Cultura

A conjunção da crítica ao modo violento de Estado, de poder e de organização da sociedade e do trabalho, a percepção da existência de outras vidas, outros sujeitos e outros brasis, e a prática de experimentação artística e literária desencadearam as condições mais ou menos ótimas para o surgimento de uma consciência estética especialmente constituída

Não é verdade que, caso estivesse vivo, e olhasse o panorama atual das artes e da literatura brasileiras, em particular, Mário de Andrade iria procurar um túmulo para se revirar. Teria achado aborrecido, oitenta anos depois da Semana de Arte Moderna de 22, ficar buscando espelhismos entre o primeiro modernismo e a produção cultural, e ficar perguntando se o modernismo acabou, se continua, e se continua, continua onde, se estamos apenas no fim de um começo ou se já passamos do começo de um fim. Teleologia, não, diria. Seu olhar era arlequinal e cubista demais para isso.

Teria achado melhor aplicar ao projeto e ao corpo do modernismo o que Pedro Nava (um autor cuja obra é um batuta de um bem tardio modernista, e tardio não porque chega tarde, mas porque chega na temporalidade e na historicidade próprias da cultura) via como o complexo da vida, da morte e da obra do próprio Mário: o “complexo de depeçagem”.

A expressão foi cunhada por Nava a propósito do autor de Macunaíma, e de olho num poema da série “Lira Paulistana”, um dos mais intensamente marioandradinos de toda obra do escritor paulista1. Nava criou a expressão a partir do francês dépèçage, despedaçamento, com o ge francês, cortante e inapelável, categorial, partícula a indicar conclusivos estados de coisas, trocado e ampliado pelo nasalado gem português, interminável sirene da língua, partícula sonora que, a rigor, poderia continuar sendo emitida e ouvida para sempre.

“Importante” – escreveu Pedro Nava referindo-se a Macunaíma, e ao complexo de depeçagem do livro e do seu autor – “é esse caldo de cultura onde fermentaria aquela anedota imensa e prodigiosa que será sempre rapsódia-hino nacional desse Brasil que se congrega e se separa, se junta e se despedaça como complexo de depeçagem do seu autor” (Beira Mar, p. 193).

É de se acreditar que Mário teria achado melhor mesmo aplicar o “complexo de depeçagem” ao modernismo, não para dissipá-lo, mas para entregá-lo a uma espécie de quarupização, de maturação e esquartejamento radicais e não destrutivos: é nesta condição que podemos compreendê-lo como “a tradição viva das letras brasileiras”, para lembrar José Guilherme Merquior (O Fantasma Romântico; Editora Vozes, Rio de Janeiro, p. 67).

Estranha tradição, porque é da ruptura que ela tira sua condição de permanência e mesmo de cânone. Ruptura diante do que foi a índole predominante e “titular” da literatura brasileira do século XIX em seu conjunto, a qual, no dizer de Sérgio Buarque de Holanda, não terá sido muito mais do uma “superafetação” na vida brasileira. (Aqui eu deveria dizer que isso é “no conjunto”, e só no conjunto, pois a ruptura, essa que mora sempre no coração partido da grande obra literária, a da astúcia da problematização, já estava, embora sem se encompridar em tradição, na solidão “astros sem atmosfera” de autores como Machado de Assis e Euclides da Cunha, no protagonismo de Castro Alves, acho que na constelação mais que perfeita na periferia do mundo, que foi a dos árcades mineiros, e também na impressionante concentração estética e estilística, e mesmo pulsional, de Gregório de Mattos e Vieira.)

Essa ruptura com relação ao recenseamento das letras nacionais pré-modernismo, e que era ruptura também, ora enfarruscada ora gaia, com o plano piloto subjacente ou manifesto que empurrava a nossa vida social – feita de iniqüidade geral e de atraso muito “grosso” –, emendava-se com a direção da política e da índole de ruptura do modernismo artístico ocidental do início dos novecentos, dando-lhes, aqui, especial inflexão e sentido.

Continua, a esse respeito, completamente esclarecedora a muito mencionada observação de Antonio Candido segundo a qual “as terríveis ousa­dias formais de um Picasso, e um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles” (Literatura e Sociedade, Com­panhia Editora Nacional, São Paulo, 1976, p. 121).

A isso Carlos Drummond de Andrade aludiu, no início da década de 20, ainda em Belo Horizonte, num editorial-manifesto de A Revista (a publicação dos modernistas mineiros), ao dizer que eles não imitavam Rimbaud, eles desenvolviam, ou “aplicavam”, Rimbaud, fosse isso o que fosse. Mas era.

Não cabe dúvida: feito de circunstância local e de arranjos dinamitadores, ou de emancipação, colhidos na vanguarda ocidental, o modernismo brasileiro foi, em nossa experiência cultural e literária, o “estilo transindividual” (ainda Merquior) capaz de criar mais obras, fatos, situações, impasses, horizontes, história, do que ele próprio trazia em si, e mais do que o futuro e o que veio depois puderam realizar.

Não são pequenas as objeções que a releitura crítica do modernismo tem levantado. Sinto-me um tanto dispensado de alinhá-las todas e muito detalhadamente, bastando dizer que uma destas objeções – talvez a mais severa – afirma que o modernismo, ao reinterpretar, num registro lúdico, as nossas deficiências como superioridades, como que ofereceu matéria de cultura para um projeto pedagógico-autoritário de nação, expresso depois no Estado Novo.

A isso, é possível responder que o otimismo de mundo (o brasileiro reinterpretado pela “moção” modernista) e o otimismo da forma (que caracterizou a vanguarda artística do ocidente então) trazidos por essa reinterpretação, poderiam também alimentar outros projetos, completamente diferentes do autoritário-pedagógico.

A outra observação consiste no fato de o esquema geral e ulterior do movimento revelar uma centrifugação do modernismo em várias correntes, o que faria pairar a dúvida se tais correntes são alta performance diferenciada, se já são dissolução, ou mesmo se ainda são modernismo. Muito esquematicamente, pode-se falar nos anarco-experimentalistas, Mário, Oswald, Drummond, Manuel Bandeira, Murilo Mendes: em nacional-primitivismo (Verde-amarelo e Anta); os dinamistas, a linha de Graça Aranha e Ronald de Carvalho; os espiritualistas (o pessoal da revista Festa, e depois os romancistas católicos Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, a poesia de Cecília Meireles. Augusto Frederico Schmidt, Henriqueta Lisboa, a crítica de Alceu Amoroso Lima), e o regional-modernismo do Nordeste.

Neste caso, cabe observar que a proliferação, a dispersão, a descontinuidade e a feição autônoma e plural da produção literária dos anos 30 (o chamado segundo modernismo) configuram conquista, e não esbatimento de algo que teria ido aos poucos sumindo (o primeiro momento de força do movimento). O aparente desigual e descombinado que o esquema acima parece revelar são expressão da unidade e do modo de ser emancipatório do modernismo, não sua negação dissipadora. São a realização, já seu tanto madura, e múltipla, do que Mário de Andrade via como o sentido profundo do modernismo: “o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”.

Que se veja ainda o que diz Antonio Candido a respeito da expansão do modernismo: “Nele [no modernismo], e sobretudo na culminância em que todos os seus frutos amadureceram (1930-40), fundiram-se a libertação do academismo, dos recalques históricos, do oficialismo literário; as tendências de educação política e reforma social; o ardor de conhecer o país. A sua expansão coincidiu com a radicalização posterior à crise de 29, que marcou em todo o mundo civilizado uma nova fase de inquietação social e ideológica. Em conseqüência manifestou-se uma ‘ida ao povoo’, um V Narod, por toda parte e aqui também, onde foi o coroamento natural da pesquisa localista, da redefinição cultural desencadeada em 1922. A alegria turbulenta e iconoclástica dos modernistas preparou, no Brasil, os caminhos para a arte interessada e a investigação histórico-sociológica do decênio de 30” (Candido, op. cit., p. 124).

O que importa não é ficar batendo chapa da arte e das letras brasileiras hoje, perscrutando nelas a presença fantasmática ou ostensiva do modernismo.

Melhor pensar, aqui, não em dissipação do modernismo, mas naquele “complexo de depeçagem” que o terá tomado (e que tomou também o próprio sujeito da memória e a experiência brasileira na obra de Pedro Nava, que o aplicou a si mesmo, numa espécie de mecanismo de transferência, e o deixou envultado de Mário de Andrade e do seu xamanismo cultural).

O que importa é dar com as razões pelas quais o modernismo (o clamoroso e público de 22, o segundo de 30, o transhistórico de hoje) constitui uma tradição viva. Não é difícil retraçar a configuração histórico-cultural de base do movimento e a força que ele retira e reelabora a partir daí: um crítico, criticíssimo sentimento com relação ao então arranjo oligárquico da sociedade brasileira de então, e a intuição forte, uma intuição movedora, plasmadora da “moralidade da forma” das obras, no sentido da existência de mundo quase pletórico de sentido – cultural, sociológico, estético, nacional, civilizatório até – pressentido na vida popular do Brasil. Uma “forte convicção” na direção, como diz Alfredo Bosi, da “exploração feliz das potencialidades formais da cultura brasileira” (História Concisa da Literatura Brasileira, Editora Cultrix, São Paulo, 1994, p. 306).

Mas é só, terá sido só isso a fazer do modernismo a “tradição viva” das letras brasileiras? Haverá quem pergunte. Primeiro, isso não é pouco. Não se obtém conjunção assim de fatores em qualquer lugar ou configuração histórico-cultural. Tanto não é uma conjunção qualquer, que Mário de Andrade, referindo-se à “força fatal” do movimento”, afirmou na famosa conferência de 1942 (O Movimento Modernista): “Já um crítico de senso-comum afirmou que tudo quanto fez o movimento modernista, far-se-ia da mesma forma sem o movimento. Não conheço lapalissada mais graciosa. Porque tudo que se faria, mesmo sem o movimento modernista, seria pura e simplesmente... o movimento modernista”. Não é seguro que assim fosse, mas a afirmação de Mário assinala a força das condições, por assim dizer, historicamente objetivas, que estavam em jogo.

Segundo, que essa recusa e “impugnação” – criada no coração da consciência estético-cultural modernista – do oligárquico e do mando violento e excludente, e a “forte convicção” em tomar o mundo brasileiro e suas possibilidades formais como fator de experimentação e fatura estética, botaram em circulação algo como um elo desconhecido, um fator ainda ignoto, uma espécie de moção desafiadoramente nova, resultando numa alta e especial cosmogonia literária e estética.

É como se a aproximação, pela primeira vez, ou de uma maneira inauguralmente programática, de três coisas – a crítica ao modo violento de Estado, de poder e de organização da sociedade e do trabalho, a percepção venturosa de outras vidas, outros sujeitos e outros brasis, e a prática emancipada e informada de experimentação artística e literária – desencadeasse a chispa, as condições mais ou menos ótimas, para o surgimento de uma consciência estética especialmente constituída: uma que, passado o momento heróico, transbordaria dos seus objetos e dos seus conteúdos de origem.

Aqui, é bom que fiquemos um tanto retidos no seguinte: será que conjunções como essa que esteve na base e no curto-circuito de eclosão do modernismo (e depois na sua estabilização) não são dessas que abrem ciclos ou expe­riências de particular potencialidade cultural e estética? Será que conjunções assim – re-experimentação do mundo popular, “forte convicção” no sentido de que guardem excepcionais “possibilidades formais” de elaboração, e jogo e apropriação não subalterna das conquistas expressivas da cultura e do mundo artístico cosmopolita da emancipação, para lá de toda divisão internacional do agenciamento de sentidos, valores e formas –, será que isso não conforma uma “força fatal” de invenção e reinvenção estética?

Será que tal con­junção de coisas não representaria o estabelecimento das condições de desejo de uma espécie de “máscara africana” (penso em Picasso) da nossa matéria brasileira de vida e expressão? O deslocamento, a anamorfose e refiguração artística, o enigma e o reconhecimento dessa matéria? Não representaria algo como uma ecologia do sujeito cultural e literário?

Não temos o direito de duvidar de que estamos, desde a eleição popular de outubro último, enfiados, e muito bem enfiados, numa situação e num trabalho de refundação do Estado, de avanço político, de reconstelação ideológico-cultural da vida brasileira. O que se abriu com a vitória de Lula, por força de um voto nacional-popular quase continental, foi um protagonismo histórico, social, cultural e político ainda meio desconhecido para nós (e é bom que seja um tanto desconhecido). Estamos no coração do repto lançado por Cazuza: “Brasil, mostra tuas caras e bocas”.

Não temos como duvidar de que talvez estejamos mesmo no coração de uma experiência – política, social, ideológica –, e no coração de um sentimento do mundo e do Brasil, no qual aquilo que o grande Mikhail Bakhtine, referindo-se a Rabelais, chamou de “imortalidade histórica relativa do povo”, venha a ser o mote expansivo, o desafio e fonte das “possibilidades formais” de invenção e reinvenção artística.

Assim, a conjunção da tradição viva do modernismo e disso, 80 anos depois da Semana, pode resultar numa força ainda um tanto desconhecida. Não a “fatal” suposta por Mário de Andrade, que não estamos para fatalismos de espécie alguma. Mas uma de liberdade e experimentação surpreendentes. Uma que, por causa mesmo das características da sociedade brasileira, e da nossa persona cultural (tantas caras e bocas, e tantas máscaras e astúcias da boca ao dizer), fará do complexo de depeçagem de Mário, de Pedro Nava e nosso, tradição viva e fator de expansão da vida. Como no paradoxo cronológico arrumado pelo crítico americano Harold Bloom, o de Kafka precursor de escritores que o precederam, não é sem graça e sem verdade histórico-cultural, a idéia de Lula precursor do modernismo.

Quando eu morrer quero ficar,

Não contem aos meus inimigos,

Sepultado em minha cidade,

Saudade

Meus pés enterrem na Rua Aurora,

No Paissandu deixem meu sexo,

Na Lopes Chaves a cabeça,

Esqueçam.

No Pátio do Colégio afundem

O meu coração paulistano:

Um coração vivo e um defunto

Bem Juntos.

Escondam no Correio o ouvido

Direito, o esquerdo nos Telégrafos,

Quero saber da vida alheia,

Sereia.

O nariz guardem nos rosais,

A língua no alto do Ipiranga P

ara cantar a liberdade.

Saudade...

Os olhos lá no Jaraguá

Assistirão ao que há de vir,

O joelho na Universidade,

Saudade...

As mãos atirem por aí.

Que desvivam como viverem.

As tripas atirem para o Diabo,

Que o espírito será de Deus.

Adeus.

Mario de Andrade

José Maria Cançado é crítico literário