Nacional

A diretriz macroeconômica vigente, conseqüência da escolha feita pela sociedade na década de 1990, compromete o objetivo em torno do qual se organizaria o pacto social - chegar rapidamente à inclusão social

Ao longo dos últimos vinte anos a idéia generosa de um pacto social tem rondado a cena política brasileira, freqüentado as mesas de debate acadêmicas, as colunas da imprensa, enfim, tem povoado a imaginação de todos aqueles que lidam com o setor público, seja do ponto de vista da militância política, seja da gestão administrativa, seja da análise acadêmica dos fatos. Desde a redemocratização do país, ainda no início dos anos 1980, a concepção de um pacto social está posta e vem sendo moldada. Agora, com a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a assunção pelo governo desse eixo como prioridade no campo da relação com a sociedade brasileira, a ponto de criar um ministério extraordinário para conduzir a questão, o país parece ter chegado ao ápice desse movimento.

De outro lado, quando se fala em gestão democrática das cidades, também se está falando, e não por coincidência, de um processo de aprendizado e aperfeiçoamento de instrumentos de gestão, que ao fim e ao cabo vão viabilizar o pacto social. O grande entendimento em torno da necessidade de eliminar, ou de reduzir até o ponto de eliminar, a exclusão social – esta é a idéia motriz do pacto. E essa idéia, para se transformar em realidade, precisa de instrumentos adequados na gestão pública. Assim, pode-se dizer que gestão democrática das cidades nada mais é que justamente a construção lenta, paulatina e persistente desses instrumentos. É essa construção que os municípios brasileiros governados pelos partidos do espectro democrático popular têm praticado nesses vinte anos, de novo não por coincidência, o mesmo período de tempo em que a concepção generosa do pacto social foi ganhando corpo até chegar agora ao centro mesmo do governo republicano do Brasil. São dois movimentos simultâneos e complementares, fadados a se juntar, em um dado momento da nossa história, em um único e grande impulso.

Assim, parte significativa das cidades brasileiras começou, desde os anos 1980 e ao longo de toda a década de 1990, a praticar formas de gestão participativa que podem ser vistas como o conteúdo, no campo da administração pública, do pacto que se pretende construir no Brasil. Tais instrumentos, que chegam agora ao cenário federal, existem e já estão mais do que testados nas cidades. Aqui se trata principalmente, como é óbvio, dos orçamentos participativos, que todos conhecemos e cuja descrição torna-se desnecessária neste texto. Mas não só. Cabe ressaltar o papel dos conselhos municipais.

Tome-se, por exemplo, o caso de Belo Horizonte. Não há setor da vida social da cidade em que não atue um conselho, com formato e função definidos legalmente. Em sua maioria são conselhos deliberativos, mais do que consultivos. Para superar a limitação dos conselhos setoriais (Conselho de Saúde, Educação, Meio Ambiente, de Assistência Social, da Criança e Adolescente, do Patrimônio Histórico e Cultural etc.), a prefeitura criou em 2001 os conselhos regionais populares, um instrumento que dá mais amplitude à participação popular. Funcionam em cada uma das administrações regionais (subprefeituras) da cidade, com membros eleitos de forma direta e com atribuições de acompanhamento amplo de todas as atividades da administração. Exemplos como este estão em marcha, e com sucesso, em boa parte das cidades mais importantes do país.

Não se pretende aqui alimentar, por outro lado, nenhum tipo de visão idílica desse processo. Definitivamente, o território das democracias participativas não é um mar de rosas. É, sim, território de conflitos, de tensão política e social. Mas é também o terreno ideal para construir aquilo que é a meta de todo governo democrático, vale dizer, construir consensos. Consenso se constrói a partir do debate, e o debate opõe pontos de vista. É natural que haja tensão e disputa no interior dos conselhos.

Não obstante essa característica, estes – e os orçamentos participativos – são os melhores instrumentos disponíveis para a gestão democrática de uma cidade, de um estado, de um país. As dificuldades desse caminho já estão inteiramente mapeadas e conhecidas, e se dirigem para a via da superação. Perdeu espaço, de maneira muito relevante, a visão dos setores que pretendiam opor a forma participativa de governo à forma representativa. Hoje, concretamente, na maioria das cidades os conselhos e os orçamentos participativos convivem bem com os legislativos municipais.

Não há oposição entre uma coisa e outra, até porque seria um contra-senso. Busca-se que o trabalho de um complemente o do outro. Perdeu força também o viés mais setorial e corporativo de que os conselhos em geral padeciam. A tentação corporativa tem diminuído, a ênfase tem ficado mais ampla, as cidades têm sido pensadas mais em seu conjunto. Por último, mas não menos Importante, tem crescido a consciência da necessidade de assegurar amplo acesso a essa forma de participação, amplo acesso ao cidadão que não é politizado nem organizado – que constitui a maioria da população brasileira. Daí a necessidade de mecanismos que sejam eficientes e propiciem discussões aprofundadas, mas não sejam herméticos nem excessivamente complexos.

O fato é que o cenário que temos hoje mostra, de um lado, as cidades brasileiras com uma notável vitalidade democrática, participativa, e com um crescimento enorme e constatado por todos da consciência cidadã no âmbito das gestões municipais. De outro lado, pela primeira vez na história deste país, não só na história da República, mas nos 500 anos de história do Brasil, vemos a União representada por um governo federal que tem claramente compromissos com essa forma de governar e com a construção, tão desejada por todos, do pacto nacional contra a exclusão social. Alguém menos avisado poderia pensar que se está, quem sabe, no melhor cenário possível para realizar o pacto social e a gestão democrática das cidades.

Infelizmente, nada é tão simples assim. Embora todo esse cenário seja absolutamente verdadeiro e comprovável, há outro enorme desafio pela frente. O ambiente macroeconômico, não só do Brasil, mas da maioria, senão mesmo de todos os países da América Latina, todos os países periféricos do capitalismo, aqueles que não estão no privilegiado G8, não facilita, ao contrário. Novamente o menos avisado pode entender a constatação da frase anterior – de que o cenário macroeconômico é adverso aos objetivos nacionais – como uma crítica à política econômica do ministro Palocci. Mas, definitivamente, não é essa a questão. A questão é muito mais complexa, e vai bem além do simplismo que se esconde na opção entre ser “a favor ou contra” as atuais diretrizes da política econômica.

A questão de fundo é que esse ambiente macroeconômico está diretamente ligado a uma escolha que foi feita pela sociedade brasileira, como foi feita pelas sociedades daqueles outros países periféricos, em algum momento situado entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990. No Brasil, como se sabe, a escolha se deu em 1994, com o nome de Plano Real. Optou-se então, aqui como em toda a periferia do capitalismo, pelo caminho de buscar a estabilidade da moeda nacional ancorando-a à grande moeda internacional, que é o dólar. Como a opção pela âncora cambial foi feita por todos (Argentina, Turquia, Venezuela, México etc.) que se viam às voltas com regimes inflacionários altos e persistentes, e tendo ela efetivamente funcionado como mecanismo de estabilização de preços, ato contínuo, no mundo inteiro, a inflação deixa de ser um problema. Aquilo – a inflação acelerada – que tinha sido o fantasma das economias periféricas desde a década de 1970 desaparece como fenômeno maior. Mas o custo da opção pela ancoragem cambial começa, pouco a pouco, a mostrar seu peso. No caso do Brasil, tal custo foi aumentado por um erro gravíssimo de pilotagem econômica no início do Plano Real, quando se pôs em prática uma política de valorização cambial quase suicida durante um período de tempo demasiado longo. Mesmo que não tivesse sido assim, embora o cenário pudesse ter-se abrandado, nada mudaria essencialmente. E o cenário, que incorpora agora em grande estilo aquilo que chamamos aqui de “custo da opção”, é marcado, acima de tudo, pelo endividamento público.

Tudo se passa assim: ao equiparar o real ao dólar, o governo brasileiro (que não é, por suposto, emissor de dólares) impõe-se a tarefa obrigatória de atraí-los (a eles, os dólares) na proporção que se fizer necessária para manter a paridade das moedas. Ora, não há outro caminho para isso senão a emissão de títulos e/ou a venda de patrimônio estatal. Num ou noutro caso, tudo deságua no aumento da dívida pública. Esta, como se sabe, passou de um quarto para quase dois terços do PIB brasileiro nos oito anos que se seguiram ao Plano Real. E, na presença de uma dívida pública elevada, que é o nosso caso, o componente superávit primário das contas públicas e o componente juros positivos dos títulos públicos tornam-se permanentes. E vão ser companheiros constantes até que haja uma grande mudança estrutural e o país possa ter a vulnerabilidade externa reduzida.

Mas isso é projeto de longo prazo. A curto e médio prazo, pode-se discutir se a taxa de juros cairá de 15% reais ao ano para 9%, patamar que alguns economistas consideram o mínimo indispensável para não provocar fuga de capitais em economias com o índice de risco semelhante ao do Brasil. De todo modo, a taxa de juros continuará positiva, vale dizer, remunerando aos rentistas bem acima dos demais setores da economia. Da mesma maneira, pode-se debater o tamanho do superávit primário – e ele certamente deverá se reduzir um pouco, na perspectiva de acordos com o FMI mais favoráveis ao país. Mas o componente superávit primário permanecerá, o que significa que se continuará arrecadando impostos e devolvendo à população, na forma de serviços públicos, menos do que se arrecadou. A diferença (o superávit) vai para os rentistas, na forma de juros da dívida interna e externa. Ao fim e ao cabo, o setor financeiro continua se beneficiando – em detrimento do setor produtivo –, o gasto público, inclusive e principalmente o de investimento, continua travado e o crescimento econômico sustentado torna-se quase impossível, dificultando ou até obstando as intenções distributivas corroboradas pela Nação ao eleger o governo Lula.

Configura-se assim um claro paradoxo. A diretriz macroeconômica vigente, conseqüência necessária da escolha feita pela sociedade brasileira ainda na década de 1990 (lembrar sempre que o ex-presidente FHC foi eleito e reeleito em primeiro turno), compromete o grande objetivo nacional, ou seja, aquele de chegar rapidamente ao território da inclusão social plena, objetivo em torno do qual se organizaria o pacto entre setores e classes. Todos os dados confirmam esse paradoxo. Os municípios, que são hoje os grandes prestadores de serviços públicos ao cidadão, recebem a menor parte do bolo tributário (cerca de 14% do total). E, no entanto, a educação, a saúde, a limpeza urbana, o trânsito e o transporte, a assistência social, as atividades de fiscalização, os cuidados com o meio ambiente e muito mais, serviços que dizem respeito diretamente à qualidade de vida das pessoas, tudo é responsabilidade do município. E o processo não acabou. A municipalização avança e vai além mesmo das atribuições constitucionais.

Este é, por exemplo, o caso da segurança pública. As cidades vão criando guardas municipais, ou ampliando as funções das que já existem, respondendo à justa demanda dos cidadãos pela proteção de seu patrimônio e de sua integridade, à qual as instituições policiais dos estados já não conseguem atender.

Na outra ponta, a União, que praticamente nenhum serviço direto presta à população, abocanha nada menos que 60% da arrecadação tributária. Os estados ficam com 26% e, como se sabe, mal conseguem manter em dia suas gigantescas folhas de pessoal. Essa divisão dos impostos, frontalmente contraditória com as funções sociais que os brasileiros reivindicam do poder público, é todavia funcional para o cumprimento da inescapável diretriz macroeconômica de geração de superávits primários e de manutenção de juros positivos. Evidências de que tal desenho, no curto prazo, não pode nem vai mudar podem ser fartamente recolhidas no exame das idas e vindas da reforma tributária, desde as tentativas do governo FHC até o projeto de “reforma possível” que ora tramita no Senado.

E, no entanto, a necessidade de um pacto pela inclusão social persiste e se aprofunda. Esse é o paradoxo que nos desafia neste início de milênio e não será superado com lamúrias, diatribes ou críticas equivocadas, ainda que – em alguns casos – bem intencionadas. A superação desse quadro será resultado de dois processos paralelos, que já estão em curso.

O primeiro deles é o de transição dessa diretriz macroeconômica para outra, mais compatível com o anseio histórico pela inclusão. As condições estão sendo criadas, com a redução da dívida em dólares, a reversão de expectativas negativas que fez cair o chamado “risco Brasil”, abrindo espaço para a queda da taxa de juros, e todas as demais medidas que, com seriedade e maturidade, o governo do presidente Lula vem adotando. O segundo processo está em marcha nas cidades administradas por governos do campo democrático-popular, aliando participação, eficiência e criatividade para gerar resultados positivos. Em Belo Horizonte, o Orçamento Participativo já entregou quase 700 obras, em toda a cidade, em seus dez anos de existência. Os programas sociais expandem continuamente sua atuação e aprimoram sua qualidade: o Bolsa-Escola, por exemplo, atende a mais de 10 mil famílias do município, e é modelo nacional.

Tudo isso foi obtido em circunstâncias adversas, sem nenhum apoio ou recurso dos outros níveis de governo. O desempenho observado nos municí-pios pode perfeitamente ser aplicado no plano federal. O caminho a ser seguido implica produzir gastos cujo impacto seja público, mas a contabilidade não aproprie como tal, o que permitirá cumprir as metas fiscais e simultaneamente colher os benefícios desse investimento.

Vários exemplos são possíveis. A Caixa Econômica Federal pode financiar diretamente as comissões do orçamento participativo, transformadas em cooperativas populares. Diferentemente de um empréstimo ao município, a modalidade sugerida não pode ser contabilizada como gasto público, mas tem impacto semelhante sobre o que interessa, a saber, a redução das carências urbanas na área da habitação, do saneamento e da infra-estrutura.

A Petrobras pode manejar seus instrumentos de preços de maneira a viabilizar um custo mais baixo, por exemplo, para o asfalto betuminoso. Asfalto é um item de demanda exclusivamente do setor público. O setor privado não consome asfalto. Quem consome asfalto são as prefeituras, os governos dos estados e a União. Se o preço do asfalto cair, à custa de uma pequeníssima redução da lucratividade da empresa, vai-se alavancar enormemente a capacidade de investimento público na manutenção de estradas e vias urbanas, com as conseqüências virtuosas previsíveis.

Enfim, a vontade política de superar o desafio, unida à criatividade já demonstrada na esfera municipal, são peças fundamentais desse arranjo. E seu sucesso será a superação do paradoxo que hoje se interpõe entre o povo brasileiro e seu futuro.

Fernando Pimentel é prefeito de Belo Horizonte (MG)