Internacional

O “blairismo” não foi uma traição aos chamados ideais revolucionários de classe, mas uma tentativa de renovação universalista do pacto social-democrata

Um dos grandes desserviços em curso para a renovação da esquerda mundial – particularmente daquela que não perdeu o gosto pela utopia socialista-democrática – é a pobreza dos argumentos que uma grande parte da militância da esquerda “tradicional” (ou ortodoxa) usa para abordar o surgimento do “blairismo” como fenômeno político.

Esse projeto, que aproximou a social-democracia do neoliberalismo em nome da crítica ao socialismo marxista e face à falta de perspectivas que sucedeu à queda do Muro de Berlim, é visto por essa parte da esquerda a partir dos velhos moldes teó­ricos stalinistas (ou trotskistas). Trata-se – segundo essas avaliações – da “renúncia aos ideais socialistas” ou de escolha política que resultou em “traição objetiva” aos “interesses” dos trabalhadores.

Independentemente do juízo meramente moral que esses argumentos encerram, eles estão errados. O “blairismo” é uma tentativa sincera de resposta à crise da social-democracia e do socialismo. Uma resposta pela direita, é óbvio, nas condições específicas da cultura política do movimento operário inglês. Este é um movimento que – mesmo proliferando no capitalismo mais avançado da Europa – jamais aderiu às previsões de Marx.

O “blairismo”, portanto, não foi uma traição aos chamados ideais revolucionários de classe, mas uma tentativa de renovação universalista do pacto social-democrata. Essa tentativa de renovação visava tirar da estagnação político-eleitoral as classes trabalhadoras reunidas em torno do trabalhismo inglês, que já eram “parte” voluntária de um contrato político de adesão ao capitalismo. Qual foi a mudança na época de Blair? A passagem do trabalhismo inglês da condição de “parte” de um contrato social que orientava um capitalismo regulado para outra condição de “parte”, com adesão de todos à sociedade regulada pelo mercado.

Não houve, portanto, nenhuma “renúncia” a ideais socialistas, porque renúncia supõe a abdicação de algo de que se “dispõe” – e, no caso, as classes trabalhadoras inglesas não detinham nenhum ideal socialista. O movimento trabalhista inglês sempre preferiu o capitalismo com democracia à tentativa de socialismo sem ela. Logo, Blair, na verdade, deu curso a um sentido já existente no movimento operário inglês e já escolhido por seu proletariado mais militante, agrupado no Partido Trabalhista: o sentido do compromisso, em primeiro lugar, com a democracia política acima de qualquer veleidade revolucionária ou reformista radical.

Quanto à imputação de uma eventual “traição” aos interesses dos trabalhadores, o juízo também não se sustenta. Os trabalhadores ingleses, bem informados da experiência stalinista, ao cerrar fileiras em torno dos trabalhistas no pós-guerra, sempre deixaram claro seu compromisso com o mercado. Inclusive transformaram o sistema de regulação, originário dos contratos coletivos de trabalho, num ajuste permanente do mercado para atender a suas necessidades mais imediatas, relacionadas com seus salários e a seguridade social.

A necessidade de sair da social-democracia em crise, ou de não se comprometer com experiências que remetessem para o igualitarismo do racionamento e da carência organizada (sem democracia), foi, portanto, absolutamente coerente. O que ficou comprovado, porém, é que o “blairismo”, que não aceitou certo tipo de salto para o passado (a adesão à ortodoxia), escolheu outro tipo de salto para o passado (adotou o liberalismo radicalizado) e, assim, mostrou-se impotente para construir uma verdadeira “terceira via”.

Essa “terceira via” situar-se-ia num apertado espaço entre a social-democracia e o socialismo marxista de caráter soviético. Esse espaço, de uma verdadeira “terceira via” comprometida com a democracia, a república, a pluralidade política, deveria saber combinar o direito à propriedade privada com a cooperação, o controle público do Estado com a representação política, empresas privadas de interesse público com empresas do Estado sob controle social, mercado com regulação estatal, para que todos tivessem aquele essencial que permitisse obter uma vida digna sem o tolhimento das liberdades individuais.

Assumir a questão das liberdades não somente no que se refere aos direitos sociais, civis e políticos, mas também para o exercício das capacidades individuais empreendedoras de “qualquer do povo” seria a ruptura com o sovietismo, e assumir a domesticação política e social do mercado para sujeitá-lo a fins determinados de antemão seria a ruptura com o retorno ao liberalismo extravagante.
Utopia? É bem menor do que a comunista.

A impotência, também no capitalismo organizado e desenvolvido, do “sujeito-classe” e do “sujeito-partido” para criar as condições políticas e econômicas favoráveis à transição para o socialismo (como modo de iniciar uma sociedade “inteiramente outra”) coloca a necessidade de os socialistas pensarem hoje um projeto “inteiramente novo”. Isso não significa retirar a dignidade nem a importância civilizatória das lutas operárias do século 19 e 20. Mas significa reconhecer que já estamos tratando de lutas democráticas e emancipatórias em outra sociedade, predominantemente da informação e do conhecimento: a sociedade mundial liderada pela vanguarda da informática e da digitalização, na qual as identidades antigas e suas necessidades “se desmancham no ar” e na qual a velha classe operária vai desaparecendo, tanto física como politicamente.

A esquerda depois de Blair não só é viável como necessária, e ainda mais possível do que antes. As limitações ideológicas, políticas e sociais de seu projeto estão cada vez mais evidentes e sua capacidade de sedução está se esgotando rapidamente, em todos os países em que ele se refletiu como rebaixamento dos ideais utópicos da esquerda.

Aqueles ideais utópicos não podem ser absolutizados, é óbvio. Mas servem de referência e “regulação” para as práticas imediatas de governos que querem atacar tanto a degradação das relações humanas e destas com a natureza como as desigualdades sociais gritantes: tanto a alienação do consumismo idiotizante como o belicismo “corretivo” das democracias “maduras”, tanto a manipulação das liberdades públicas como a visão do “Estado total”, presumidamente necessário para combater o “mercado total”.

Em países como o Brasil, em que existe uma ruptura (em curso) entre a sociedade formal e a sociedade informal, a tarefa é ainda mais complexa, embora mais elementar: a grande revolução é incluir as pessoas na sociedade de classes e nos direitos democráticos e sociais mais elementares, para combater a possibilidade de barbárie. Esta extingue a mediação da política e transforma o desequilíbrio e a ingovernabilidade em autoritarismo e violência estatal ou antiestatal, quase sempre de caráter “salvacionista”, como fazem o Sendero Luminoso e os Pol Pot redivivos.

Embora seja disperso e com escassa capacidade de apropriar-se de uma idéia de construção da Nação, o arco social que pode compor um bloco político dirigente, capaz de ordenar um “novo bloco histórico”, é extremamente amplo no Brasil. Para que esse processo se realize é necessário que se ponha a sociedade em movimento, através da retomada do crescimento econômico e da regeneração das funções públicas do Estado. Assim, os contenciosos políticos e as demandas sociais provavelmente se qualifiquem e se expressem racionalmente na cena pública.

A nova esquerda surgirá e afirmar-se-á somente se estiver integrada na construção desses padrões civilizatórios, que só poderão emergir das cinzas do neoliberalismo agonizante.

Tarso Genro é ministro da Educação