Nacional

Entrevista com o ministro da Integração Nacional Ciro Gomes

"Com Lula, pela primeira vez, um não-oligarca chegou ao poder. Portanto, é papel de todos os progressistas ajudá-lo na condução do país"

Em que medida o governo Lula caminhou de acordo com suas expectativas?
Tenho o conforto de que, na questão dos princípios, sirvo a um governo que não desertou de seu compromisso popular e nacional. Pode não ser perceptível, mas é brilhante o que Lula fez com o Brasil. Uma nação que tinha sido posta vassala pelos próprios dirigentes, que racionalizaram que seu papel no mundo era de nação secundária que deveria se alinhar aos países do Atlântico Norte, imitar-lhes as instituições e esperar que eles nos socorressem de nossas imprudências com sua caridade. Isso já mudou radicalmente.

Nos outros aspectos a mudança não é radical, mas é bom lembrar que o presidente Lula, ainda na campanha, abriu mão disso como um elemento do contrato que celebrou com a sociedade brasileira. Adversário dele na eleição, critiquei pesadamente essa inflexão, mas hoje é preciso reconhecer que ele disse que ia perseguir a mudança, na direção de retomar o desenvolvimento, criar instituições que melhorassem a distribuição de renda no país, porém – dizia na campanha num ato arriscado – que iria fazê-lo sem ruptura, sem quebra de contrato.

Estamos muito aquém da expectativa do povo e do que podemos fazer, mesmo com as interdições e os constrangimentos, que não são pequenos. Mas é inconcebível o que se levanta com pressa, despudor e incoerência, como quem acredita na falta de memória da sociedade e imagina contar automaticamente com o alinhamento acrítico de setores de nossa mídia.

O senhor se refere ao governo passado?
Sim, que é de onde se levanta a crítica mais apressada, muitas vezes coadjuvada pela falta de visão histórica de certos grupos de esquerda. Vamos aos números. O governo Cardoso recebeu o Brasil do presidente Itamar Franco, do qual eu era ministro da Fazenda. O país tinha levado quinhentos anos de história para construir uma dívida pública que já preocupava, algo em torno de 25% do PIB, e com carga tributária em 27% do PIB. A dívida havia sido construída fundamentalmente para financiar o modelo nacional-desenvolvimentista. Tínhamos a noção clara de que a estabilização era uma etapa preparatória de um processo de mudanças estruturais que precisava ser feito para o país construir poupança. Tudo isso foi jogado na lata do lixo em nome da compra de voto para a reeleição. Essa é a razão do meu rompimento com o PSDB.

Em oito anos a carga tributária passou para 36,5% do PIB; a dívida saltou para 58% do PIB; a privatização levou US$ 100 bilhões, que dá R$ 270 bilhões a preço de hoje; por terrorismo previdenciário, puseram para fora um terço dos mestres e doutores das universidades públicas federais; nos entregaram 37 mil quilômetros de estradas destruídas, o país no apagão e a menor taxa média de crescimento econômico do século, em torno de 2% do PIB.

A população precisa saber qual era o cenário quando o presidente Lula tomou posse. O Brasil tinha de pagar ao estrangeiro, nas diversas rubricas, US$ 65 bilhões. Se usássemos 100% de nossas reservas, a melhor expectativa de saldo da balança comercial, de investimento direto estrangeiro, mais o FMI, não pagava a metade disso.

As providências foram tomadas e o colapso não aconteceu. Depois de amargarmos um ajuste duro, porque estávamos na iminência de um colapso do crédito público em 2003, o país cresceu 5,2% ao ano.

Trouxemos o câmbio a R$ 2,70. O salário mínimo estava em US$ 40, e hoje está próximo de US$ 110. Atenuamos a queda da renda do trabalhador brasileiro e começamos discretamente a revertê-la. Tivemos o maior superávit da balança comercial da história do país. E isso numa plataforma em que cresceram a exportação e a importação. O risco Brasil, que é uma sobretaxa que se paga para refinanciar as dívidas do país com o estrangeiro, estava em mais de 20 pontos acima do Tesouro americano e hoje está por volta de 3,5 pontos acima. Nível de desemprego, nos entregaram a 12%. Agora estamos na faixa dos 9%. É muito alto – mas é menos que 12%.

O que significam inflexões como a decisão de não renovar o acordo com o FMI?
É a primeira vez em sete anos que o Brasil é soberano plenamente. Sem comemorações, sem imprudências. É um fato, está registrado.

E o argumento de que o receituário do FMI está introjetado na Fazenda, no Banco Central?
Parte está. O que nós temos de fazer é um juízo de mérito e um de processo. Não completamos propriamente uma transição da crise. O Brasil tem uma dívida mastodôntica, temos um passivo em infra-estrutura assustador.

O neoliberalismo imagina tirar o Estado de qualquer presença estratégica na economia, na crença de que a iniciativa privada é quem sabe dar retorno ótimo à alocação de recursos escassos. Isso precisa de um Estado mínimo, o que quer dizer política mínima – daí vem a idéia de botar em piloto automático “imune” à política, como contrafação perversa do Estado, ente ruim para o conjunto de idéias das instituições econômico-financeiras.

A engenharia é simples, de uma contundência que a incompetência de certos críticos de esquerda passa longe de arranhar. Não dá mais para fazer a crítica do passado. A mundialização das relações financeiras oferece aos países de despoupança, como é o nosso caso, a possibilidade de participar de um circuito de financiamento que nos absolve da missão politicamente complexa de construir poupança interna.

Se em casa você tem uma dívida grande demais e seu fluxo é negativo, tem de consertar melhorando sua receita se puder e atenuando necessariamente sua despesa. Numa empresa a mesma coisa. Então, como a dívida é grande, temos de ter superávit primário.

Com a mundialização das relações financeiras e com a facilitação do comércio internacional, o câmbio é um preço relativo da economia. Trigo, gasolina, petróleo são pagos em dólar, e os preços tendem a acompanhar o dólar. A tendência é mundializar os preços. Então o câmbio deve ser um preço real, por isso o câmbio é flutuante.

E o outro problema é a política monetária. Para resolvê-la trabalha-se com meta de inflação. Despolitizando, põe-se a economia no piloto automático, livre da ingerência política. O presidente Lula me disse uma vez: “Nós ganhamos a eleição, nós não fizemos uma revolução”. Isso é verdade. E ao ganhar a eleição o presidente também se comprometeu com esse conjunto de processos. Ele não se comprometeu com o neoliberalismo, não se eximiu das responsabilidades – interagir na economia para animar o desenvolvimento, melhorar a distribuição de renda, enfrentar o drama de infra-estrutura. Mas ele acredita que é possível, mantendo essas ferramentas, perseguir os valores fundamentais, e em boa parte tem conseguido.

O senhor demonstra estar bem afinado dentro do governo. Suas declarações estão sempre restritas à sua pasta.
Eu sou membro do governo por duas razões, uma pública, outra particular. No público, Lula representa a possibilidade, no Brasil, na América Latina e no mundo, de um não-oligarca, de um não-plutocrata, ou seja, de o povo e pela democracia chegar ao poder, com todas as suas dificuldades, contradições e interdições. E ele não pode falhar. Todos que têm compromisso progressista devem ajudar. Eu estou ajudando. Discuto, digo o que penso, lá dentro, depois defendo o decidido. Não se feriu nenhum princípio meu. Ao contrário, só se fortalece minha confiança no público.

Às vezes a ajuda será uma crítica consistente. Ele é presidente do Brasil inteiro, tem conexão com o Congresso, a Federação, o municipalismo, o mundo financeiro, a multinacional, o mundo produtivo brasileiro, a pequena burguesia, o funcionário público... É muita contradição, e ele tem de agir com sensibilidade para encontrar o ponto médio. Vejo isso acontecer todos os dias. Lula tem atitudes ponderadas, de prudência e cautela... Uma grande virtude, que eu não tenho. Talvez por isso o povo brasileiro tenha sido sábio em escolher a ele e não a mim. Meu jeito não era o correto. Imaginava uma ruptura, e não tinha correlação de forças para isso. E ele percebeu com clareza.

Mas o senhor, como já foi ministro da Fazenda, está de acordo com a atual política econômica?
Hoje os números indicam mais acertos do que erros nessa avaliação de que é possível ir avançando, sem quebrar essas instituições, portanto, suscitando antagonismos que talvez não sejam vencidos pelo processo.

Como teórico, posso dizer que não acredito nesse modelo e meus comentários sobre isso estão reservados à audiência interna do governo.

Não pode haver dubiedade na condução da economia, só podemos ter uma pessoa hegemonizando o processo: o ministro Palocci, por delegação do presidente Lula. Todas as opiniões devem ser colocadas, mas, uma vez que o responsável tome rumo por delegação do presidente, estamos todos coesos.

A reforma política está paralisada. Severino é o terceiro homem na hierarquia da República. A eleição da Câmara vem sendo apontada como um dos maiores erros do governo Lula. Temos um país profundamente desigual. Há um Brasil moderno, parido pelas universidades, por uma elite empresarial, uma fração de sindicalismo, uma economia pós-industrial, por uma estética maravilhosa, com artistas engajados, com valores idealizados éticos, políticos etc. Se juntarmos o presidente da CUT, Marinho, Chico Buarque, Pinguelli Rosa, Pedro Moreira Salles numa conversa, haverá tanta convergência que quase a inutiliza. Se falarem sobre as práticas políticas, a ética republicana brasileira em vigor ou os episódios do dia-a-dia, terão uma opinião muito igual. Abaixo disso está o Brasil real, que também está avançando.

O processo eleitoral é despolitizado, superficial, midiático, instantâneo. Não há mais debate. Com a redemocratização há uma pulverização no processo político-partidário. Antes o consenso que organizava a oposição era a reinstitucionalização do país. A agenda era anistia, Constituinte e eleições diretas, que unia todo mundo. Mas, se fosse discutir macroeconomia, papel do Estado na economia, não havia mais consenso, e não tinha cabimento estar em discordância na hora em que era preciso reinstitucionalizar o país.

Tínhamos quarenta partidos, agora temos dezessete. Mais cinco eleições, ficam cinco. Se formos fazer uma reforma política, então um grupo que tem afinidade ética é que sabe o que racionalmente deve ser.

Então é melhor não mexer? Mas e questões como o financiamento público de campanha?
Como membro da elite, eu tenho uma reforma política na cabeça. Com as experiên­cias internacionais, literaturas, sentimento ético, podemos chegar a um consenso, mas caímos num paradoxo. A contradição socioeconômica da sociedade real produz o estamento político que temos. Severino inclusive?

Não concordo com essa particularização. A sociedade produz o estamento político que temos, e por ordem do Estado de direito democrático, ele tem o monopólio da faculdade de reformar as instituições políticas. Por que um estamento político produzido por uma institucionalidade vai reformá-la em nome de outro estamento que idealizamos?

Pode ser por uma pressão social. A sociedade perdeu o vigor?
Você imagina a sociedade se movimentando por financiamento público de campanha, lista fechada, voto distrital? Um moralismo desses provoca essas excitações a partir de nossa cabeça ética, mas é nada na opinião pública. Severino desdenha esse grupo que o discrimina desde sempre, e aprendeu a sobreviver. É preciso entendê-lo. Ele faz o que faz porque o público que garante sua vitória na Câmara não considera esses valores que nos indignam tão centrais. Ele não está fazendo nada diferente do que disse e foi eleito por 100% da bancada do PSDB. Política do quanto pior, melhor. Mas o senhor se referiu a um Brasil que está melhorando...

Eu era governador e estava na linha de frente do impeachment, não tenho a menor ilusão de que a força hegemônica que derrubou Collor foi aquele nosso movimento.

Nesse sentido, nem a luta contra a ditadura foi uma ação das massas brasileiras.

Não estou deslegitimando. Ainda que eu deseje que seja assim, não é. Não gosto que mobilizações se dêem por episódios moralistas, desconexos de uma realidade estrutural. Severino foi homenageado em São Paulo pela fina flor dos barões brasileiros, pois queriam que ele enterrasse a MP 232. O que ele disse em matéria de reforma ministerial é o que meia banda do mundo político brasileiro estava fazendo sem dizê-lo. Vamos movimentar a população, mas sempre. Meu medo são essas manipulações que podem vir contra nós, como já tentaram. Vide o caso Waldomiro.

Como Lula vai administrar essa coisa fluida que emana do Congresso?
As tensões estão aquecidas, porque o governo Lula tem muita dificuldade de conviver com a real politik. Um deputado não é julgado por seus discursos e projetos, mas pelo que entrega à sua comunidade, escola, calçamento... Há uns poucos de opinião.

Como contornar isso?
Temos de potencializar o Brasil ético e organizado. Ampliá-lo até fazê-lo definitivamente hegemônico. Pelas eleições diretas, tínhamos milhões de pessoas nas ruas e perdemos. No impeachment o povo veio, mas pesaram as confrontações com os banqueiros no seqüestro da poupança, com a plutocracia industrial pela abertura comercial e pelo establishment organizado, pois Collor brigou com sindicato, artista, academia. Todo o Brasil organizou-se e veio o moralismo. Ele merecia o impeachment por dez razões, mas foi derrubado pelo Fiat Elba.

Desde o início há um certo descontentamento de setores de uma intelectualidade com o governo. O senhor se referia também a ela?
O intelectual tem de ter um papel essencial de lucidez crítica. Estão tentando fazer crítica, mas lucidez estou vendo pouca. Intelectual em onda moralista? Qual é o intelectual que acredita nesses valores pequeno-burgueses em surtos episódicos? Para o intelectual verdadeiro, o mundo é meio cinzento. Não precisa deixar de ser lutador, idealista, mas a realidade é desagradável, não é romântica.

E Mangabeira Unger, por exemplo, com quem o senhor tem vínculos?
Mangabeira é um intelectual admirável. Escreve um livro inteiro sem uma citação, tudo original. De um tempo para cá faz crítica política, quer ser candidato a presidente da República. Para eu ler algo de um cientista político brasileiro hoje é muito sofrido, viraram comentaristas de televisão.

Esse é um quadro generalizado?
Há exceções. José Luís Fiori, Luciano Coutinho, Paulo Nogueira Batista e Maria da Conceição Tavares não somaram sua palavra a essa vulgaridade. Nosso governo precisa de crítica, tendo em vista a realidade, as nuances econômicas, as interdições, os riscos e suas limitações políticas, a partir dialeticamente da realidade, e não de utopia! Critiquei parte do PT por ocasião do “Fora FHC”. Não podia ser assim. Duvido que alguém fosse mais crítico do que eu ao governo FHC, que acho o pior momento da história republicana brasileira.

Se nós impusermos ao governo Lula as expectativas despolitizadas que algumas pessoas construíram porque quiseram ou porque a dinâmica da campanha no presidencialismo à brasileira impõe, o problema é do Lula ou do observador?

Como o senhor vê o PT hoje?
Estamos num tempo muito fecundo, porém as vacas não vão reconhecer os bezerros com muita facilidade. Estamos agora concluindo um ciclo da ditadura. Na construção da redemocratização estávamos juntos. Veja as fotos: estavam Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Lula, Fernando Henrique, Serra, eu, Tasso, Brizola. Tancredo e Ulysses foram maravilhosos para a causa progressista brasileira, merecem referências. A Fernando Henrique eu disse na época: “Você será ou o primeiro presidente de um novo tempo ou o último de um velho tempo”. Ele optou por ser o último de um velho tempo.

E veio Lula, finalmente. Por isso, acho grave que alguém da esquerda deserte muito rápido. Se pudéssemos fazer um laboratório no Brasil, o ideal seria entregar a Heloisa Helena a decisão do valor do salário mínimo, deixá-la levar adiante toda a sua agenda: Fora FMI, por um governo sob controle dos trabalhadores etc.

Qual o papel da esquerda hoje? Essa é minha pergunta a Roberto Freire. Não é possível que não aprendamos com nossas próprias histórias recentes.

Precisamos de uma coalizão entre o Brasil organizado e o Brasil real, que é a maioria, e vamos tentando o equilíbrio. Atravessamos sete meses críticos no ano passado sem votação no Congresso e os intelectuais ficaram calados. O PPS tinha três deputados federais quando eu entrei; um senador eleito numa coalizão com o PSB de Pernambuco, o Roberto Freire, e tinha uma dúzia de prefeitos. Fui candidato em 1998 sem nenhuma chance, para construir um caminho. Não gostava da coa­lizão reacionária, e achava que o PT não entendia a complexidade do processo para alternância no poder. Parecia não querer assumir o poder.

Ajudei, ainda que modestamente, a criar um partido no campo da centro-esquerda, assumi a responsabilidade de tentar criar corrente de opinião, e deu certo. Nunca acreditei que realmente pudesse ganhar, imaginava criar uma emulação para ganhar a eleição do nosso lado. Agora é natural que o senhor vá para outro partido.

Eu não tenho mais apetite político-partidário vinculado ao calendário eleitoral. Estou bastante interessado em fazer direito o serviço que o presidente me cobra, o que não é simples. A tarefa é consertar um caminho para superar o desequilíbrio regional, questão em que o papel do Estado é central. Não há como desequilibrar a força centrípeta do capitalismo se não for com a intervenção do Estado.

Mas e se o próprio presidente Lula pedir sua ajuda para que seja candidato no Rio de Janeiro? Não é atribuição dele. Eu não estou disposto. A minha decisão partidária só obedece à minha formação ideológica.

O que aconteceu com a Sudene?
A nova Sudene e a nova Sudam foram concebidas como sede de uma retomada do planejamento estratégico. Cada região deveria ter um plano – o da Amazônia está pronto, é o Plano da Amazônia Sustentada (PAS), e o do Nordeste está quase pronto. As novas agências não seriam executivas e muito menos de fomento de empresa. A Sudene seria a sede desse plano, supervisora e um fórum de coesionamento político da liderança dispersa da região. Hoje permanece dramaticamente vivo o que dizia Celso Furtado: o Sergipe é pequeno demais para negociar pacto federativo com São Paulo, isoladamente.

Estão pensados a política, um fórum para coesionar, comitês executivos com controle da sociedade e um fundo nacional de desenvolvimento regional. Na prática, é preciso recuperar 37 mil quilômetros de estradas, mas só há R$ 4 bilhões, e são necessários R$ 20 bilhões. Como no passado esses R$ 4 bilhões eram retalhados com interesses de empreiteiras, clientelismo, o presidente deu prioridade aos corredores de exportação. Isso não é incorreto. Então, se não tivermos um fundo para financiar as externalidades do Nordeste e da Amazônia, metade do sul do Rio Grande do Sul, Vale do Ribeira em São Paulo, não há como resolver isso setorialmente. Temos de ver o país como ele é, desigual, e criar condições de eqüidade.

Propusemos as duas agências no Congresso para votar com urgência. Só que o Fundo entrou no ponto de vista da reforma tributária. Nela está se perseguindo a unificação do ICMS, para acabar com a guerra fiscal, e os governadores, como acham que vão perder uma ferramenta, se agarraram ao Fundo. Este, em vez de ser nacional de desenvolvimento regional para financiar organicamente a execução de um plano, foi dividido entre os governadores, numa aliança Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Minas, Espírito Santo e Rio de Janeiro.

Isso inviabiliza tudo?
Totalmente. Mas ainda estamos perseguindo, ainda não votaram no Senado.

Mas ao que parece no momento o carro-chefe de seu ministério é a transposição do São Francisco...

O presidente Lula, sem ter prometido na campanha, pediu ao vice-presidente da República que constituísse com os ministérios do Meio Ambiente e da Integração Nacional um grupo de trabalho para elaborar um projeto para o São Francisco. Havia concepções, que variavam de transpor 300 m3 por segundo – um disparate – a 63 m3, mas os projetos executivos e a parte fundiária e implante de bacia não existiam. Ninguém podia responder com segurança se a água que sairia faria falta. Construímos o projeto, refletimos sobre todas as críticas corretas e instituí­mos o comitê de bacias. O plano de bacia esclareceu todas as questões: tem água suficiente, quebramos a outorga, em vez de 63 m3, 26 m3 cúbicos, para uso humano e o remanescente só se Sobradinho verter.

Fizemos nesse ínterim, em silêncio, para não permitir especulação, a decretação de utilidade pública para desapropriar 2,5 quilômetros para cada lado da obra. São 700 quilômetros de canal declarados de utilidade pública, mais 2,5 de cada lado, resultando em 350 mil hectares. E estamos montando um arranjo institucional para a integração das bacias e uma nova forma de gestão da água.

Então, com a desapropriação, não existe risco de a margem do canal ser ocupada por grupos empresariais, como acusaram alguns?
Antes que a geodésica do canal pudesse vir a público, foi baixado um decreto. Não há como especular.

Como se dará a gestão desse sistema?
A idéia é criar uma subsidiária da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), que ficará encarregada da operação e manutenção do projeto. Entregará água bruta, onde ela é onerosa, a instituições que também serão criadas nos Estados – companhias de gestão de recursos hídricos –, que pagarão e depois distribuirão gratuitamente para agricultura familiar, reforma agrária e usos comunitários, cobrando dos outros usos, urbano-industrial e irrigação de alto desempenho empresarial.

E também há uma correção conceitual de que não é transposição...

É uma integração de bacias. Transposição parecia que você ia tirar o rio de um canto para levar para outro. É apenas 1% de transporte de água. Hoje, 80% é desperdiçado por insegurança hídrica. A pessoa guarda a água, com medo da seca do ano seguinte, e com o sol ela se evapora.

Não é um projeto de engenharia, mas de manejo de água, integrando as bacias, otimizando o uso, eliminando desperdício. Portanto, economizando água.

Essa será uma marca do governo Lula no sentido de inclusão social, de combate à pobreza?
Eu não tenho a menor dúvida de que esse é um dos feitos que vão projetar o presidente Lula para a história. Quando forem lembrar dos que fizeram coisas estratégicas no Brasil: Getúlio fez Volta Redonda, a CLT; Juscelino fez Brasília; e Lula terá enfrentado o problema da seca no Nordeste.

Lula será bem-sucedido se conseguir cumprir a promessa das três refeições por dia, se melhorar a distribuição de renda, se combater a desigualdade... Nesse sentido, a avaliação será positiva?
O presidente Lula unificou as políticas de transferência de renda, aumentou sua média para algo próximo de R$ 90. E há uma tentativa de deslegitimar o Bolsa-Família. Nossos críticos apanham fraudes, que nem sequer têm ainda um percentual, mas que são irrisórias. E, ao consultar a opinião pública sobre as principais realizações, ouvem-se combate à fome, Bolsa-Família...

O presidente, como conhece bem o Brasil, está na iminência de entregar uma agenda que é a grande aspiração das populações: no Amazonas, Gasoduto Coari-Manaus; no Pará, Eclusas de Tucuruí, em obras aceleradas; no Ceará, o Castanhão está pronto; a duplicação da BR-101 Nordeste e no Sul. Só para citar algumas, pois há muita coisa em andamento.

Paulo Vannuchi é coordenador executivo do Instituto Cidadania e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate
Rose Spina é editora de Teoria e Debate