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Morreu o advogado e ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Leia entrevista concedida em 2003

O advogado e ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos

O advogado e ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

Márcio Thomaz Bastos faz um balanço de seus primeiros meses à frente do Ministério da Justiça. Considera que a segurança pública é um problema do governo Lula, e não apenas dos estados. Para enfrentá-lo, vê como fundamental a reconstrução dos instrumentos que o Estado tem para intervir na realidade: a polícia, o Poder Judiciário e o sistema prisional

Qual a situação encontrada no Ministério da Justiça?
Encontrei um ministério totalmente desorganizado. As duas secretarias mais importantes - a Secretaria Nacional de Segurança Pública e a Secretaria Nacional de Justiça - funcionavam como verdadeiras tesourarias. Elas têm cada uma 400 milhões de reais por ano - é bastante dinheiro - e ficavam estáticas. Com os pleitos dos governadores, às vezes dos lobistas, elas iam soltando dinheiro. Na Secretaria Nacional de Justiça, para construir presídios, na Secretaria de Segurança Pública, para comprar munição, armas, carros, coletes à prova de balas - enfim, nada sistêmico.

O que tínhamos no ministério não eram programas, mas uma série de cem iniciativas listadas apressadamente. Por exemplo, por ocasião do episódio do ônibus 174 no Rio de Janeiro. Foi uma resposta à sociedade frente a uma situação de pânico, mas eram iniciativas sem unidade, sem sistematização, sem lógica interna.

A Secretaria de Direito Econômico é importantíssima, cuida de consumo e de concorrência. Nós a encontramos com 3.600 processos, dos quais 1.600 ficaram tanto tempo parados que prescreveram. Resolvemos isso.

Qual é a concepção de segurança pública que está sendo implementada?
Desde o início do governo, estamos trabalhando com a concepção de segurança pública contida na proposta apresentada na campanha eleitoral no ano passado, com os devidos ajustes que a realidade impõe. Achamos que a segurança pública no Brasil é um problema do governo Lula, e não somente dos governos estaduais. Em segundo lugar, achamos que não estamos vivendo uma crise normativa, ou seja, não é por falta de lei que o país chegou ao ponto que chegou. Lei tem até demais. Pode-se modificar uma ou outra, mas não é aumentando penas indiscriminadamente que se vai resolver o problema. A crise brasileira é institucional. Trata-se de reconstruir as instituições republicanas, os instrumentos que o Estado tem para enfrentar a criminalidade. Não adianta dizer que todos os réus serão condenados a cem anos se não há cadeia suficiente. Não adianta dizer que quem matar vai ser condenado à prisão perpétua se não há polícia para decifrar os crimes nem Judiciário para julgar. Então, a idéia fundamental é que é preciso reconstruir os instrumentos e as ferramentas que o Estado tem para intervir na realidade. Esses instrumentos são a polícia, o Poder Judiciário e o sistema prisional. É isso que estamos fazendo desde o primeiro dia.

Qual é a idéia básica do projeto de segurança pública?
Esse projeto tem em seu interior a recomendação da criação de um sistema único de segurança pública, que é a tentativa de fazer com que o governo federal e os estados trabalhem em comum, interligados, realizando conversas entre as inteligências de todos eles por meio de um mecanismo chamado Gabinete de Gestão Integrada. No começo houve certa resistência à idéia, mas conversamos com todos os governadores e secretários de Segurança e ela acabou sendo aceita. Já fizemos esse convênio com muitos estados. Isso envolve o Fundo Nacional de Segurança Pública, o Fundo Nacional de Justiça e o Fundo Nacional Penitenciário.

São verbas federais que podem ser dadas ao estado se ele assinar o convênio?
O que estava acontecendo era uma distribuição absolutamente a crítica, como se o ministério fosse uma tesouraria. Hoje, não. Por exemplo: para o Rio de Janeiro alocamos 40 milhões de reais, mas não gastamos um tostão ainda, porque vamos dar esse dinheiro desde que eles apresentem projetos que tenham uma lógica interna, que se articulem e trabalhem com inteligência, com direitos humanos, treinamento de pessoal, motivação da polícia... Não damos mais dinheiro para ser jogado fora. Muitas vezes identificamos uma idéia que em tese é boa, mas não tem nenhum sentido naquele estado. O governador fazia uma penitenciária e depois ela ficava abandonada porque não estava dentro de um sistema de necessidades, de urgência.

No caso emblemático de Fernandinho Beira-Mar, o senhor acabou de dizer que não há uma crise normativa, mas também deu a impressão de que houve um endurecimento no tratamento. É verdade que a sociedade clama por essa dureza, mas temos nossa consciência dos direitos humanos e já houve protestos de vários advogados, inclusive amigos seus, que criaram uma frente antiterror. Como o senhor vê isso?
Com dor no coração, nós fizemos um projeto que endurece na execução penal, permitindo que o preso fique até um ano isolado. É forte, mas sob o controle judiciário. Por outro lado, acabamos com uma mazela no sistema penitenciário brasileiro, o chamado exame criminológico. Esse exame é uma formalidade criada pela lei de execução penal em 1984 que nunca funcionou. Seria uma junta de psicólogos e assistentes sociais para acompanhar o preso durante toda a execução da pena - uma coisa boa se fosse feita -, mas não funciona assim. O exame se limitava, quando o preso pleiteava um benefício, a uma conversa por uns quinze minutos com uma psicóloga absolutamente burocrática. Ela perguntava se ele estava arrependido - há vários casos concretos - e, se ele dissesse que não estava, que não cometera crime nenhum, ela dava o parecer contrário, declarando que o preso não havia internalizado a culpa, e pronto. Isso atravanca as cadeias, pois há milhares de pessoas que não deveriam estar presas porque não são perigosas, não pertencem a organizações criminosas, e estão lá dentro servindo de massa de recrutamento, de massa de manobra. Aí elas começam a se decompor, a se degradar, são atraídas pelo PCC, saem de lá para assaltar. Na verdade, claro que sem intencionalidade, o que se montou no Brasil nesses anos todos foi uma linha de produção de criminalidade, que começa na Febem, passa pela polícia, pelo Poder Judiciário e pelo sistema prisional. O moleque entra na Febem com um pequeno desvio de conduta aos quinze anos e sai assaltante!

Quando se define essa regra de até um ano de isolamento, como é isso para sua consciência de tradicional defensor dos direitos humanos?
Vivi essa experiência achando que eu não era mais o advogado de defesa, que - para usar o jargão weberiano - eu tinha uma ética de responsabilidade, tinha de olhar as coisas como elas são; tanto que esse projeto que apresentamos, aprovado com a relatoria do deputado Ibrahim Abi-Ackel na Câmara, foi fortemente exacerbado no Senado. Eles aumentaram esse isolamento de modo que o preso pudesse passar o tempo todo da pena isolado e tentaram impedir a derrubada do exame criminológico. Isso vai voltar agora para a Câmara.

E o Movimento Antiterror, que foi constituído por advogados tradicionalmente ligados à defesa dos direitos humanos?
Já fiz duas reuniões com eles e disse exatamente o que estou dizendo agora: se não estivesse no Ministério da Justiça, eu estaria com eles, mas, como estou no ministério, tenho outra ótica, outros deveres. Tenho de articular, e é o que estou fazendo.

Esse projeto se baseia na experiência italiana de combate à Máfia?
Não. A experiência italiana tem sido muito mencionada, mas ela não se aplica mecanicamente ao Brasil. A Itália é muito diferente, é um país pequeno territorialmente, com um regime unitário. A Máfia lá é diferente do crime aqui. Não adianta querer falar que deu certo na Itália; aqui vai dar certo primeiramente limpar um pouco as cadeias, porque é um pecado deixar lá pessoas que não precisam de cadeia, fornecendo um exército industrial de reserva para o crime. Na Inglaterra, 80% dos processos criminais terminam pela condenação a penas alternativas, aqui somente 7%.

Como são essas penas alternativas?
É pena de limpar banheiro de hospital durante dois anos, por exemplo. Só que aí voltamos para a questão de que a crise brasileira é institucional, nós não temos as instituições... Não adianta fazer leis se não tivermos as instituições para cumpri-las; se você quiser isolar seis presos em São Paulo, não tem seis celas para isso.

No caso da violência no Brasil, a impressão é que a questão está centrada no tráfico de drogas e de armas. Isso é fato?
É muita droga, muito tráfico de armas e, em terceiro lugar, o tráfico de seres humanos, que é fortíssimo, tráfico de mulheres, o trabalho escravo. O tráfico de mulheres é assombrosamente rentável, é a prostituição saindo e entrando no país.

Qual é a situação da Polícia Federal?
Tínhamos uma Polícia Federal absolutamente desaparelhada. Em 1975 foi feito um estudo pelo Ministério do Planejamento segundo o qual a Polícia Federal precisava ter, em 1985, 15 mil homens no mínimo. Pegamos a Polícia Federal com menos de 7 mil, razão pela qual o presidente Lula aumentou em 70% o efetivo e estamos correndo para fazer os concursos regionais e alocar policiais no Norte e no Nordeste. Esse é outro problema. É feito um concurso nacional, o sujeito passa e é designado para ir, por exemplo, para Tabatinga, no Amazonas. Ele chega lá, fica dois dias e quer voltar. Então, vamos fazer os concursos regionais.

Estamos investindo forte na luta contra a corrupção, prendendo e até demitindo. Prendemos 22 agentes em flagrante, nunca tinha acontecido isso. Estamos limpando, remanejando, arrumando, e pretendemos investir bastante na Polícia Federal, porque o combate contra o crime organizado, além de exigir a dureza - a violência como monopólio do Estado -, é uma luta basicamente de inteligência e informação. Sem isso não se consegue mapear e diminuir a criminalidade. Por exemplo, no Rio de Janeiro ocorrem dezesseis homicídios por dia. Dá para mapear e até prevenir um pouco, porque é possível saber onde acontecem, mas para fazer a perícia técnica desses dezesseis homicídios há uma fila com mais de mil à frente. Então eles entram no fim da fila e, quando chega a vez deles, já não há condições de acusação. Há uma série de medidas simples que estamos implantando, como fazer um laboratório de perícia federal para atacar os dezesseis homicídios diários, de maneira que eles não entrem no fim da fila. Constituímos um grupo de elite chefiado por um delegado, Luís Fernando Gomes, que convidamos para ser superintendente da Polícia Federal do Rio. Ele é um delegado de inteligência, altamente qualificado. Esse grupo de cinqüenta homens já está montado, começando as primeiras operações, e vai atuar num primeiro momento no Rio. É um plano piloto de inteligência e operação.

A outra ponta do combate ao crime organizado está no combate à lavagem de dinheiro, que no Brasil é extremamente débil. Há uma lei de lavagem de dinheiro, de 1998, que criou um organismo chamado Conselho de Controle das Atividades Financeiras, o Coaf, do Ministério da Fazenda. Durante esses cinco anos foram feitas seiscentas notificações de suspeita de lavagem de dinheiro. O Coaf mandava um ofício para o Ministério Público dizendo que determinada pessoa fez uma movimentação suspeita. Se em seis meses você fosse ao Coaf e perguntasse o que havia sido feito daquela notificação, eles não saberiam informar, porque não havia acompanhamento.

Nos EUA, cada banco, a cada dia, faz mil notificações. O funcionário abre o computador, olha se houve um salto no gráfico da conta de um cliente e comunica; na Suíça, a mesma coisa. Esse é um plano ambicioso. Estamos desenvolvendo um software relacional. Então, vamos reestruturar o Coaf e colocar um representante do Ministério da Justiça para trabalhar junto com a Receita Federal e o Banco Central. Estamos criando no ministério o Departamento de Recuperação de Ativos Ilícitos e tomando providências imediatas, junto com o Banco Central e a Receita Federal, para começar essa luta, porque é preciso envolver o Ministério Público e a Polícia Federal.

Hoje, em caso de um processo estadual de corrupção, quando chega na hora da lavagem de dinheiro a investigação passa para o nível federal. Então se cria um conflito e ninguém tem as informações. Não se sabe se uma conta mencionada num inquérito aqui é a mesma conta que foi mencionada lá, porque o Brasil não tem um cadastro nacional de correntistas. O Banco Central, quando recebe um ofício de um juiz para bloquear o dinheiro de alguém que roubou, manda um ofício para os bancos para descobrir onde o sujeito tem conta - aí fica sabendo e retira o dinheiro.

Nosso trabalho no combate à lavagem de dinheiro está sendo feito também no plano internacional de maneira muito intensa, junto com o Ministério das Relações Exteriores. Estamos assinando um convênio de cooperação com a Suíça, com Jersey, com uma porção de paraísos fiscais.

Além disso tudo, acho que tem de vir para o Ministério da Justiça a Secretaria Nacional Antidrogas, a Senad, que hoje está no Gabinete de Segurança Institucional e pratica, a meu juízo, uma política equivocada. Pleiteio que ela venha para o Ministério da Justiça, perto da Polícia Federal, e usando outra linha de pensamento, mais de acordo com a posição da ONU. Nestes últimos anos, a Senad utilizou muito a linha norte-americana, do prende e arrebenta. A filosofia da ONU hoje é outra, é de reconhecer que se trata de algo inevitável, que o álcool é tão grave quanto a droga, e fazer um trabalho de divulgação dos danos. É um trabalho muito interessante! As prefeituras de São Paulo, Recife e Salvador, entre outras, já o fazem.

O senhor disse que o problema principal no país é o narcotráfico e depois o tráfico de armas. Eles estão conectados?
Estão. Trocam-se armas por drogas. Outro dia a Polícia Federal fez uma apreensão de granadas argentinas. É um esquema internacional que passa pelas fronteiras. Estamos fazendo um trabalho forte para tentar policiá-las, numa ação conjunta entre o Exército e a Polícia Federal. Estive no Amazonas, em Tabatinga, em São Gabriel da Cachoeira e em Melo Franco, que é uma aldeia por onde entra muita coisa. Fomos de avião, passamos em cima do rio e, do outro lado da fronteira com a Colômbia, viam-se os acampamentos das Farc. Há uma operação chamada Cobra, que é Colômbia-Brasil, outra chamada Pebra, que é Peru-Brasil, nas quais estamos colocando nas fronteiras pelotões do Exército e da Polícia Federal. São cerca de trinta soldados mais um agente ou um delegado da Polícia Federal. Era um trabalho que já existia, mas estava pouco implementado, e agora estamos colocando para funcionar. Vamos fazer também uma operação Vebra, na fronteira com a Venezuela. O Sivam ajuda muito nisso, porque temos o problema da entrada por via aérea. Estamos tentando conseguir uma portaria que regulamente a venda de combustível para avião, e com o Sivam dando os dados dos aviões que sobrevoam...

O Sivam funciona?
Funciona, cobre a Amazônia inteira. Os americanos também devem estar usando muito o Sivam. Em Letícia, que é a capital do estado do Amazonas colombiano, há um quartel americano com aproximadamente duzentos homens. Eles não põem o pé na rua. Ficam monitorando. Esse trabalho de fronteira é importantíssimo. Em Rondônia temos 2.800 quilômetros de fronteira seca, onde passa tudo. Mas passa de barco também. A Polícia Federal apreende muito barco naqueles rios por amostragem. Agora, com o Sivam e a destruição de alguns campos clandestinos, vamos dificultar mais a entrada ilegal.

No combate ao narcotráfico, além de tudo o que disse, como é que o senhor vê a questão da descriminalização do consumo?
A descriminalização do uso de droga tem de vir, porque a criminalização é uma fonte de sofrimento, de corrupção. A distinção entre o artigo 16 e o artigo 12 da lei antiga é muito pequena, quem faz é o delegado. Ele pode pegar o moleque que estava com dois cigarros de maconha, enquadrá-lo como traficante e jogá-lo na cadeia por crime hediondo. Aí entra todo o processo de corrupção, de humilhação. Sou a favor da descriminalização, mas não penso em descriminalizar a droga como um todo, ainda que isso tenha sido considerado teoricamente por muitas pessoas, como o senador Jefferson Peres, a psicanalista Maria Rita Kehl e o doutor Arnaldo Malheiros.

Com relação à questão dos presídios, vimos as dificuldades encontradas no caso Beira-Mar. Ninguém o queria e a cada transferência era necessário negociar com o governador durante semanas. Como é que o senhor pretende resolver isso?
Vamos construir cinco penitenciárias federais em três anos. Para duas já vamos lançar os editais de licitação, uma em Brasília, num terreno doado pela Marinha, e outra em Campo Grande, em terreno doado pelo governo do estado. São presídios de segurança máxima para duzentos detentos, onde se respeita o direito do preso, mas onde não entra nem sai nada. Nós não tínhamos nenhuma penitenciária federal. Todo o dinheiro do Fundo Penitenciário era gasto conforme já relatei. Por exemplo, para a penitenciária de Presidente Bernardes (SP), que é de segurança máxima, o governo federal deu 80% do dinheiro. Mas também, se hoje tivéssemos penitenciária federal, não ia adiantar nada, porque não há agentes penitenciários federais. O presidente Lula assinou outra medida provisória, criando essa carreira.

O senhor poderia falar da reforma do Judiciário?
A luta contra o crime organizado e contra a violência no Brasil passa irrefutavelmente por uma reforma do Poder Judiciário e da polícia. Há no Senado uma proposta de reforma do Judiciário que começou com o projeto do Hélio Bicudo em 1992 e foi sendo deformada, passou pelo projeto da Zulaiê Cobra Ribeiro na Câmara e hoje é um produto de lobbies dos tribunais superiores. Aprovar ou não essa reforma que está no Senado não vai adiantar nada para a Justiça brasileira, vai continuar tudo do mesmo jeito. Então propus ao presidente que constituíssemos uma secretaria que recolhesse todo o material de reflexão a respeito, inclusive essa proposta de reforma, e estabelecesse as linhas gerais de uma reforma no Poder Judiciário. Pedi a vários juristas que mandassem material recente, mas o que falta, e sem o qual não podemos trabalhar, é o diagnóstico. Fábio Konder, José Eduardo Faria, Nilo Batista, Dalmo Dallari, eu, todos temos uma idéia de reforma, mas é tudo construção teórica, ninguém sabe como está o Poder Judiciário hoje, onde estão os gargalos. Então, a primeira tarefa, à qual Sérgio Renault tem se dedicado, é montar uma grande pesquisa; a segunda tarefa, concomitante a essa, é dar um choque de gestão em algumas varas. Já existem experiências muito bem-feitas. Há uma em São Paulo, no Tribunal Regional Federal, que para mim, com 45 anos de advocacia e acostumado com barbantes amarrando os processos, foi um choque. A pessoa é atendida no computador por alguém treinado, faz a petição inicial, o processo anda inteiro e chega até o recurso, a solução final, sem nenhum papel. É isso que precisa ser feito no Poder Judiciário brasileiro, como em todo lugar do mundo. Vamos fazer uma experiência, escolher um ambiente com dez varas e dar um choque de gestão em cinco, treinando o pessoal, informatizando, diminuindo o percurso. Passados quatro meses vai se ver a diferença com relação às cinco que não foram tratadas. Então vamos mostrar que é com gestão que resolveremos 80% dos problemas do Poder Judiciário e convencer os juízes.

Mas a reforma sai neste ano?
Não. Neste ano vamos saber como está o Poder Judiciário. Não pode haver um tribunal como o de São Paulo, que leva três anos para distribuir um processo, ou seja, o processo entra e, até ir para a mão do relator, fica três anos parado. No Rio leva uma semana. A diferença é que no Rio foi feito um trabalho de racionalização, financiado pelo BID.

Essa pesquisa também vai mexer com a questão da corrupção no Judiciário?
Aí entra a questão do controle externo. Existem sinais externos de riqueza que são fatais. Se há um juiz, com salário de juiz, que tem mansão e não é herdeiro de nada, sabe-se que tem coisa. Escrevi um projeto para a OAB em que o controle externo visa a apenas duas coisas. Primeiramente, ele preserva a independência dos juízes. Sou contra o controle externo que invadisse a independência, a consciência do juiz. Isso é besteira inventada por quem é contra o controle externo para criar um inimigo imaginário. As duas coisas que defendo que devem ser controladas externamente são: o cumprimento dos deveres funcionais - porque o controle interno só funcionou raramente no Brasil e quando pressionado pela imprensa; e o acompanhamento orçamentário- financeiro da execução - para evitar coisas que nos remetem a uma frase de Nelson Jobim: "Juiz não sabe administrar, juiz sabe julgar". Então é preciso uma gestão e um acompanhamento técnicos, uma espécie de auditoria do funcionamento.

Mas sua primeira impressão é de que a questão da corrupção é esporádica?
Acho que a corrupção é forte, e se infiltrou muito em todos os poderes.

E como seria exercido esse controle?
Tenho isso tudo pensado: Conselho Nacional de Justiça Federal, conselhos de Justiça estaduais, que envolvam juízes, promotores, advogados e usuários do Poder Judiciário - tem de ter o usuário. Muitos membros do Judiciário não querem, querem só com os juízes. Aí vira controle interno, e controle interno é consciência...

Usuário é quem?
É usuário mesmo, é cidadão, um sujeito provido de bom senso, para que, quando chegar a notícia de que um juiz está com um processo há um ano e não dá a sentença, ele seja chamado! É preciso mexer nessa indústria das listas, das liminares. Esse é o esqueleto da reforma. Vamos nomear comissões - uma para direito penal, outra para direito civil, outra para processo penal, outra para processo civil. Comissões com juristas para ver o que precisa mudar.

Na campanha eleitoral, o Instituto Cidadania lançou na OAB o projeto de combate à corrupção, e a impressão que dá é que o governo optou por levar essa questão em fogo brando. Há o trabalho de Waldir Pires, que é sério, mas a Comissão de Ética Pública da Casa Civil ainda não foi nem reestruturada. O que está acontecendo com esse tema?
Isso é uma questão de cultura no sentido sociológico; há coisas sendo feitas, o ministro Waldir Pires está fazendo muita coisa, há trabalhos de inteligência sendo feitos, a Polícia Federal está fazendo um grande trabalho, há algumas iniciativas do Ministério Público que estamos coordenando, mas tudo no fim acaba no problema da lavagem de dinheiro. No ato de corrupção, o sujeito não dá recibo, mas na hora de lavar o dinheiro ele deixa pista, ele compra nota fria ou bilhete da loteria. Aí é que se pega o criminoso. Isso está na agenda do governo permanentemente. No Ministério da Justiça temos um grupo que está estabelecendo acordos de cooperação, tratados com esses países chamados de paraísos fiscais.

Para finalizar, vamos falar da demarcação das terras indígenas. Uma ONG importante como o Instituto Socioambiental, tradicionalmente defensora da causa indígena, fez uma avaliação dos cem primeiros dias de governo em que demonstrava preocupação, argumentando que a demarcação de terras é uma tarefa estritamente administrativa, que não dependia mais do Poder Legislativo. Houve um encaminhamento delongador, que foi remeter de volta o exame da matéria para o Senado opinar. Como está essa questão?
Homologamos quinze demarcações indígenas nesse começo de governo, mas falta a demarcação da Raposa Serra do Sol, em Roraima, onde a sociedade inteira está contra, o governador, que veio para o PT, está contra. São 160 mil hectares, uma área enorme, onde dizem que há duas cidades. Os indigenistas afirmam que não, que essas "cidades" foram plantadas lá. Precisamos saber dos fatos, porque vêm os indigenistas e me contam uma história, vem o pessoal do governo e me conta outra história - sofro pressão dos dois lados. Acionei o Sivam e um grupo de elite da Polícia Federal para fazer um levantamento fotográfico, um levantamento de tudo, e ao mesmo tempo um serviço de inteligência. Mas tem muita briga. O processo está comigo, e eu acho que o presidente tem de homologar, mas isso vai criar uma crise sem precedentes no estado. Então, precisamos criar mecanismos de compensação.

Mas sua determinação é demarcar?
Eu não decido, quem decide é o presidente, mas minha opinião é fazer a homologação porque é simbólico. Ela vai trazer prejuízos políticos sérios para o governo, mas a não-homologação é pior, traz inclusive danos internacionais para o governo brasileiro.

Paulo Vannuchi é vice-presidente do Instituto Cidadania e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate.