Internacional

Líder da América do Sul com capital diplomático acumulado, o Brasil surge como candidato natural ao Conselho de Segurança

A reforma das Nações Unidas ganhou força nos debates da política internacional em 2005. As mais diversas correntes de pensamento, em diferentes países e nas organizações internacionais, vêm debatendo acerca da pertinência das mudanças no sistema onusiano, bem como dos limites do processo de reforma. Posta em marcha oficialmente desde fins de 2004, a reforma ganhou momentum no início de 2005, ante os resultados apresentados pelo painel de especialistas convocados pela ONU a seu secretário-geral, Kofi Annan.

No Brasil, visões e manifestações se chocam na busca do melhor entendimento das razões em torno das quais o governo brasileiro vem mostrando franca posição favorável à reforma do sistema da ONU, em especial do Conselho de Segurança. Estudiosos localizados no espectro político mais à direita e herdeiros das tradições associativistas e liberais na interpretação da política exterior do Brasil vêem com ceticismo o esforço brasileiro de garantir assento permanente no Conselho de Segurança.

Outros, habitantes de paragens mais progressistas do pensamento político e defensores de concepções mais autonomistas em política externa, estão divididos acerca da matéria. Há, nesse campo, tanto os que julgam que a inclusão do Brasil no clube dos fortes é aventura desnecessária às tradições diplomáticas brasileiras quanto aqueles que afirmam que já está na hora de ocuparmos, de forma legítima, nosso lugar no concerto das nações mais poderosas do planeta.

Procuro responder neste artigo a três perguntas elementares. Por que reformar o sistema das Nações Unidas? Para onde tal reforma deve caminhar? Qual o lugar do Brasil na ONU reformada? Embora entrelaçadas, as duas primeiras indagações possuem identidade própria e produzem algumas pistas para o tema da militância brasileira em favor da reforma. Da mesma forma, a segunda questão supõe, em alguma medida, que a primeira foi respondida de forma favorável às mudanças do sistema.

Por que reformar o sistema?

A reforma é tema central para a política internacional contemporânea, pois ela toca no funcionamento atual das instituições internacionais e sua funcionalidade na construção de novas formas de hierarquia no sistema de poder internacional. Há, nesse sentido, forças conservadoras que, muito bem organizadas, desejam amortecer a necessidade das reformas. São aquelas que, portadoras de visões antiquadas, almejam manter o status quo dos Estados mais poderosos e a ordem herdada do fim da Segunda Guerra Mundial.

Nessa linha cética alinham-se quatro grandes visões. A primeira, dos que acreditam que a disputa pelo assento permanente gerará mais cizânia ao sistema, ante a natural propensão de disputa entre os Estados que se julgam merecedores da ocupação dos novos eventuais assentos no Conselho de Segurança. A segunda, dos que argumentam uma possível ocorrência, no processo de escolha ou de construção de consensos, de anarquia e perda de controle do próprio processo. A terceira, dos que insistem que essa é matéria perfunctória, de vitrine, ante os temas fundamentais da agenda internacional do momento, como o combate ao terrorismo e à fome. E a quarta, dos que lembram, de forma irônica, a imagem do Conde de Lampedusa, de que se fazem reformas para tudo conservar. Nesse sentido, a reforma seria apenas a reacomodação das forças vencedoras pela inclusão de alguns perdedores, de forma seletiva, a seu sistema hegemônico. O Brasil, nesse caso, estaria se prestando a esse serviço.

Nenhum dos óbices anteriores, advindos cada um deles de leituras, visões e interesses nada neutrais em relação à vida internacional, poderia negar uma constatação elementar: o obsoleto sistema de regulação da ordem internacional criado nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Frágeis tanto no campo político quanto na área social e econômica, essas instituições assistem, no contexto contemporâneo, à sua fragmentação. O mundo padece ante a indiferença em relação ao sistema multilateral. Há uma lamentável fragilidade do sistema de regulação sistêmica e uma nítida incapacidade de dirimir conflitos.

Para tais instituições, prisioneiras do orçamento e da representação limitada da diversidade de interesses, bem como da demografia e da diversidade cultural e política do mundo pós-Guerra Fria, seria uma temeridade deixá-las funcionar como estão funcionando. Baixa eficiência, ausência de transparência e limitada permeabilidade às forças emergentes das sociedades civis e dos novos atores globais tornam as agências, os conselhos e a própria Assembléia-Geral das Nações Unidas mera caixa de ressonância, oca, sem conteúdo e interlocução com as rea­lidades internacionais mais vibrantes do momento.

A mais grave crise do sistema, no entanto, está no campo da representatividade do Conselho de Segurança, em torno do qual já se instalou batalha campal entre pretendentes a assento permanente. Um novo desafio se impõe de renovação, de inclusão, de “fresh air” e de remodelação dos métodos centralistas criados no entorno da Guerra Fria. A construção de um sistema de segurança coletiva em momento de tensão entre a impulsão unipolar e a emergência de novos pólos de poder é uma necessidade urgente, sob pena de desmoralização da instituição, como em alguma medida aconteceu na deflagração anglo-americana no Iraque.

Em que direção mudar?

A mudança deve ocorrer na mesma direção da melhor adaptação das instituições onusianas à renovação crescente das relações internacionais contemporâneas. E qual é a renovação em curso das relações internacionais? É aquela que emana de uma fundamental mudança, profunda, infra-estrutural no sistema internacional: o redesenho da balança de poder global, a qual vem criando novas possibilidades e brechas de inclusão de novos atores e projetos de reorganização do sistema de Estados e dos valores no seio da comunidade internacional.

Fenômenos novos alinham a percepção de mudanças na ordem global. Apesar da presença hegemônica dos Estados Unidos nas relações internacionais do início do novo século, a fase unipolar durou relativamente pouco tempo. A superpotência remanescente, apesar de vigorosa, não possui mais a capacidade de exercício indiscriminado de seu poder estocado. Serão necessárias, inclusive no campo da plataforma capitalista global, novas associações e triangulações da economia norte-americana, agora com a China e a Índia, como o fizera antes com a Alemanha e o Japão.

Há uma era multipolar que desponta e amplia o leque de opções e escolhas estratégicas. A primeira grande derivação do despontar de uma nova ordem está na crescente polarização de poder econômico, político e estratégico na Ásia. Tendência já notada nos anos 1980, que avançou em velocidade geométrica, e não aritmética, nos anos 1990 e nos primeiros anos do novo século, a China puxa o carro da reinserção global de dois terços da humanidade, que vivem naquela região do globo. É uma revolução profunda nas relações internacionais contemporâneas, com resultados ainda imprevisíveis, mas de retrocesso improvável. Vieram os asiáticos para ficar no coração do sistema global. Crescendo sem paralelo na história das civilizações, a China vem se afirmando no campo geoestratégico também. Ainda não disse a que vem. Mas um dia dirá.

Uma segunda área em ajuste na nova balança de poder em formação é a Europa, que nunca esteve tão dividida como hoje. Agradecida ao Plano Marshall e devedora da contribuição norte-americana à sua reconstrução no pós-guerra, a antiga Europa vem se afastando do seu promotor para se curvar aos novos contornos autonomistas. Estes, já imaginados na formação do Mercado Comum e depois da União Européia, se fazem cada vez mais nítidos no crescente afastamento no campo dos valores entre os europeus e os norte-americanos. A crise consistente e duradoura do atlantismo é outro fator do afastamento estratégico da Europa, liderada pelo bloco franco-alemão, em relação aos Estados Unidos.

Last but not least, uma terceira área de modificação vem sendo operada nas relações internacionais nos últimos anos, com ampla reverberação nas novas redes de poder, barganha e coalizões no espaço da sociedade internacional. A emergência do Sul, não em oposição ao Norte, mas em favor das próprias demandas e dos próprios interesses, é fenômeno inédito. Há uma nova geometria, mais dinâmica, não menos hierárquica, que elevou Estados nacionais ao Sul a situações de projeção política novas.

Além de defenderem os próprios interesses, como o livre-comércio dos produtos agrícolas e a redução da proteção dos mercados do Norte, sua contribuição ao próprio reordenamento global está em curso. Em outras palavras, não é uma evolução egótica e autocentrada, mas um recurso a mais na construção de uma sociedade internacional mais plural e representativa da diversidade cultural e social nela contida.

Esse novo Sul – diferente daquele da chamada “frente dos povos atrasados” dos anos 1960 e 1970 ou afastado das ilusões engendradas pelas palavras de ordem em torno do projeto da Nova Ordem Econômica Internacional (Noei) nos anos acima referidos – é mais plural, realista, menos ideológico e, sobretudo, dotado de mais capacidade acumulada nas formas de influenciar e modificar a agenda global. O novo Sul vem mudando o caráter das próprias negociações internacionais. Conceitualmente estruturado em torno dos temas do desenvolvimento como um valor universal e do acesso das grandes massas populacionais do globo aos padrões do bem-estar e da cidadania, o novo Sul veio também para ficar, queiram ou não os gigantes do Norte. Esse aspecto foi, aliás, lembrado pelo então comissário do Comércio Europeu, Pascal Lamy, ante a derrota imposta pelo Sul ao Norte na Conferência da OMC de Cancún.

Redesenhar a arquitetura mundial, no campo multilateral e financeiro, é um dos objetivos dessa nova plataforma estratégica chamada novo Sul. Lideranças legítimas vêm se apresentando nesse novo ambiente, entre as quais o Brasil, a África do Sul, a Índia e a própria China, que não negou ainda seu caráter de país emergente e de economia em desenvolvimento.

E o Brasil?

Qual o impacto dessas mudanças objetivas da realidade internacional e do projeto de reforma da ONU? Qual o lugar do Brasil nesse novo ambiente? Ora, a plataforma para um novo marco ético, promovido por um Sul incipiente, hierárquico, sem romantismo igualitarista, está sendo gestada. Ele terá de ter representação na reforma do sistema multilateral, nas Nações Unidas, em especial no Conselho de Segurança.

O Brasil, nesse contexto de emergência do Sul, não pode ser descartado como um candidato natural ao lugar de membro permanente no Conselho de Segurança da ONU, pois tem capital diplomático acumulado na história, é Estado estável no extremo ocidente do planeta, é líder na América do Sul não por mandato divino dos reis, mas por capacidade de construir nacionalismo cooperativo e não confrontacional na região, cultiva o valor da paz na política internacional e vem demonstrando, no governo Lula, capacidade irreprochável de avançar sobre a vulnerabilidade estratégica por meio de um conjunto de ações externas, no campo diplomático e no campo do comércio externo, voltadas para o desenvolvimento e a superação dos gargalos históricos do déficit social.

Ao concluir, no entanto, vale a ressalva da lembrança dos aviões de vôos intercontinentais, imensos, divididos em três classes de passageiros. Se o Brasil sai apenas da classe econômica para a classe executiva (sem o poder de veto no Conselho de Segurança), a vitória será apenas de Pirro. Se vamos, vamos para a primeira classe de uma vez! Caso contrário, as palavras do Conde de Lampedusa poderiam ser reeditadas nos tempos que virão.

Mas não queremos assistir a esses tempos sem mudanças profundas na correlação de forças globais. Incide, sobre o Brasil, uma grande expectativa positiva em várias partes do globo e dentro do próprio país. Não se pode frustrar essa expectativa. A história não perdoará desvios do curso natural do Brasil de se fazer ator maior no palco das grandes decisões mundiais, na primeira classe.

José Flávio Sombra Saraiva é professor de Relações Internacionais na UnB e no Instituto Rio Branco, diretor-geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais. Tem doze livros publicados sobre política internacional