Nacional

Existem duas reformas em andamento: uma colocada oficialmente na agenda para discussão e a outra fragmentada em diversas medidas de menor visibilidade, cujas repercussões sobre a educação superior podem ser enormes

Do final do século 19 ao do século 20, a palavra reforma, associada principalmente às obras de Bernstein e dos socialistas fabianos e impulsionada pela ação partidária da socialdemocracia, designou mudanças estruturais voltadas para a implantação de um Estado de Bem-Estar sob o capitalismo. Hoje, significa o contrário: o desfazimento das políticas sociais públicas, com a substituição crescente do Estado pelo mercado na regulamentação das relações sociais e na oferta de bens e serviços necessários à manutenção de condições mínimas de vida antes definidoras de direitos de cidadania. Têm tido esse caráter as reformas previdenciárias e trabalhistas em vários países, e as educacionais não fogem à regra.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, carta socialdemocrata promulgada às vésperas do assalto neoliberal, contém um bom modelo de universidade, que, antes mesmo de totalmente implementado, começa a ser desconstruído pelas práticas de um reformismo bem remunerado, a serviço de uma ideologia reacionária. Essas práticas, que na realidade constituem uma contra-reforma já em curso, de caráter nitidamente privatizante, têm englobado, além da produção de instrumentos normativos, o contínuo abandono da educação pública, paralelamente ao favorecimento à rede de ensino particular.

Não são medidas isoladas: seguem o mesmo padrão que tem no Banco Mundial seu principal articulador internacional e vem sendo imposto num processo de ensaio e erro cuja persistência e intensidade lhe desvendam o caráter estrutural. Não se trata apenas de um ambiente de política pública favorável às tendências privativistas, mas de um cenário marcado pela presença de forças dotadas de consideráveis instrumentos de pressão, no limite coercitivos, que tornam extremamente improvável que as burocracias da área educacional defendam – ou mesmo pensem – ações conflitantes com o movimento geral de destruição da esfera pública. Estamos, no caso, diante de apenas uma das facetas em que se revela a incapacidade crescente de tomada de decisões autônomas pelo governo brasileiro, que deixa de governar na ânsia de manter a governabilidade. Uma vez assumidos os compromissos iniciais referentes ao campo econômico, condiciona-se todo o conjunto das políticas públicas. E, apesar das evidências de que a combinação de juros altos com superávits monumentais não atenua, mas exacerba a vulnerabilidade do país, não há indícios de que se pense em mudá-la. Além de inúmeras manifestações oficiais, atestam-no o último Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2005. Nesse contexto, as alternativas efetivamente disponíveis para as escolhas políticas do Ministério da Educação (MEC) tornam-se extremamente limitadas, sempre que tiverem implicações financeiras, a menos que se busque o caminho da ruptura. E os problemas se avolumaram tanto que deixaram pelo menos um saldo positivo: não há como ignorá-los, suas causas estão expostas e tornaram-se evidentes. Não se pode fazer uma verdadeira reforma universitária ou, muito mais modestamente, nem mesmo uma gestão razoável à frente do ministério sem enfrentar a questão do financiamento. Os doze meses de Cristovam Buarque mostram-no eloqüentemente.

A reforma partida ao meio

Apesar do forte apelo de mídia e dos vários anúncios de programas de impacto, as realizações educacionais do início do atual governo foram praticamente nulas, a não ser, para quem não tiver pouca fé, pela alardeada alfabetização de 3 milhões de pessoas numa campanha sem método nem controle efetivos.

Em relação à educação superior, além das frases feitas e de um ambicioso e frustrante seminário organizado por uma ONG multinacional sobre a universidade do século 21, sobrou apenas a instituição, pela via autoritária da medida provisória, de um sistema nacional de avaliação fortemente controlado pelo ministério, além de um esboço de reforma supostamente de autoria de um grupo interministerial em que o MEC não poderia aspirar senão a um papel coadjuvante.

Sobre o texto em que toma forma e cuja paternidade hoje ninguém reclama, talvez nada valesse a pena dizer, a não ser pelo fato de que exemplifica magnificamente o tipo de projeto de política social a que se pode chegar, mantidas as atuais diretrizes econômicas. É um documento ambíguo em sua concepção geral, mas muito claro nas ações que propõe. Parte de um diagnóstico essencialmente correto, em que se reconhece o abandono financeiro a que estão sendo submetidas as Instituições Federais do Ensino Superior (Ifes). Chega a registrar, o que é surpreendente num documento de governo – e talvez explique o fato de não ter sido assinado –, que o MEC solicitou em vão que se incluísse no Orçamento de 2004 um acréscimo de recursos de cerca de R$ 200 milhões para as despesas de custeio, além de quantia semelhante para bolsas de estudo e R$ 340 milhões para investimentos.

Desse diagnóstico deriva um receituário que, de um lado, induz ao devaneio e, de outro, procura aplicar as rigorosas prescrições do Banco Mundial. Propõe, como se fosse viável fazê-lo sem perda de qualidade, mesmo contando com recursos financeiros, dobrar as matrículas nas universidades federais até 2007. Em troca, acena com aumento crescente de verbas, prometendo garantir, no futuro, cifras muito acima das que, feito o teste da realidade, foram negadas para 2004. Oferece também significativa expansão nos quadros docentes, corrigindo a atual anomalia caracterizada pelo imenso contingente de substitutos, o que é tão positivo quanto irreal, numa política patrocinada por um governo que sistematicamente contradiz, na prática, o que afirma no discurso sobre as relações de pessoal no serviço público. É verdade que tal expansão é muito inferior à que se pretende quanto ao número de alunos, o que se traduziria em salas de aula superlotadas. Mesmo assim, essa é a parte que se poderia considerar boa da proposta, aquela certamente destinada ao veto da intocável equipe econômica.

Quanto ao resto, quem tiver lido um manual de Bird sobre educação superior não encontrará nada de novo em seu conteúdo. O trabalho precário, aparentemente abolido pela hipotética abertura de novos concursos, retorna na proposta de utilização de bolsistas, recém-doutores e aposentados como professores. A flexibilização curricular, panacéia cada vez mais utilizada pelos ideólogos do banco como eufemismo para rotular práticas de barateamento e diversificação de produtos para públicos com capacidades aquisitivas diferentes, é enfatizada sem critério algum, e chega-se ao extremo de propor a criação de 500 mil vagas para estudantes de graduação em modalidades de ensino a distância, até 2007.

Isso significa um contingente próximo ao dos atuais alunos das nossas universidades federais, a surgir em pouquíssimo tempo, num tipo de formação que tem recebido fortes críticas, sem nenhum estudo sistemático das experiências já existentes no Brasil. Mesmo havendo intenção de fazê-lo,seria inviável, em tão curto prazo, criar mecanismos eficientes de fiscalização. Nas condições brasileiras, a proposta não teria outro efeito senão estimular a proliferação de conglomerados verticalizados aplicadores de pacotes de ilusão educacional, talvez produzidos nos países centrais, nos moldes da Organização Mundial do Comércio.

À semelhança de inúmeras tentativas de governos anteriores, o texto reduz a autonomia universitária a um arremedo mutilado e contraditório, exatamente nos termos propalados pelo Bird: a universidade deve ser autônoma para conseguir, por conta própria, o dinheiro que não lhe vem dos cofres públicos. Ou, com menos rodeios, para submeter ao mercado as atividades de ensino, pesquisa e extensão, transferindo a quem possa comprá-las o poder de decidir sobre seus conteúdos, objetivos e métodos. Além disso, ao atribuir a cada instituição a competência para definir os próprios planos de carreira, procura preparar o terreno para estimular a diferenciação de padrões de qualidade em âmbito nacional.

Essa inclinação a desconstituir a autonomia em nome da autonomia não se limita às relações entre universidades e mercado, mas atinge também seus vínculos com o governo. Sob o nome pomposo de Pacto de Ensino Superior para o Desenvolvimento Inclusivo, propõe-se a realização de acordos entre o MEC e as instituições de ensino superior que lhes garantam a transferência de recursos em contrapartida ao compromisso de criação de vagas em áreas específicas de conhecimento. São evidentes as conexões com o mecanismo dos contratos de gestão, que a reforma do Estado, sob Fernando Henrique, procurou estender às universidades. Nos dois casos, o afrouxamento dos controles processuais se faz acompanhar pelo reforço dos controles chamados finalistas. Em ambos, as universidades rompem amarras e ganham ampla liberdade para usar dinheiro público, desde que façam o que o governo quer. É verdade que os acordos previstos no pacto têm objetivos muito mais restritos que os contratos da reforma arquitetada em meados dos anos 1990 pela equipe de Bresser Pereira e que não se assume, agora, a intenção de privatizar abertamente as instituições públicas de ensino superior, transformando-as em organizações sociais.

Mas, como esses acordos podem, no projeto do Grupo Interministerial, ser firmados também com entidades privadas, temos aqui um novo canal para drenar dinheiro do Estado até a rede particular. O modelo se completa com uma proposta de avaliação centralizada e quantitativa, capaz de servir como balizamento para o mercado e para o próprio governo, em suas decisões de investimento.

Esse foi o primeiro ensaio do governo Lula no campo da reforma universitária. Foi aparentemente abandonado, após a substituição do ministro da Educação. Abstraída a promessa pouco convincente de aumento de verbas, o teor do documento era previsível. Trata-se, na realidade, de uma cuidadosa preparação para que as instituições públicas possam sobreviver com recursos cada vez menores, tornando-se baratas, flexíveis, segmentadas, meramente reprodutoras de conhecimento, inteiramente privatizadas, heterônomas em relação ao mercado e ao governo. Essa é a universidade periférica reclamada pelo Banco Mundial, lentamente imposta por agências internacionais e grupos internos e externos de pressão, e em tudo condizente com as orientações do Ministério da Fazenda, formuladas em novembro de 2003, em texto intitulado “Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002”.

Dificilmente se poderia esperar um projeto de outra natureza.

As pessoas, o estilo, a reforma

Recentemente, em 7 de junho, o ministro Tarso Genro divulgou uma nova versão das posições governamentais sobre a reforma, não como proposta acabada, mas como enunciados gerais sobre princípios e diretrizes para elaboração de uma lei orgânica sobre o Sistema de Educação Superior Federal. Um dos objetivos centrais da proposição dessa norma é estabelecer um marco regulatório para a autonomia universitária. Lembremos que várias tentativas nesse sentido têm sido feitas por diversos governos, sob a constante inspiração do Bird, e todas encontraram firme resistência do movimento docente e da comunidade universitária em geral. Temos sempre defendido a auto-aplicabilidade do artigo 207 da Constituição Federal, que dispõe sobre a autonomia. Entendemos que não cabe restringir pela lei ordinária o que se garantiu constitucionalmente sem restrições. E o exame do longo debate já existente sobre o tema não deixa dúvida de que é isso, exatamente, o que pretendem as reiteradas investidas de regulamentação, inclusive as diretrizes de 7 de junho. O principal argumento dos defensores de uma lei orgânica é inaceitável. Afirma que o artigo 207 não tem sido eficaz e, portanto, se faz necessário um instrumento regulatório para torná-lo efetivamente respeitado. Esquecem os que o utilizam que o problema da eficácia da lei decorre muito mais de fatores políticos que jurídicos, e que o desrespeito decorre essencialmente da conduta do próprio Estado, materializada, muitas vezes, precisamente na promulgação de normas atentatórias ao dispositivo constitucional.

É o caso, entre outras, da escandalosa Lei n° 9.192, de escolha de dirigentes. Resgatar a autonomia requer, antes de tudo, revogar esse tipo de legislação. Isso não é, no entanto, o que têm exigido do governo brasileiro as forças que tradicionalmente impulsionam a atual onda de (contra) reformas universitárias no mundo.

Mais uma vez, o núcleo da pretendida regulamentação é ocupado pelas questões de financiamento, num texto em que, embora sem muita clareza, são feitas referências à suposta necessidade de diferenciação da figura jurídica da universidade e à extensão da autonomia a instituições de ensino superior não-universitárias. A primeira dessas referências é preocupante, quando se conhece a força das pressões para segmentar crescentemente o sistema de educação superior e impedir a viabilização de um padrão unitário de qualidade, mesmo entre as instituições federais. A segunda remete a uma antiga reivindicação de alguns setores privados.

O modelo de financiamento proposto baseia-se na criação de dois fundos vinculados (ou subvinculados) a impostos federais. O primeiro, dito de manutenção, seria destinado a pessoal e outras despesas correntes. Sua utilização se faria em regime de orçamento global. O segundo, chamado fundo de desenvolvimento, teria como finalidade cobrir os gastos com expansão, inovação e gestão eficaz. Sua liberação estaria condicionada à aprovação, pelo MEC, de um Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) que cada administração universitária deveria elaborar até sessenta dias após empossada.

Alguns questionamentos se impõem. A fixação de um patamar mínimo de financiamento das Ifes é antiga reivindicação da comunidade universitária. Nem por isso se deve apoiar qualquer modo de implantá-la. O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes), por exemplo, tem sido contrário à idéia, proposta pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e elogiada no texto das diretrizes, de subvincular, direcionando os para as Ifes, 75% dos 18% dos impostos da União constitucionalmente destinados às despesas educacionais. Não só porque esse percentual é muito insuficiente, mas também porque a subvinculação levaria a educação superior a obter recursos às custas dos demais níveis de ensino. Isso, de certo modo, daria razão às demagógicas formulações de justiça social do Bird e do Ministério da Fazenda, que parecem supor que as universidades se mantêm com dinheiro surrupiado à educação das crianças e adolescentes pobres. Por outro lado, embora o texto não seja conclusivo a esse respeito, a referência ao patamar sugerido pela Andifes, extremamente módico, faz supor que, em comparação com o documento da gestão Cristovam, sumiu do projeto a pretensão de obter um aumento razoável de recursos, ficando apenas a idéia de garantir a preservação de valores muito próximos – ao que tudo indica inferiores – aos atuais.

Com relação ao regime de orçamento global, o mínimo que se pode dizer é que inspira cuidados. Num contexto de sucateamento e abandono progressivos, essa proposta poderá conduzir à completa deterioração das políticas de pessoal, com não preenchimento de quadros, multiplicação das contratações precárias e redução das parcelas remuneratórias não incorporadas aos vencimentos básicos.

No que diz respeito à aprovação do PDI pelo MEC como condição para liberação do fundo de desenvolvimento, o que essa exigência na realidade significa é, pela enésima vez, submeter instituições formalmente autônomas aos ditames do poder de plantão, por meio do controle dos recursos financeiros. Temos aqui, de novo, a lógica dos contratos de gestão e do aparentemente natimorto Pacto de Ensino Superior para o Desenvolvimento Inclusivo.

A rigor, talvez mesmo as verbas de manutenção estejam sujeitas às mesmas condições, quando se estipula que a garantia da manutenção e uma adequada política de expansão deverão estar associadas a um compromisso-contrapartida de qualidade, inclusão e aumento da oferta de vagas em Instituições Públicas. Seria uma obviedade constatar que esse tipo de contrapartida é muito desejável. O problema está em atribuir ao governo a capacidade de decidir, num processo avaliativo altamente centralizado e questionável, se o compromisso está ou não sendo mantido e se os recursos devem ou não ser liberados.

Quanto ao financiamento da rede privada, aprofunda-se a tendência a subsidiá-la com a proposta de desoneração tributária integral.

A declaração de que haverá exigência transparente de contrapartida, constante do texto, não parece muito convincente, se considerarmos que os estímulos fiscais à falsa filantropia no país têm sido construídos com base em exigências semelhantes. Paralelamente, pretende-se dar continuidade à política de bolsas e financiamento estudantil com recursos públicos para alunos das instituições privadas.

Esses são os pontos que nos parecem centrais num projeto apenas esboçado. Há outros itens que também representam continuidade em relação ao documento do grupo interministerial. É o que ocorre, por exemplo, no que se refere à regulamentação das fundações de apoio e às contratações precárias de doutores e aposentados. O mesmo se pode dizer da ênfase dada à flexibilização curricular, presente nos dois textos, embora com roupagens diferentes.

Quanto ao processo de formulação da reforma, os ritos, hoje, são menos sumários que na versão anterior. Foram feitos ou estão previstos colóquios, oitivas, conferências e miniconstituintes, porém tudo isso tem mais o efeito de criar a imagem de um debate amplo do que realizá-lo em profundidade. E esse suposto debate é descaracterizado pelo fato de existirem, na realidade, duas reformas em andamento. Uma colocada oficialmente na agenda para discussão e a outra fragmentada em diversas medidas de menor visibilidade, mas cujas repercussões sobre a educação superior podem ser enormes.

Cabe citar, sobretudo, a medida provisória que instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes), já aprovada pelo Congresso, o projeto de lei das parcerias público- privadas, o de inovação tecnológica, o de cobrança postergada de anuidades nas instituições públicas, da deputada Selma Schoms, o da lei orgânica de autonomia, do deputado Eduardo Valverde, a regulamentação das fundações de apoio, o projeto Universidade para Todos. Em maior ou menor grau, são iniciativas privatizantes e tendentes a enfraquecer o princípio de que a educação é um direito que o Estado deve assegurar a todo cidadão.

Evidentemente, nem tudo é igual nos vários ensaios de reforma. Há diferenças entre os dois principais documentos do atual governo. Mas tendem a concentrar-se em questões secundárias, até porque foram ambos construídos no interior dos mesmos rígidos parâmetros.

Marina Barbosa Pinto é professora da Universidade Federal Fluminense e presidente do Andes-SN.
Luiz Carlos G. Lucas é professor da Universidade Federal de Pelotas e foi presidente do Andes-SN na gestão 2002-2004.