Economia

Um país, como o Brasil, se se submete à lógica do capital financeiro fica preso na armadilha recessiva sem jamais poder se livrar dela

Do ponto de vista do mercado financeiro internacional, os países se dividem em três categorias: os que emitem moeda conversível e exportam capitais; os que emitem moeda inconversível e importam capitais; e os que emitem moeda inconversível e importam pouco ou nenhum capital. Estas três categorias correspondem, de forma geral, à atual divisão do mundo em um primeiro, formado por países capitalistas altamente desenvolvidos, um segundo formado por países semidesenvolvidos, também chamados "em desenvolvimento", e um terceiro formado por países escassamente desenvolvidos.

Esta divisão surge espontaneamente no mercado financeiro, como fruto das avaliações dos que nele transacionam, não sendo formalizada e nem instituída. Estas avaliações são subjetivas e voláteis, de modo que as peripécias das finanças internacionais ensejam constantemente promoções e rebaixamentos de países entre estes três mundos. Destas avaliações depende a conversibilidade das diferentes moedas nacionais. No passado, todos os governos procuravam garantir a conversibilidade de suas moedas numa mesma commodity, no caso o ouro. Mas nem todos o conseguiam, em função das crises que forçavam países financeiramente dependentes a permitir que suas moedas se desvalorizassem, com evidente prejuízo para quem tinha posses nestas moedas. Na época do padrão-ouro (1870-1914), assim como na do padrão dólar-ouro (1944-1971), eram conversíveis as moedas em que os especuladores confiavam e que não por acaso eram emitidas pelos países adiantados. As demais eram inconversíveis, ou seja, tesouros nacionais e grandes intermediários financeiros se recusavam a manter reservas líquidas nestas moedas. Os demais operadores imitavam os grandes.

Hoje todas as moedas nacionais são fiduciárias, nenhuma apresenta ao portador garantia de que seu valor é permanente mediante a fixação (nesta moeda) do preço do ouro ou de qualquer outra mercadoria. Esta mudança aparentemente fundamental não alterou a divisão dos países entre emissores de moeda conversível e inconversível, pois os operadores financeiros continuam precisando de reservas líquidas e usam para isso o dólar, o euro e o yen principalmente. Logo, estas são as moedas mais conversíveis. Moedas de outros países desenvolvidos são conversíveis em âmbito mais restrito, por exemplo, nos países vizinhos com que mantêm estreitas relações comerciais, turísticas etc. O nosso real costuma ser conversível nos outros países do Mercosul.

Países de moeda conversível gozam do privilégio de poder administrar sua dívida externa como se interna fosse. Este é o caso notório dos Estados Unidos, o país de maior dívida externa do mundo, cuja moeda é aceita em pagamento por todos os outros países. O seu altíssimo endividamento com residentes no exterior não destruiu (apesar da recente queda do dólar face ao euro) a confiança na permanência do valor de sua moeda. A demanda por dólares no exterior para fins de entesouramento ou pagamento de obrigações nesta moeda é tão grande que os EUA podem obter divisas estrangeiras em qualquer quantidade mediante a troca pelo dólar.

Os outros países têm de se preocupar em arranjar moeda forte (conversível) para pagar juros e amortizações de suas dívidas externas. O que significa que as dívidas vencidas não podem ser renovadas pelo devedor sem que os credores concordem. Os países importadores de capital têm necessidade crônica de moeda forte e esta necessidade deriva do serviço da dívida externa que é a soma das importações de capitais feitas no passado.

Convém distinguir entre Investimentos Diretos Estrangeiros (IDE) e empréstimos de curto prazo. Os primeiros geram no país que os recebe atividades econômicas, empregos, renda e impostos, ampliados por um certo multiplicador. São estes resultados que justificam a recepção de IDE por parte dos países. Mas, a importação de capitais de curto prazo, isto é, líquidos e especulativos, não tem qualquer efeito sobre a economia real. Estes capitais ficam no país por horas, dias ou anos, dependendo das expectativas de seus detentores. Quando estes detectam algum lugar mais prometedor para suas aplicações eles trocam de país e quando entram em pânico por causa de algum evento, em geral político, eles fogem em massa, ocasionando crise cambial no país por eles abandonado.

À primeira vista nada há que justifique a importação de capitais líquidos. Mas, o Brasil e os outros países do segundo mundo os importam avidamente, oferecendo-lhes juros escorchantes para induzi-los a correrem o risco de permanecer por algum tempo em moeda inconversível. O Brasil só aceita estes capitais sem prazo porque os aceitou no passado e precisa de moeda conversível ou forte para pagar juros e amortização das dívidas que vencem. É isso que denominamos dependência financeira.

A dependência financeira

Hoje estes capitais entram no Brasil sem qualquer controle e saem do mesmo modo. Quando entram, agravam a dependência financeira porque aumentam o fluxo futuro de pagamentos de juros e amortizações em moeda forte. O Brasil só obtém moeda conversível mediante exportação de mercadorias ou importação de capitais. Os dólares obtidos pela exportação são usados em geral para pagar mercadorias importadas. Dólares para pagar juros e empréstimos são em geral obtidos como novos empréstimos. O que configura uma situação de crescente fragilidade financeira.

Um país (ou uma empresa, uma família etc.) é financeiramente sólido quando atende suas obrigações financeiras com receitas advindas de vendas ou de investimentos em outros países. Quando estas fontes não bastam e o país recorre a novos empréstimos é evidente que o seu endividamento se agrava e que ele será forçado no futuro a se endividar mais, meramente para manter em dia o serviço da dívida já feita. Países nesta situação são financeiramente frágeis. Quanto mais fragilizado o país, maiores riscos ele apresenta aos aplicadores, que por isso exigem juros mais altos para compensá-los. Os juros cobrados do Brasil pelos credores dos EUA foram batizados de Risco Brasil, expressão que sugere que a culpa pelos altos juros cobrados é do Brasil, que não se comporta como deve para debelar os temores de quem nos empresta.

Em algum momento, a credibilidade do país dependente começa a se esgotar e os credores passam a exigir o chamado "ajuste estrutural" para continuar a financiá-lo. Isso significa que, para não ficar inadimplente, o país dependente tem de arrochar o seu consumo de bens públicos e privados para que sobre um excedente suficiente em moeda forte para cobrir todas as obrigações assumidas com credores externos. O ajuste estrutural é implementado pelo corte do gasto público, aumento de impostos, corte de subsídios e contenção do crédito, o que acarreta subida dos juros. A economia cai em recessão, empresas fecham, trabalhadores ficam sem trabalho. Mas o orçamento público se equilibra e não exige novos empréstimos e o saldo comercial positivo permite cobrir com recursos próprios parte das remessas financeiras ao exterior.

O remédio amargo da recessão faz efeito - como fez no Brasil, em 1998, 1999, 2001 e 2002 - e a fragilidade financeira cessa de se agravar. Se a economia for mantida em recessão ou estagnação por tempo suficiente (1, 2, 3 anos), a dívida externa pode ser parcialmente amortizada e o superávit comercial pode cobrir totalmente o déficit em serviços, que geralmente é de caráter financeiro. Nesta situação, os aplicadores internacionais voltam a se interessar pelo país e enviam grandes fluxos de capitais de curto prazo. Estes fluxos são em moeda conversível, o que faz com que sempre haja bancos ou empresas não financeiras, no país anfitrião, que queiram ficar com eles, freqüentemente pagando juros menores do que os vigorantes para empréstimos em moeda nacional.

Durante algum tempo, as políticas recessivas podem ser amenizadas ou até mesmo substituídas por políticas expansivas. O crescimento da economia reduz o risco-país e facilita a obtenção de novos empréstimos. A solidez financeira tão duramente conquistada começa a ser solapada pela livre entrada de capitais estrangeiros. É o que aconteceu em 1999, quando o real se desvalorizou e o déficit em conta corrente (mercadorias e serviços) caiu quase 25% em relação ao do ano anterior. A entrada líquida de capitais caiu de 29,7 bilhões de dólares em 1998 para 17,4 bilhões em 1999, mas no ano seguinte voltou a subir para 19,4 bilhões. A economia brasileira pôde crescer 4,5% em 2000 mas em seguida a fragilidade financeira voltou, os capitais externos deixaram o Brasil nos dois anos seguintes, impondo novos ajustes recessivos que mantiveram a economia estagnada em 2001 e 2002.

A armadilha recessiva

Um país, como o Brasil, que se torna importador de capital e em conseqüência financeiramente frágil, se se submete à lógica do capital financeiro fica preso na armadilha recessiva sem jamais poder se livrar dela. Esta lógica tem na recessão a sua pedra de toque. É ela que contrai a demanda interna, permitindo a formação dum excedente capaz de reequilibrar as contas externas do país. Ela permite também conter a pressão inflacionária que decorre da desvalorização cambial da moeda. A ordem temporal é: o capital externo se retira do país, o câmbio (custo da moeda forte em moeda nacional) sobe, o que encarece as importações e barateia as exportações no exterior. As exportações crescem, as importações decrescem e a diferença entre elas aumenta, reduzindo o déficit em conta corrente. A superprodução impede o repasse do aumento de custos a preços e o desemprego avultado impede o repasse da alta do custo de vida aos salários. A redução resultante dos salários reais permite à desvalorização cambial estimular a exportação e a substituição de importações.

Com o mercado financeiro internacional quase inteiramente desregulado, os governos perderam qualquer poder de controlar as entradas e saídas de capital. Esta é a razão de porque nenhum país consegue se desvencilhar da armadilha recessiva. Mas um país também pode reduzir sua fragilidade financeira acelerando o crescimento da economia, em vez de estrangulá-lo. Um país que fica preso na armadilha recessiva por vários anos, como o Brasil, acaba acumulando enorme desemprego e muita capacidade de produção não utilizada. Este desperdício de recursos constitui o fator que permitiria crescer de forma intensa e sustentável, sem desequilíbrios e sem pontos de estrangulamento causadores de pressões inflacionárias.

Com o PIB crescendo entre 5 e 8% ao ano, como o da China, Índia, Malásia, Coréia do Sul e outros países do Leste asiático, a arrecadação fiscal aumenta em ritmo igual ou superior e o gasto com auxílio desemprego e outros serviços sociais diminui, o que elimina rapidamente o déficit do setor público e possibilita o financiamento de inversões em energia, transporte, telecomunicações, saneamento básico etc. com recursos do erário. Além disso, o aumento da produtividade e da produção permite ampliar o consumo e o investimento sem pressão sobre os preços e portanto sobre os salários. O crescimento torna possível também a expansão das exportações e a substituição de importações, ocasionando crescente saldo comercial positivo, em dólares e euros. Com ele, pode-se pagar os juros e as amortizações da dívida externa, liquidando-a paulatinamente.

A alternativa de ajuste estrutural por meio do crescimento e não da austeridade recessiva é totalmente rejeitada pelo ideário ortodoxo do mercado financeiro e do Fundo Monetário Internacional. O motivo da rejeição é ideológico. O crescimento só é admissível com equilíbrio no balanço de pagamentos e nos orçamentos públicos e estabilidade dos preços. Mas a dependência financeira produz o oposto: crescente necessidade de importar moeda forte na forma de capitais estrangeiros, crescente déficit público e crescente inflação, decorrente da elevação do câmbio [= preço do dólar em moeda local]. Logo, segundo a ortodoxia, somente políticas recessivas podem restaurar os equilíbrios. O que a ortodoxia não pode assegurar é que tão logo estes sejam restaurados, novas levas de capitais especulativos não invadam o país e restaurem a dependência financeira.

Na verdade, há alternativas à armadilha recessiva, fartamente conhecidas e experimentadas durante o período de supremacia do keynesianismo, entre 1932 e 1980. Como ficou evidente, a realização da alternativa de ajuste estrutural com crescimento exige o controle prévio das entradas e saídas de capitais externos, reduzindo ao mínimo a especulação cambial. O crescimento tem de se apoiar na expansão do mercado interno, sustentada na redistribuição pública da renda e no multiplicador do emprego. Este é o único caminho para as economias do 2º mundo, entre as quais o Brasil (e a Argentina, Uruguai etc.), escaparem da armadilha recessiva sem caírem no turbilhão inflacionário.

Paul Singer é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP