Internacional

A contribuição central do FSM é a de alterar o clima ideológico do mundo, ajudando a romper com a hegemonia neoliberal

O III Fórum Social Mundial (FSM), realizado em Porto Alegre de 23 a 27 de janeiro de 2003, foi um sucesso. O número de participantes aumentou de 60 para 100 mil. As atividades se multiplicaram: 1700 oficinas e seminários inscritos, 31 painéis, 11 conferências e quatro mesas de diálogos e controvérsias (algumas com 40 mil pessoas), 21 testemunhos e duas grandes marchas. Este Fórum alcançou uma grande visibilidade, maior ainda que os anteriores, atraindo os holofotes da mídia do mundo todo; as presenças em Porto Alegre de Lula (a convite dos organizadores do FSM) e de Hugo Chávez (para outra atividade, independente do Fórum) são reveladoras do peso político que o evento adquiriu. Cresceram também os fóruns e encontros paralelos, realizados em Porto Alegre antes, durante e depois do FSM.

Tudo isso não se deu sem dificuldades: com o enorme crescimento do Fórum e a redução do apoio governamental em função da derrota eleitoral do PT no estado, as condições de gestão do evento se tornaram mais precárias e ocorreram problemas organizativos importantes, particularmente na alocação das oficinas e no alojamento dos participantes em Porto Alegre.

Mas este FSM se reuniu em um contexto onde inúmeros fóruns sociais foram realizados no período anterior, dois deles particularmente decisivos: o Fórum Social Europeu (Florença, Itália, de 6 a 9 de novembro de 2002), com 60 mil participantes, onde inicialmente se articulou a convocação da grande jornada mundial de manifestações contra a guerra realizada 15 de fevereiro de 2003 e o Fórum Social Asiático (Hyderabad, Índia, de 2 a 7 de janeiro de 2003), com mais de 20 mil participantes.

Neste marco, o Conselho Interna­cional (CI) do FSM, em sua reunião de 21 e 22 de janeiro de 2003, solucionou várias contradições que vinham marcando o processo FSM e alterou de forma significativa a sua arquitetura. A decisão mais conhecida é a da realização do IV FSM não mais em Porto Alegre mas na Índia, no início de 2004, um passo significativo na sua internacionalização – simultaneamente definiu-se que o FSM de 2005 será novamente realizado em Porto Alegre. Mas outras decisões têm um grande alcance: não há relação hierárquica entre os eventos do processo e sim uma horizontalidade (ou seja, não existem fóruns preparatórios de outros); as atividades auto-organizadas por seus proponentes nos fóruns devem ter pelo menos igual peso que as propostas pelos organizadores dos fóruns (reforçando seu caráter de espaço aberto). Solucionou-se, ao menos no texto adotado, o problema básico de “poder” do processo: o CI será aberto aos movimentos e organizações que aceitem a Carta de Princípios do FSM e solicitem sua integração. O Comitê Organizador do IV FSM será composto pelas organizações india­nas. A Secretaria do CI será composta pelas oito entidades brasileiras que compunham o antigo Comitê Organizador Brasileiro e que agora continuarão atuando como facilitadoras do processo.

Frente a tudo isso, depois de quase três anos de um grande experimento político, uma avaliação de conjunto pode ser delineada com alguma segurança.

O FSM é um espaço e não uma organização. Ele instaura um lugar de encontro, diálogo, debate e difusão de propostas, troca de experiências, emulação mútua, articulação de agendas de lutas e organização de novos movimentos. Embora existam cobranças neste sentido, o Fórum não é nem o embrião de uma “internacional”, nem uma “direção” dos movimentos que dele participam. O CI, sua secretaria e os comitês organizadores dos fóruns funcionam como facilitadores destes espaços. O Fórum não tira posicionamentos enquanto tal, não há assem­bléias ou resoluções finais. Sua vocação é, assim, incorporar de forma pluralista setores cada vez maiores que se identifiquem com os objetivos de lutar contra o neoliberalismo, o imperialismo e a guerra. A diversidade é uma força e não uma fragilidade do FSM e deve ser defendida e reforçada. Quaisquer grupos ou articulações de grupos dentro dos fóruns podem se reunir e formalizar declarações e posicionamentos (como vem fazendo, desde o I FSM, a Rede Internacional de Movimentos Sociais), mas eles não comprometem o Fórum como espaço nem o conjunto dos setores que não o subscreveram explicitamente.

O FSM é um processo e não só um evento e é parte de um movimento mais amplo. Com a multiplicação de fóruns de grande envergadura e outros menores que lhe dão uma grande capilaridade, o FSM se transformou em um processo mundial. Ele ajuda a dar consistência ao novo internacionalismo que, desde Seattle, vem se espraiando pelo mundo, confrontando a globalização neoliberal. A multiplicação de espaços FSM faz com que as pessoas se encontrem com muito mais freqüência, estabeleçam laços e relações de confiança e sintam mais necessidade de articularem suas atuações. Ele potencializa o ambiente que concretiza a expansão destes movimentos e deste novo internacionalismo. Mas se o FSM se identifica com todas as expressões de resistências e busca de alternativas e quer chamá-las para os espaços que instaura, não pretende representá-la, embora se torne uma referência cada vez mais central para o que crescentemente se configura como um “movimento global”.

A contribuição central do FSM vem sendo a de alterar o clima ideológico do mundo atual, ajudando a romper com a hegemonia do pensamento e dos valores neoliberais e crescentemente militaristas. Depois de se afirmarem na luta contra os organismos multilaterais, tanto o movimento global como o FSM souberam responder à mudança de agenda que a administração Bush, seu unilateralismo e sua “guerra contra o terrorismo” impuseram no cenário internacional.

Ao mesmo tempo, os fóruns vêm se mostrando o lugar por excelência de encontro e incorporação no movimento de uma nova geração política, que não conheceu os dramas e as derrotas das correntes tradicionais de esquerda do século XX, uma geração que já vertebra as lutas que estão estruturando a esquerda do século XXI. É também o melhor espaço para o desenvolvimento de novas iniciativas políticas e de novos movimentos sociais.

Mas o processo FSM tem que lidar com contradições estruturais importantes, a serem administradas passo a passo, a mais evidente concernente à relação com os partidos políticos. A Carta de Princípios estabelece que partidos, governos e organizações armadas não são organizadores do FSM nem enviam delegados para seus eventos. O Fórum opta, assim, por abrigar expressões da sociedade civil menos permeadas pela disputa de poder político, mas que são as decisivas para uma recomposição estratégica da esquerda mundial, porque são as que encaminham as resistências e lutas fundamentais em curso. Pode, desta forma, dialogar com o quadro de crise da representação política dos setores ativos na luta por outro mundo. A alternativa de ter os partidos determinando a dinâmica do FSM seria desastrosa, a repetição de uma série de experiên­cias fracassadas. Mas todas as correntes políticas, antigas ou novas, presentes nos movimentos acabam se expressando no FSM. E quanto mais em sintonia com este movimento real, mais presença estas correntes têm nos fóruns. Os organizadores do FSM têm trabalhado espaços paralelos e alguns tipos de atividades (como as mesas do III FSM) nos eventos do processo para o debate com os partidos, governos, parlamentares e instituições multilaterais. Mas as tensões permanecerão enquanto subsistir o cenário de crise de representação política.

As linhas de força que emergem deste quadro são as de um vasto, diversificado, paciente e por vezes contraditório trabalho coletivo de reconstrução da capacidade protagonista da esquerda mundial, cujo destino se liga inexoravelmente ao das lutas do movimento global.

José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate e da Secretaria do Conselho Internacional do FSM