Economia

Entrevista com Maurício Borges Lemos

Para o diretor da Área de Planejamento do BNDES, as transformações pelas quais o banco passou o potencializam como instrumento de apoio a empreendimentos que contribuam para o desenvolvimento do país

Quais as diferenças na estruturação e nas funções estratégicas da gestão atual do BNDES, em relação ao período dos governos FHC?
Acredito que existem várias diferenças, em todas as funções, seja como banco, seja como banco de desenvolvimento. Encontramos um banco com problemas graves, inadimplência, dívidas feitas no bojo do processo de privatização mal construído. Um exemplo é o da Eletropaulo. O BNDES financiou a compra da Eletropaulo e o governo do estado de São Paulo, seu dono original, e o governo federal fingiram que ela valia x. E o BNDES pagou esse mico. Em termos bancários estritos, a operação foi muito malfeita. As garantias que foram dadas ao banco, os fatores precaucionais do empréstimo bancário não foram cumpridos.

Então, esses procedimentos ad hoc, não usuais na norma bancária, foram feitos não em nome do desenvolvimento, de algum objetivo público maior, mas em função de negócios e conveniências da privatização etc. Os escândalos que apareceram na época de Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, aquele episódio do grampo, na verdade é uma ponta do iceberg de um conjunto de operações muito mal conduzidas.

O grampo foi das telefônicas?
É. O contexto era da privatização do setor de telecomunicações, mas tratava-se de um conjunto de coisas muito mal conduzidas e mal padronizadas. A qualidade da carteira que encontramos, e do ponto de vista estritamente do BNDES como entidade que faz empréstimo, que precisa de garantia etc., estava muito mal.

Segundo aspecto, como banco voltado para a modernidade, que usa as tecnologias de informação de maneira adequada, encontramos uma reforma administrativa equivocada, que introduziu retrabalhos, que tentou construir intersetorialidade sem o banco cumprir funções básicas da era da informação e informatização. Ainda lutamos para que seja bem conduzida e bem concluída. A modernização do banco deixava muito a desejar.

Também diretores e presidentes foram se alternando, houve uma descontinuidade ao sabor de coisas, de vicissitudes do jogo de poder, dos vários interesses, que aparecia na condução do banco.

E finalmente, e o mais grave, a estrutura do banco, seu conhecimento setorial, sua robustez, tudo estava relegado, sendo destruído. No conjunto, o BNDES deixava a desejar como banco, como banco moderno e como banco de desenvolvimento. Essa é a herança desses oito anos de Fernando Henrique Cardoso.

As transformações que estão sendo operadas na atual gestão do BNDES foram feitas com que propósito?
O primeiro aspecto foi tentar estabelecer um padrão normal e correto das operações bancárias, olhar os procedimentos. E fizemos, para isso, uma espécie de reforma das políticas operacionais para atualizá-las e cumpri-las, porque o banco tinha uma série de normas que não eram cumpridas pelas próprias diretorias que por ele passaram ao longo dos anos. Tratamos de modernizar, atualizar as políticas operacionais e estamos fazendo esforços para cumprir as regras que a própria diretoria fixa.

O segundo aspecto foi pegar a reforma administrativa implementada nas duas gestões anteriores, do Eleazar de Carvalho, Francisco Gros, e abandoná-la inteiramente. O sentido dela era acabar com o conhecimento setorial, diluí-lo, e o banco ter uma estrutura para atender os clientes e uma estrutura para montar produtos.

Havia um número muito grande de diretorias, parece.
O problema não era diretoria. Havia 26 superintendências. Foram reduzidas para doze. Aumentamos o valor do poder das áreas e acabamos com essa estrutura matricial que não funcionava bem. Se fosse núcleo matricial e funcionasse bem... Mas nós abandonamos isso para ter uma estrutura setorializada, para reconstruir o conhecimento específico, a expertise de cada setor etc. Algum setor da infra-estrutura, por exemplo, trata com profundidade e pode balizar uma política de financiamento e uma política de desenvolvimento superior. Isso é preparar o banco para servir às políticas do governo federal.

Então, já que re-setorializamos o banco para restaurar seu conhecimento setorial, a próxima etapa é montar a intersetorialidade: todo mundo conhecer um pouco como o banco funciona. Agora estamos fazendo um planejamento estratégico cuja questão central é a montagem de grupos de trabalho de áreas afins para fazer o levantamento do conhecimento específico que o banco tem sobre cada setor, com proposições do que é preciso fazer para desenvolver cada um deles. Isso é um elemento precioso para balizar políticas desenvolvimentistas do governo federal.

Como o BNDES reestruturado poderá incidir sobre os impasses e o crescimento da economia brasileira? Em que áreas e funções poderia cumprir um papel mais decisivo?
O BNDES pode fazer muitas coisas, mas tem suas limitações. É um banco que conta, em certo sentido, com um fundo rotativo que tem limite.

Como funciona o fundo rotativo?
Hoje o banco empresta dinheiro, o dinheiro retorna. Há um estoque de poupança, digamos assim, que é emprestado e retorna. Portanto, a proposta do BNDES não é subsidiar setores, no sentido de emprestar e receber um valor menor. Ele empresta e volta um valor igual ou talvez um pouco maior, tem algum lucro etc.

Se o BNDES não fizer assim, vai ter problemas de funding rapidamente, não vai conseguir consolidar suas operações e ter recursos para financiar.

O BNDES não subsidia setores. Ele pode fazê-lo eventualmente. Agora, por exemplo, em cima do lucro do banco, foi criado um fundo de inovação em tecnologias. Alocamos R$ 180 milhões do lucro do BNDES, na maioria das vezes recursos não-reembolsáveis, portanto a fundo perdido, para inovação tecnológica. Há também uma parte do lucro que tem um fundo social, que o banco empresta para casos exemplares da área social. Trata-se de um fluxo de R$ 40 milhões, R$ 50 milhões por ano.

Enfim, o BNDES precisa trabalhar em sinergia com os governos dos três níveis, especialmente o federal. Ele é o único emprestador de longo prazo da economia, tem alguma tradição importante. Um empresário argentino me perguntou se eu sabia qual é a diferença entre um empresário argentino e um empresário brasileiro. A diferença é que o empresário brasileiro tem Finame. Temos um financiamento de máquinas e equipamentos produzidos no Brasil que é o único na América Latina. Nosso mercado interno alavancou nossa produção de ônibus, por exemplo, e vendemos ônibus no mundo inteiro. E o BNDES, via Finame, tem um papel decisivo nessa questão.

O BNDES pode atuar em vários aspectos muito úteis. Mas existem limites, pois ele trabalha em parceria com os setores públicos e com as próprias empresas privadas. É um instrumento importante, poderoso, que o governo federal tem para promover o desenvolvimento nas várias áreas, com infra-estrutura etc.

Na sua avaliação, essa atividade creditícia do financiamento do BNDES seria mais decisiva em que aspectos dos impasses do crescimento da economia brasileira?
O BNDES pode contribuir de duas formas: conhecimento setorial e planejamento. Por exemplo, o banco já tem um diagnóstico sobre as ferrovias, onde estão os problemas da privatização realizada, quais são os investimentos prioritários etc. Mas sozinho não pode resolver os problemas delas. Se o governo federal decidir que isso deve ser feito, o BNDES pode fazer um excelente trabalho com seu apoio.

O conhecimento setorial do BNDES e as condições para planejar, identificar, diagnosticar e propor soluções, investimentos etc. é muito grande. Essa expertise do BNDES pode ser muito importante para o próprio governo federal, para ajudar seu próprio planejamento.

É fundamental o trabalho de parceria tanto com a iniciativa privada quanto com o próprio governo, pois em infra-estrutura, por exemplo, há limites. Sabemos que parte significativa das estradas federais não dá retorno em termos de pedágio. O pedágio da Fernão Dias não tem possibilidade de cobrir o custo de sua manutenção. Então, é necessário gasto fiscal do governo federal para operar as várias ferrovias. Se pensarmos no entorno do Rio de Janeiro, o contorno Rioo–Santos, Porto de Sepetiba, passando por trás da Baixada e chegando na Niteróii–Manilha, indo para o Espírito Santo – esse anel é fundamental para resolver vários problemas de desenvolvimento do Rio do Janeiro. O BNDES tem o diagnóstico de que o pedágio não cobre o necessário para construir essa estrada. Então, são necessários recursos fiscais dos dois níveis de governo, estadual e federal. Não definindo isso, o banco pode fazer pouco para construir essa estrada, financiar etc.

Há várias coisas em que o BNDES fica na dependência de decisões do governo federal, por exemplo. Os empréstimos do BNDES têm como custo básico a TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional. Há uma definição que o Conselho segue de que a TJLP deveria incluir o risco Brasil de longo prazo. Não vejo muito senso em pedir a qualquer tomador de empréstimo do banco que pague o risco Brasil de longo prazo. Deveria ser o contrário: se há um risco Brasil de longo prazo, deveria ser subtraído da TJLP, e não adicionado. O fato é que, na prática, quando a inflação esteve alta no início de 2003, a TJLP estava abaixo dela. Agora que a inflação está a 6% ao ano, a taxa está em 9,75%, portanto, muito acima da inflação. Isso é um inibidor do investimento. Talvez o ideal seja a TJLP ficar mais colada à inflação, não ser um custo real líquido nem quando a inflação estiver alta, nem quando estiver baixa. Na verdade, questões fundamentais não estão na mão do BNDES, são decisões do governo federal.

O banco é um potente instrumento nas mãos dele. Se o governo federal decidir reformular os portos brasileiros, construir ferrovias, hidrelétricas etc., seja qual for o tipo de parceria que o deseje estabelecer com a iniciativa privada, o BNDES pode dar um suporte importantíssimo.

Em relação especificamente à política industrial aprovada, qual seria a função do BNDES?
O que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior propôs são todas linhas de financiamento que estão sendo operadas pelo BNDES. Por exemplo, há uma linha de financiamento de máquinas, Modermaq, uma variante da Finame, operada pelo BNDES. Há o Modercarga, um programa que está se iniciando para a renovação da frota de caminhões. O Moderfrota, que é a renovação da frota agrícola, instituído no governo anterior, é outro programa muito importante, operado também em parceria com o BNDES.

Como o BNDES formula no plano das suas estratégias de financiamento a questão da inclusão social? Como essa preocupação se traduz nos planos do banco? Por exemplo, em relação ao projeto de reforma agrária, há alguma iniciativa, ou em relação ao Fome Zero?
O banco não tem tradição na área social, não tem o mesmo conhecimento aprofundado como do setor produtivo, de setores como infra-estrutura, indústria de transformação, mineração ou agropecuária. Mas está procurando desenvolver metodologias para conhecer melhor a área social, enfatizando programas integrados, programas intersetoriais. Está procurando parcerias em grandes investimentos urbanos, em que favoreça a integração de setores para ter um programa completo – vê o Fome Zero, por exemplo, como um trabalho integrado e multissetorial. Só que investimento na área social se faz com recursos fiscais. O BNDES, que é um emprestador de recursos, tem um recursozinho muito pequeno, a fundo perdido, que é seu fundo social, que comentei há pouco. O banco suportaria aquele fluxo de R$ 40 milhões, R$ 50 milhões por ano. Então emprega esse recurso em casos exemplares, para que sirvam de referência para investimentos públicos maiores. Mas o banco não pode substituir o governo federal em questões de execução fiscal e de recursos fiscais não-reembolsáveis.

A atuação do BNDES na área social é trabalhar especialmente com as prefeituras e com algumas organizações não-governamentais. Empresta normalmente para as prefeituras – recursos reembolsáveis – e usa sua verba social para desenvolver casos exemplares. Como trabalha com recursos rotativos, que precisam ser repostos, tem limites como gastador a fundo perdido. Por isso, atua de forma muito criteriosa.

Ele não poderia identificar, por exemplo, setores da economia que dizem mais respeito ao consumo popular, ou mesmo ter uma interação mais estratégica com setores que nos últimos vinte anos foram muito penalizados?
Em termos de conhecimento setorial, essas identificações são feitas. Do ponto de vista de ação, há alguns trabalhos com agricultura familiar, e todos a fundo perdido. Para o emprego da verba social são muito enfatizados o setor rural e a agricultura familiar. Há também a preocupação com setores que geram emprego etc.

O BNDES é um banco que trabalha com fundos públicos, boa parte de seus recursos vem do Fundo de Amparo ao Trabalhador, e, ao mesmo tempo, é um banco submetido a uma pressão corporativa muito grande por parte dos vários setores da economia que dispõem de maior poder de pressão. Como o BNDES tem lidado com o problema da transparência, do controle público de seu funcionamento, de suas decisões? Há alguma iniciativa nesse campo?
O BNDES é uma máquina burocrática, tem uma estrutura burocrática etc. O mais importante nesse sentido é que tenha procedimentos clássicos e padrões de funcionamento adequados e corretos. Está procurando ter um relacionamento com todos os setores e seguimos à risca algumas orientações básicas do governo federal. O banco vem a reboque do governo federal nessas questões, porque ele não pode, enquanto banco, perder sua estrutura burocrática como ela está montada. É uma burocracia de alta qualidade.

O BNDES conta com um conselho de administração que tem, além de representantes do governo federal, representantes das centrais sindicais e das entidades empresariais. E nesse conselho as questões de vulto têm sido discutidas, não é um conselho pró-forma, como anteriormente. Isso mostra transparência efetiva do banco e da administração atual, seguindo orientação do próprio governo federal.

Como economista formado na tradição petista – foi secretário de Planejamento e de Coordenação de Política Social durante dez anos na prefeitura do PT de Belo Horizonte –, você agora está trabalhando com economistas da tradição nacional-desenvolvimentista. Como vê essa experiência entre essas duas culturas: a petista e a nacional-desenvolvimentista?
Não tenho muita dificuldade nessa matéria porque a minha tese de doutorado procura resgatar a tradição cepalina, “Espaço e capital. Um estudo sobre a dinâmica centro–periferia”. Nela procuro mostrar que a questão do espaço e as questões espaciais são vitais para pensar a questão nacional e de desenvolvimento nacional. Sempre transitei nessa área e acho que há muita interação entre o estilo de administração petista e o nacional-desenvolvimentismo.

Acho que a contribuição petista à visão nacional-desenvolvimentista é a transparência das ações do Estado, concorrendo para que seja mais eficiente.

A solução das contradições do nacional-desenvolvimentismo está na dependência que ele tem, muito forte, de o Estado agir. E o grande desafio é que a ação do Estado seja eficiente, não ineficiente, perdulária etc. A agenda do nacional-desenvolvimentismo e o petismo podem construir uma excelente sinergia. O roteiro de ações do petismo, de abrir o Estado, dar transparência a suas ações, pode ser o que faltava e falta ao nacional-desenvolvimentismo para sair disso uma proposta para o desenvolvimento do Brasil.

O que o nacional-desenvolvimentismo pode trazer ao petismo?
Um fator de agregação nacional é fundamental. Neste mundo globalizado, por uma série de razões, o cimento nacional não é uma questão ideológica, mas prática, é a construção de um espaço de desenvolvimento econômico. Isso tem acontecido em vários países periféricos, podemos citar os coreanos, os asiáticos nas suas várias fases, do Japão até a China, e até a fase indiana. Esse desenvolvimento tem vários pressupostos estritamente nacionais. Se o país não decide se desenvolver e construir a partir daí o desenvolvimento, não há desenvolvimento. Esse ensinamento, que é um dos pilares do nacional-desenvolvimentismo, é o que nós do PT temos a aprender e absorver.

Juarez Guimarães é professor de Ciência Política na UFMG e editor do Periscópio, boletim eletrônico mensal da Fundação Perseu Abramo