verdade, o Hamas, a Frente para Libertação da Palestina, o braço armado do Fatah e outras tantas organizações que cultivam a violência jamais assimilaram os termos dos acordos de Oslo, cuja originalidade residia no reconhecimento recíproco de israelenses e palestinos constituírem Estados soberanos em uma perspectiva de convivência pacífica. A “criação de novos suicidas”, na verdade, é a representação material de uma mentalidade fundamentalista que, ao apelar à jihad, simplesmente não aceita a existência de Israel.

Foi exatamente por essa razão cristalina que o escritor Amos Oz identificou o problema da ambivalência: “Duas guerras estão sendo travadas entre palestinos e israelenses nessa região. Uma é a guerra da nação palestina para libertar-se da ocupação e por seu direito a um Estado independente. Qualquer pessoa de bem deve apoiar essa causa. A segunda guerra é travada pelo Islã fanático, desde o Irã até Gaza, desde o Líbano até Ramallah, para destruir Israel e expulsar os judeus de sua terra. Qualquer pessoa de bem deve repudiar essa causa. Arafat e seus homens estão travando as duas guerras simultaneamente, fazendo de conta que são uma só. Os assassinos suicidas, evidentemente, não traçam nenhuma distinção entre as duas. Boa parte da perplexidade mundial com relação ao Oriente Médio, boa parte da confusão sentida entre os próprios israelenses se devem à sobreposição dessas duas guerras”.

Intolerâncias

Em seu relato jornalístico, Temer descreve o cerco israelense ao QG de Arafat, em Ramallah, e o violento ataque a Jenin, mas não teve tempo de presenciar novos e sucessivos atentados palestinos, um emblemático, ocorrido na Universidade de Jerusalém – santuá­rio do conhecimento e reconhecido templo de tolerância. A julgar pela percepção do deputado-cronista, um evento sem maior importância, mero desdobramento do “caldo de cultura” gerado pelas ocupações responsáveis pela desesperança dos jovens palestinos. Para esta lógica perversa e reducionista, só há uma violência, a israelense. A outra estaria previamente justificada.

Os fatos, porém, demonstram que os abusos, a violência e a aposta em um caminho sem solução pacífica patrocinados pelo governo Sharon estão longe de serem unilaterais. Muito pelo contrário, encontram ampla reciprocidade no lado palestino. Aqui cabe nova observação: longe de representar instrumento de autodefesa, a guerra fundamentalista que dirige suas baterias contra alvos civis constitui exemplo notável de apreço ao terror. Ao recusar soluções pró­prias da negociação, esta elege a violência como meio de resolução de conflitos políticos. Sem tergiversar, o nome para tal conduta é terrorismo, o qual cumpre um duplo objetivo: ao mesmo tempo que recorre à violência para eliminar adversários (inimigos, melhor dizendo), opera um movimento de legitimação junto a seus pares mediante atitudes que sugerem bravura. Em outros termos: “a ação terrorista supera assim os limites ideológicos, antes indicados quando ela não é um fim em si mesma, mas, por meio da escolha de um objetivo particularmente significativo (que não impõe, portanto, dirigir a ação exclusivamente contra as pessoas), ela representa um primeiro elemento de ligação com as massas de um lado e, de outro, um potencial dissuasivo em relação ao inimigo”.

A intolerância que emana do lado muçulmano constitui um aspecto nevrálgico do imbróglio, afinal o isolamento do Islã nos últimos séculos parece ter sido determinante para a edificação de uma cultura xenófoba e para o estabelecimento de fortes barreiras civilizacionais. Da mesma maneira que se reivindicam espaços públicos laicos em relação a Israel, é lícito supor que uma autêntica modernização do Islã implique sua auto-reforma, cujos ingredientes mais simbólicos, na prescrição do escritor Tariq Ali, seriam uma ampla liberdade de interpretação do Corão e, claro, a laicização da vida pública. Sem esta inflexão, é improvável que se geste abertura para tolerar e compreender o diferente, porque é precisamente em ambientes herméticos que se formam doutrinas intransigentes e fundamentalistas de alta periculosidade. O Afeganistão do regime talebã constitui uma demonstração cabal desse risco, para não falar nas ditaduras teocráticas cruentas que vicejam em quase todo Oriente Médio.

A omissão e a conivência de Arafat e da ANP em relação ao terrorismo é um fato que requer profunda mudança comportamental. Não há, pois, unilateralidade na violência e na intolerância: elas estão presentes nos dois lados deste conflito sangrento. Do lado israelense, se manifestam na proposição judaico-ortodoxa de um Estado largamente teocrático e na política direitista de Sharon que aposta no impasse como perpetuação do conflito armado, reproduzindo assim uma certa vocação expansionista presente na tradição sionista. Do lado palestino, estão presentes no fundamentalismo islâmico que ignora a dimensão da alteridade e no terrorismo como mecanismo de resolução de contenciosos políticos. Nessas condições, é tão incorreto quanto inaceitável eleger qualquer dos lados como o bem, tendo o outro como o mal. Tal maniqueís­mo simplista não corresponde à realidade nem tampouco oferece perspectivas de solução negociada para o conflito instalado, afinal algozes e vítimas estão situados em ambos os campos. Na guerra ou mesmo na política não existem anjos, são humanos concretos orien­tados por interesses diversos, daí a notável percepção do filósofo Isaiah Berlin sobre a obra de um famoso pensador da política: “Maquiavel pede homens melhorados, não pede nem homens transfigurados ou sobre-humanos nem um mundo de seres angélicos desconhecidos nesta terra, que, mesmo que pudessem ser criados, não poderiam ser chamados humanos”.

Humanistas e democratas que repudiam as agressões do governo Sharon estão desafiados a repelir, com a mesma radicalidade, os atentados terroristas palestinos. Embora haja uma guerra instalada no Oriente Médio – e guerra, como se sabe, implica a eliminação física dos contendores, independentemente de assimetria de forças e de poder –, o desafio que se impõe consiste em construir bases para uma transição pacífica que afirme compromissos concretos com uma plataforma mínima, a saber: reconhecimento recíproco dos Estados soberanos de Israel e da Palestina, incluindo-se neste quesito a segurança israelense; fim da política de assentamentos e devolução de territórios ocupados; (a difícil) continuidade das negociações sobre a jurisdição de Jerusalém, porque “se algum dia houver uma solução pacífica definitiva no contencioso Israel-palestinos, como espero que venha a haver, Jerusalém provavelmente será a última questão a ser resolvida”.

A história recente demonstra que Sharon e Arafat não são os melhores interlocutores para promover a paz, mas mesmo assim é preciso persegui-la como imperativo moral e como compromisso com a razão. Recusar maniqueísmos vulgares é um bom princípio para alcançar um futuro de fleuma, tão nobre quanto longínquo. Mesmo porque, lembrando James Madison, “se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos”.

Jefferson Goulart é professor do curso de Gestão Pública da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep)