Internacional

A Unidade Popular chilena deve ser vista como projeto possível, como vanguarda dos ideais revolucionários em nosso continente

Os trinta anos do golpe de Estado de 11 de setembro no Chile provocaram uma onda de testemunhos e relatos. Por outro lado, colocaram em discussão outra vez os aspectos estratégicos e táticos que envolvem todo processo socio­político de grande envergadura, como o que se realizou naquele país.

No que se refere ao testemunho, eu teria muito o que contar. Já faz parte do folclore do golpe de Estado o fato de que eu estava na primeira lista dos procurados pela junta militar e terminei me exilando em minha própria casa. Isso ocorreu porque a embaixada do Panamá, para onde fomos alguns retardatários em decidir se asilar, foi uma das últimas a serem guardadas pela ditadura e, por isso, foi literalmente assaltada em poucos dias por uns trezentos asilados, que tinham de ajeitar-se num pequeno apartamento de 100 metros quadrados.

Sob ameaça de converter-se em fonte de graves problemas de saúde, tornou-se possível e necessário transladar essa população para um novo local, que foi exatamente a minha casa, recém-comprada e ainda não habitada, que cedi à embaixada do Panamá. José Serra conta esse caso em seu excelente artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo do dia 11 de setembro. Porém repete um erro de informação já publicado em vários outros relatos sobre essa situação. Eu não aluguei o prédio para a embaixada, eu o emprestei, sem cobrar absolutamente nada. Claro que eu não esperava que fôssemos ficar mais de seis meses impedidos pelo governo chileno de abandonar o país. Nem averiguei nunca a notícia que teria saído na imprensa panamenha de que se teria alugado uma casa para a embaixada a um preço bastante razoável.

Escapa do marco do 11 de setembro o fato de que essa mesma casa foi confiscada pela junta militar, para ser transformada num dos principais centros de tortura no país. O que Serra não contou é que foi ele quem me levou para a embaixada do Panamá, entre os vários outros brasileiros que citou. Os fatos mais terríveis têm sempre seu lado positivo, e, sem dúvida, a solidariedade dos companheiros das organizações internacionais, entre os quais se incluía Serra, foi uma dessas dimensões positivas da tragédia. As diferenças políticas que temos hoje não podem apagar essas ações tão corajosas.

Existem muitas coisas para contar, todas marcadas por um profundo sentido humano, pois nesses momentos excepcionais, nessas situações-limite, se exacerba o conteúdo emocional das ações humanas e elas adquirem a categoria de símbolos culturais, modelos e arquétipos que refletem os valores e os paradigmas da coletividade. Mas eu gostaria de concentrar este artigo nas questões estratégicas e táticas que se encontravam e ainda se encontram na análise do processo chileno. Para isso vou recorrer a alguns textos meus, produzidos durante o período do governo da Unidade Popular.

O programa da UP e sua aplicação

O programa da Unidade Popular surgiu em condições históricas muito particulares. No final da década de 1960 o movimento popular mundial se encontrava num auge excepcional. Os movimentos de 1968 apontavam para grandes transformações sociais e culturais em todo o mundo.

No campo socialista, a experiência da Tchecoslováquia com a famosa Primavera de Praga e sua brutal repressão havia iluminado a reflexão sobre o socialismo e apontava para novos caminhos teóricos e práticos. A ofensiva do Tet demonstrava a debilidade estratégica dos Estados Unidos no Vietnã e anunciava sua derrota iminente.

Os movimentos populares na França, nos Estados Unidos, na Itália, no Japão, no México ou no Brasil formavam uma esteira de renovação social, política e ideológica, que se completava com fenômenos totalmente novos como a formação de governos militares progressistas no Peru, no Equador, em vários países da África e da Ásia. No meio desses processos tão radicais, a experiência chilena emergia como um farol, uma luz especial. Vinda de um país subdesenvolvido e dependente. Parecia excepcional que se colocassem o processo eleitoral e o respeito à institucionalidade pública como um caminho possível para a transição ao socialismo.

A posição chilena era muito especial e específica por duas razões: não só pelo aspecto tático de respeitar os marcos constitucionais chilenos, mas também por propor como objetivo histórico a transição ao socialismo. Nenhuma experiência política no mundo havia se atrevido a propor a transição ao socialismo como programa de governo. A própria revolução russa de outubro de 1917 propunha um novo Estado operário e camponês de base soviética, mas a decisão de construir o “socialismo num só país” fora tomada somente em 1926-27. O primeiro governo trabalhista inglês em 1924 realizara mudanças radicais por meio da nacionalização do aço e da criação de uma medicina socialista. O México revolucionário levantara a perspectiva de uma educação socialista. A revolução cubana havia se declarado socialista somente em 1961 durante a invasão da Baía dos Porcos. Os regimes das repúblicas populares, iniciados depois da Segunda Guerra Mundial, não se definiam como socialistas ini­cialmente, inclusive no caso da China.

Chegar ao poder com um programa de transição ao socialismo proposto num processo eleitoral e aplicado corajosamente depois das eleições era uma experiência totalmente nova. Não se pode negar a influência do avanço teórico das ciências sociais latino-americanas no período como um fator decisivo para a elaboração de um programa tão original e corajoso. O leitor pode ter uma idéia dessa questão em meu livro A Teoria da Dependência: Balanço e Perspectiva, publicado pela Editora Civilização Brasileira em 2000.

Em que consistia essa proposta de uma transição ao socialismo? O programa da Unidade Popular dizia: “As forças populares unidas buscam como objetivo central de sua política substituir a atual estrutura econômica, terminando com o poder do capital monopolista nacional e estrangeiro e do latifúndio, para iniciar a construção do socialismo”. (Veja-se este texto em meu artigo “Dos momentos del proceso revolucionario”, publicado na revista que eu co-dirigia, Chile Hoy, de 30 de junho a 6 de julho de 1972.)

Havia uma relativa clareza sobre os dois aspectos ou momentos da revolução chilena: a destruição do latifúndio, a nacionalização do cobre, principal produto do país, a destruição dos monopólios nacionais e internacionais, que se inscreviam no quadro de uma revolução de libertação nacional; e as tarefas de construção de uma nova sociedade socialista, que se perfilava na formação de uma área social, apoiada na planificação socioeconômica, assentada nas organizações populares, na transformação destas num poder reconhecido pelo Estado capaz de conduzir o conjunto da economia. A área social, o planejamento e o poder popular eram os elementos-chave da construção de uma sociedade socialista, envolvendo aspectos de produção, onde se avançou muito, de distribuição, onde se vacilou enormemente, de financiamento e de estrutura de preços, onde se deram passos para a frente e para trás.

No auge do debate político tivemos um papel muito especial através dos debates e seminários que conduzimos no Centro de Estudos Socioeconômicos da Faculdade de Economia, convertida em Faculdade de Economia Política como resultado da Reforma Universitária inicia­da em 1967, ainda no governo Frei. Também interviemos no processo através da revista Chile Hoy, que organizamos com um conjunto de companheiros de todos os partidos da esquerda chilena, incluindo o MIR. Nossa participação foi sempre clara no sentido de apoiar o programa socialista da Unidade Popular, e por isso vimos tergiversar-se insistentemente o sentido de nossos trabalhos.

A tergiversação mais séria se refere a nosso apoio às medidas socialistas de avançar na formação da área social e da participação popular. Na edição de 6 a 12 de outubro de 1972 da revista Chile Hoy, publicamos um artigo com o título de “Bendita crise”, no qual destacávamos o sentido positivo da “crise” que se instalava no país. Ela resultava das conquistas dos trabalhadores, e se isso criava contradições entre o setor produtivo e a demanda dos setores populares, provocando crescentes tensões, era positivo e levava ao avanço do movimento popular.

Os fatos comprovaram esse enfoque. Logo em seguida a classe dominante tentou, com o apoio internacional, desagregar a economia chilena, fechando as fábricas, impedindo o transporte de pessoas e de produtos em todo o país, buscando instaurar o caos. A resposta dos trabalhadores foi de um heroísmo espantoso. Eles foram a pé para o trabalho, ocuparam as fábricas fechadas e as colocaram para funcionar, aliaram-se aos militares para criar uma alternativa de transporte em todo o país. Essa maravilhosa demonstração de força, consciência e coesão me levou a publicar no número de 1 a 7 de dezembro de 1972 da Chile Hoy um artigo que considero o desdobramento natural da bendita crise. “El gigante obrero” chamava a atenção para o renascimento da militância obrera e de sua transformação em dirigente claro e decidido do processo revolucionário.

Contudo, os economistas do governo da Unidade Popular não compreenderam a importância desses fatos que obrigavam a colocar em xeque, pelo menos durante os grandes enfrentamentos políticos do período, as exigências do mercado e de um regime de preços fundado nele. Ao contrário, assustados com o “caos” e a “crise” provocada pelo avanço do setor social, promoveram um choque baseado no restabelecimento da “verdade dos preços”. Pode-se entender o impacto inflacionário dessa iniciativa, que retirou do controle do governo os fatos econômicos básicos, favorecendo os especuladores, os monopólios da distribuição e os controladores do mercado negro.

A partir desse momento a situação se inverte e a crise passa a ser verdadeira. A restauração do mercado favorece a direita. Buscamos desesperadamente chamar a atenção sobre o perigo que representava uma inflação que chegava aos 200% ao ano. Publicamos então dois artigos cruciais na Chile Hoy. Na edição de 18 a 24 de maio de 1973 escrevíamos “A irreversível pendente da guerra civil” e, na de 25 a 31 de maio, “Podemos combater a catástrofe”. Ao mesmo tempo chamamos o próprio ministro da Fazenda para um debate na revista e outras autoridades-chave da política econômica, como Pedro Vuscovic, ministro do Planejamento, que encarnava o ponto de vista oposto à “verdade do mercado”. Em 20 de julho perguntávamos em outro artigo “Podemos triunfar?”, e respondía­mos que sim. Era possível bloquear o golpe fascista se assumíssemos o pleno controle da economia, incluindo a distribuição de bens segundo princípios sociais, e não mercantis. Nosso último artigo, na edição de 24 a 30 de agosto de 1973, falava “Sobre golpes negros e brancos”, enquanto a Chile Hoy denunciava claramente o golpe de Estado em marcha.

Este testemunho de nossa participação intelectual e política nesse processo, tantas vezes tergiversada pelos que tentaram isolar a intelectualidade brasileira da verdadeira teoria da dependência e do verdadeiro processo chileno, quer reivindicar o papel da vontade revolucionária e da análise científica e da decisão política correta. É muito difícil pensar que as condições que presidiram o processo revolucionário chileno venham a se restabelecer completamente. Mas muitos de seus aspectos fundamentais deverão reaparecer numa fase mais avançada da crise de hegemonia do neoliberalismo ora em decadência. Fica assim no ar a pergunta mais dolorida: podíamos vencer?

Podíamos vencer?

A derrota não é uma prova de que a vitória era impossível. Contudo, a tendência avassaladora que desmobiliza os vacilantes e intimida mesmo alguns dos lutadores mais aguerridos é tirar esta lição fatal: era impossível, nós erramos. Darcy Ribeiro se negava a aceitar tal conclusão no que se refere ao golpe de 1964. “Nós fomos derrotados por nossas qualidades, e não por nossos defeitos”, dizia ele, reivindicando o projeto histórico nacional-democrático que encarnava o governo de João Goulart.

A recente divulgação dos estudos de opinião realizados na época pelo Ibope mostra que Jango se mantinha com o apoio da maioria da população em março de 1964. Esses dados foram mantidos em segredo todos esses anos para não desmentir um dos mitos mais caros da direita, que justificava o injustificável alegando que Jango deveria ser derrubado porque tinha a oposição da maioria da população. Veja-se que esse mesmo argumento é usado hoje contra Hugo Chávez, na Venezuela.

O mesmo ocorria no Chile de Allende. As últimas eleições parlamentares haviam sido ganhas pela Unidade Popular, que contava ainda com o apoio virtual de um setor da democracia cristã. Não fora assim não seria necessário à direita recorrer à força mais brutal para derrotar o colossal movimento de massas que se erguia naquele país.

Ao contrário do que se afirma em geral, o Chile provou que a revolução socialista que emergiu na região a partir da revolução cubana podia ganhar a maioria da população, quando enfrentada ante a disjuntiva de consolidar seus avanços ou ceder às chantagens da direita. Se havia dúvidas, elas vinham sobretudo das lideranças. Formadas dentro de um marco histórico e ideológico nacional-democrático, elas criam impossível dar o salto histórico para um regime econômico social superior.

Esta é uma das conquistas mais importantes da reação antipopular na América Latina: os regimes de terror instalados em quase toda a região cumpriram seu objetivo imediato – fizeram as maiorias recuar de seu ímpeto revolu­cionário. A covardia e a “prudência histórica” se apossaram das mentes e dos corações de povos inteiros assustados diante da fúria da direita. O império do terror transformou em verdades incontestáveis as mentiras mais repugnantes.

Hoje, depois de dezenas de anos de vitória conservadora, que cenário encontramos senão a estagnação econômica, a manutenção do atraso, a miséria, a falta de opções convertida em sabedoria exemplar. E a capitulação buscando justificar-se ao atribuir a derrota aos “erros” dos reformistas ou dos revolucionários.

No caso do Chile, que comemorou os trinta anos do golpe de 1973 em setembro, o ministro Zaldívar, da ala direita da Democracia Cristã, é o que melhor expressa essa atitude. Ele se nega a participar das honrarias a Salvador Allende, ao qual se opôs, colocando-se a serviço do golpe militar. Ele e sua gente ameaçam os aliados socialistas da Convergência ao advertir que esse é um tema que divide a frente pós-Pinochet. Na Argentina, Menem havia paralisado a ação democrática com as mesmas ameaças. O governo espanhol busca deter a mão da Justiça de seu país, que se estende até os algozes latino-americanos de seus cidadãos.

Esse é o preço da derrota mal curtida. Dar para trás é sempre insuficiente. É necessário ir até onde a direita queira. É necessário renegar seus ideais, sua razão de viver. Os povos também vacilam nesses momentos. Eles têm medo dos custos do terror, da violência, da perda das pequenas (para alguns, mas grandes para as maiorias) conquistas realizadas. É necessário aguardar a criação de novas correlações de força. Mas é necessário também adotar o ideário da direita? É necessário passar para o outro lado?

Nessa hora as justificativas históricas ganham força. Fomos derrotados porque quisemos demasiado, porque ameaçamos demasiado nossos adversários e terminamos isolados... Daí que se torna inevitável abandonar as pretensões revolucionárias. Daí para renegar os nossos ideais é um pequeno passo. Eles eram ambiciosos, portanto errados, portanto devem ser abandonados por ideais menos radicais.

Ora, conhecemos essas histórias com os ideais democráticos burgueses depois do fracasso da revolução francesa e de sua forma moderada e às vezes caricata que Napoleão tentou exportar para toda a Europa. Mas pouco a pouco os ideais republicanos foram se impondo em novas ondas revolucionárias. Esta é uma verdadeira lição da história: o terror reacionário alcança vitórias esmagadoras. Veja-se por exemplo a “definitiva” derrota da Comuna de Paris, que teria erradicado o socialismo da face da terra. Mas elas não conseguem deter totalmente o impulso histórico dos povos.

Temos de reivindicar a Unidade Popular Chilena como projeto possível, como vanguarda dos ideais revolucionários em nosso continente, como ação das maiorias populares que encarnavam, com seu líder Salvador Allende, “as grandes alamedas do futuro”.

Theotonio dos Santos é professor titular da Universidade Federal Fluminense e coordenador da Rede sobre Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen), criada pela Unesco e pela ONU. Em 1973 dirigia o Ceso e co-dirigia o semanário Chile Hoy, era membro do Partido Socialista chileno