Nacional

Entrevista com o ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Patrus Ananias

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O ministro destaca a importância do programa Bolsa-Família, carro-chefe do ministério, que está consolidando no Brasil uma grande rede integrada de políticas sociais

O presidente Lula, quando eleito, colocou o que ele apontava como o maior desafio: combater a fome. Passados três anos de governo, quais os avanços produzidos pelas políticas sociais do país para resgatar o compromisso do presidente?
Estamos, efetivamente, erradicando a fome e a desnutrição no Brasil. Não considero que tenha sido uma promessa, mas o desejo manifesto pelo presidente, em sintonia com os melhores sentimentos nacionais no seu histórico discurso de posse. O desafio colocado pelo presidente quando disse que, se ao final de seu mandato todos os brasileiros tivessem acesso às três refeições diárias, teria cumprido a missão de sua vida, é uma possibilidade concreta no horizonte visível da nossa história. Não dá para prever se exatamente em dois ou três anos porque o Brasil é um país muito descentralizado, onde há um pacto federativo muito singular, em que os estados e, sobretudo, os municípios, a partir da Constituição de 1988, gozam de grande autonomia e são parceiros fundamentais para que se possa consolidar, como estamos fazendo, políticas sociais estratégicas.

O combate à fome e à desnutrição entra nos campos dos direitos, das políticas públicas. Estamos falando no direito à alimentação, com regularidade, qualidade e quantidade, e pela primeira vez o Estado brasileiro assumiu o seu papel nesse processo. O combate à fome historicamente no Brasil foi colocado por pessoas e entidades. Algumas personalidades se tornaram notáveis, Josué de Castro, Betinho (Herbert de Souza), dom Hélder Câmara... Era uma questão da sociedade e foi tomada pelo Estado, claro que em sintonia com a sociedade.

Havia uma visão filantrópica...
Exatamente. Deixou de ser visão filantrópica, assistencialista, para figurar no campo dos direitos. Hoje, no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome nós temos a Secretaria de Segurança Alimentar e Nutricional, com políticas muito vigorosas que integram o Fome Zero, que não é uma política específica, mas um conjunto de políticas especiais, ações governamentais e não-governamentais que visam assegurar o direito à alimentação.

Trabalhamos na linha de produção de alimentos, em que é fundamental registrar o avanço notável da agricultura familiar. O Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) sai, em 2002, de R$ 2,2 bilhões para R$ 9 bilhões na próxima safra de 2006-2007 – quase quatro vezes mais. Em sintonia com o Pronaf, há o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra da agricultura familiar, garantindo trabalho e renda no campo a famílias de pequenos agricultores. O apoio à agricultura familiar vinculado à reforma agrária é fundamental, pois se trata da produção de alimentos para consumo interno e, dentro de uma concepção de sistema de políticas públicas integradas, estamos montando uma rede para garantir acesso ao alimento a populações de baixa renda, por meio de equipamentos como restaurantes populares, cozinhas comunitárias, bancos de alimentos, programas de educação alimentar, programa da agricultura urbana, a implantação de hortas comunitárias...

Estamos também consolidando os Consads (Consórcio de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local). Já temos quarenta implantados em regiões com maior dificuldade de desenvolvimento, onde estamos vinculando a segurança alimentar e nutricional às políticas de desenvolvimento regional. Tivemos no governo do presidente Lula aumento de aproximadamente 40% e ampliação significativa da alimentação escolar. Enfim, implantamos o Consea (Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional) no plano nacional e a expansão do órgão em níveis estaduais e municipais, ajudando a criar nessas esferas a consciência de que a alimentação envolve a sociedade civil, é questão de solidariedade social e também de política pública que precisa envolver os três entes federados. O governo federal tem feito a sua parte.

Podemos afirmar que o Estado brasileiro vem estabelecendo suas bases para uma estratégia de políticas sociais que se converta, em médio prazo, num Estado de bem-estar social, um pouco tardio, segundo o modelo do pós-guerra?
Esse é o grande avanço. Estamos consolidando no Brasil uma enorme rede nacional de proteção e promoção social, no MDS e em outros ministérios, sempre na linha de parcerias dos dois grandes sistemas: o Sistema Único de Assistência Social (Suas) e o Sistema Integrado de Segurança Alimentar e Nutricional. O Suas está colocando as ações de assistência social no país no campo dos direitos sociais, das políticas públicas, superando definitivamente a fase do clientelismo, do assistencialismo, estabelecendo critérios absolutamente éticos, republicanos e construídos com a participação da sociedade, inclusive dos conselhos, especialmente dos Conselhos de Assistência Social. Estamos integrando ao Suas o Bolsa-Família, que é o maior programa de transferência de renda da história do Brasil, um dos maiores, se não o maior, do mundo, hoje promovendo mais de 8,7 milhões de famílias, com presença em todos os municípios do país. Este está sendo integrado com o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que transfere renda para as famílias e recursos para as prefeituras desenvolverem ações socioeducativas, garantindo atividades pedagógicas, culturais, esportivas, reforço escolar, para que as crianças e adolescentes não fiquem nas ruas.

Estamos ainda trazendo para o Bolsa-Família o repasse da renda familiar básica e levando para a extensão de jornada ou ações socioeducativas todos os recursos destinados ao Peti, que nos possibilitará até o final do ano atender cerca de 3 milhões de crianças, que constituem o universo de crianças e adolescentes em situação de trabalho precoce no Brasil. Integraremos também o Bolsa-Família à casa das famílias, experiência vitoriosa formalmente chamada de Cras (Centro de Referência de Assistência Social), espaço em que as famílias, além de contar com psicólogos e assistência social, podem usufruir de capacitação e treinamento profissional. Isso integrado também a nossos programas da Inclusão Produtiva.

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Enfim, todos os programas da assistência social que são benefício de prestação continuada são integrados. Há benefícios pagos a idosos e portadores de deficiências – com investimentos sociais superiores aos do Bolsa-família, mais de R$ 8 bilhões em 2005, aproximadamente 2,5 milhões de idosos e portadores de deficiências pobres recebendo regularmente o salário mínimo.

Simultaneamente estamos implantando também o Sistema Integrado de Segurança Alimentar e Nutricional, vinculado às políticas já mencionadas. Desde a produção de alimentos, com apoio à agricultura familiar, à reforma agrária, com o Pronaf, o PAA, o programa do leite, até o apoio alimentar direto às comunidades carentes e o acesso aos alimentos nos equipamentos mencionados. Queremos cada vez mais compartilhar todas essas políticas com os governos estaduais e municipais, agindo sempre dentro de critérios absolutamente éticos. Os programas são normatizados em lei ou liberamos os recursos por meio de editais públicos. Penso que estamos efetivamente refundando no Brasil o Estado do bem-estar social. Claro que em novas bases, com maior participação da sociedade, controle social, num momento histórico diferente, após a onda avassaladora do neoliberalismo.

Há uma insinuação, não isenta de malícia política, de que o governo Lula, na área social, apenas deu continuidade às políticas do governo anterior. A partir do seu relato e considerando que os números gerados pelas pesquisas institucionais, pelo IBGE e por outras agências em geral revelam resultados expressivos, busca-se interditar as comparações, o que é um paradoxo. O governo Lula fez mais do mesmo ou produziu modificações de rumo efetivas?
Está produzindo modificações de rumo. Estamos consolidando, ampliando e incorporando novos horizontes e novos paradigmas às políticas sociais no Brasil. Claro que existem antecedentes. Poderíamos retornar a 1930 com o início das conquistas sociais no Brasil, o Estado do bem-estar social ainda que inacabado no país. Mas nos reportemos a um passado mais recente, à Constituição de 1988, que coloca a assistência social no campo das políticas públicas, vincula a assistência social à Previdência e à Saúde, determina atenção especial a pessoas, famílias e comunidades mais fragilizadas – indígenas, quilombolas, crianças, idosos. Tivemos no início dos anos 90 leis importantes como o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas). No governo anterior algumas políticas foram lançadas no apagar das luzes, em 2002, de forma fragmentada, dispersa. Não desconsideramos essas políticas, como o Peti, o Agente Jovem, o Sentinela, o Bolsa-Escola, o Bolsa-Alimentação, o Auxílio-Gás, apesar dos cadastros dispersos, fragmentados, com deficiências graves pelo processo apressado. Não fizemos “terra arrasada”, mas incorporamos e integramos tudo. Daí a importância do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, uma iniciativa extremamente acertada do presidente Lula, em sintonia com as mais modernas concepções de políticas públicas voltadas para o acolhimento e emancipação dos pobres, porque aponta para uma perspectiva de ações integradas. Integramos a assistência social, a segurança alimentar e nutricional, a transferência de renda ou renda familiar básica por meio do Bolsa-Família, criamos secretarias fundamentais no campo das parcerias, inclusive com outros ministérios, outros órgãos públicos e também com estados, municípios, com a sociedade, com organizações não-governamentais. Criamos a secretaria voltada para a construção de indicadores, avaliação dos programas, monitoramento, avaliação de impacto, controle. Tudo para implantar uma rede articulada de políticas sociais. Esse é o grande diferencial. Assim como o fato de que colocamos a questão do direito humano à alimentação, à segurança alimentar e nutricional também no campo das políticas públicas.

Poderíamos dizer que com Lula o Brasil recupera, em alguma medida, o caráter republicano do Estado com relação às políticas sociais?
Sem dúvida. Claro que é um processo, pois houve grande fragilização do Estado brasileiro nos anos que antecederam a Presidência de Lula, dentro do paradigma do neoliberalismo, da globalização financeira desvinculada de outros compromissos éticos, sociais, o processo das privatizações com as limitações conhecidas. Com os problemas daí decorrentes, sem entrar na questão dos procedimentos, o primeiro grande desafio era recompor o Estado brasileiro como agente formulador e implementador de políticas públicas.

Na concepção clássica liberal, colocou-se a idéia de que o Estado era o mal necessário. Já no período neoliberal, alguns chegam à conclusão de que o Estado é um mal desnecessário, admitindo que o mercado poderia substituí-lo. Estamos hoje pagando o preço alto da dívida social deixada por essa concepção que, infelizmente, prevaleceu no Brasil. Há ainda quem defenda que o Estado deva ser substituído, se não pelo mercado, depois do fracasso dessa experiência, pelas organizações não governamentais.

Vivemos desde os anos 60, 70 as lutas contra a ditadura, nos movimentos sociais, defendemos o fortalecimento da sociedade, os espaços dos movimentos sociais, das organizações não-governamentais, mas o papel do Estado é insubstituível para pensar o país a curto, médio e longo prazo. Num país continental como o Brasil, as ONGs, por mais generosas que sejam e por mais fundamental que seja seu papel, atuam setorial e/ou regionalmente. Precisamos ter o Estado para articular e integrar essas ações setoriais e regionais num grande projeto de Nação.

Temos buscado a participação da sociedade, com os parceiros do Fome Zero, igrejas, empresários, movimentos sociais, sindicatos. Queremos as pessoas de boa vontade, as grandes campanhas para ajudar os pobres, mas estamos superando a fase do “Natal sem Fome” para construir todos os dias sem fome, da mesma maneira que se fazem políticas públicas como segurança, saúde, qualificação profissional, trabalho, saneamento básico. Esses direitos pressupõem uma ação decisiva do Estado, inclusive no sentido de equilibrar as relações e proteger os economicamente mais fracos.

Há um debate que permeia as políticas sociais nos países em desenvolvimento, na América Latina ou na África. No Brasil, em geral, vem traduzido por uma máxima bastante conhecida que o mestre Paulo Freire aplicava à educação: “Dar o peixe ou ensinar a pescar?” O conjunto das políticas de ações sociais de combate à fome e à miséria no Brasil, no governo Lula, é de caráter compensatório ou estruturante, ou essa dicotomia não responde à questão?
Uma coisa está diretamente ligada à outra: é dar o peixe e ensinar a pescar. Uma pessoa com fome, para usar a linguagem metafórica, que não conheça os equipamentos da pesca, não vai pescar e corre o risco de cair no rio e ser consumida pelos peixes. As pessoas têm de ser atendidas nas suas necessidades básicas aqui e agora, e numa perspectiva emancipatória. Temos de superar esse dualismo. Quem coloca essa questão, em geral, nunca deu o peixe nem ensinou a pescar. Os que dão o peixe, usualmente, são os que também ensinam a pescar porque faz parte da dialética, do trabalho popular, do trabalho com os pobres, da participação efetiva e afetiva junto àqueles que estão construindo sua dignidade etc.

A mesma coisa vale para políticas emergenciais versus políticas emancipatórias ou estruturantes. Elas se articulam, se integram. As políticas emergenciais são necessárias. Não se trata de assistencialismo assegurar a uma pessoa o direito à alimentação. O direito à alimentação é o primeiro degrau da cidadania, do direito à vida, da dignidade humana.

Há alguns dias um crítico do governo disse: “O governo Lula não deixará legado”. Como o senhor responderia a isso neste debate das políticas sociais?
Afirmo com a segurança de quem estuda com seriedade a história do Brasil além das políticas sociais: nenhum governo realizou, no campo das políticas sociais, o que o governo Lula realizou. E certamente fará mais, porque, na medida em que as bases estão consolidadas, novos e maiores avanços são possíveis.

É comparável, por exemplo, com o legado do governo Getúlio em 1943, com a CLT?
Sim, um legado histórico do mesmo nível e sob certos aspectos avançando, porque estamos criando um sistema. Pela primeira vez na história do Brasil temos o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, voltado única e exclusivamente para os pobres e promovendo políticas articuladas nacionalmente. O ministério operou em 2005 com um orçamento superior a R$ 17 bilhões. Não estou falando dos recursos da Previdência Social, da Educação, da Saúde, do Pronaf, da Cultura e das outras áreas sociais. São recursos destinados única e exclusivamente para a promoção de pessoas, famílias, comunidades em situação de alta vulnerabilidade social, recursos que serão ampliados no próximo orçamento de 2006 para mais de R$ 21 bilhões.

Considero como grande legado do governo Lula a refundação do Estado do bem-estar social, entre outros – no campo da política externa, na afirmação da soberania do país, no setor energético, na afirmação da Petrobrás, no estancamento do processo de privatização. Ao contrário do que foi dito no passado, que era preciso sepultar o Estado varguista, estamos retomando – em bases democráticas, de participação social, no novo contexto histórico –, consolidando e ampliando as conquistas da era Vargas.

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Em uma entrevista a um prestigioso veículo da imprensa paulista, o senhor recomendava a necessidade do exercício crítico e a recusa da ingenuidade na disputa política em torno das realizações do governo no processo de sucessão que se inicia. Há quem tenha dito que o Bolsa-Família seria criticado pelos seus erros e, se desse certo, seria criticado muito mais ferozmente. Qual é a efetiva incidência do programa na vida concreta dos pobres e miseráveis do Brasil?
O Bolsa-Família integra programas anteriores, o Bolsa-Escola, o Bolsa-Alimentação, o Cartão-Alimentação, o Auxílio-Gás, cria o Cadastro Único, na perspectiva de garantir cinco direitos. Primeiro, o direito à alimentação, e estamos efetivamente vencendo a luta contra a fome e a desnutrição no Brasil. Segundo, o programa trabalha com condicionalidades, e estamos efetivamente cumprindo, em ação integrada com o Ministério da Educação, o controle de mais de 95% da freqüência escolar, e chegaremos a 100% neste ano, com o cartão magnético. Terceiro, cria as condições para que as crianças possam ir à escola, como alimentação, referência familiar e cuidados básicos com a saúde. Quarto, trabalha a preservação dos vínculos, dos valores familiares. Quinto, há a integração do programa com políticas de desenvolvimento local, regional, geração de trabalho e renda; a integração com programas de inclusão produtiva, da economia solidária, o apoio ao cooperativismo; a integração com as políticas relacionadas com a agricultura familiar, para que as famílias tenham condições de se tornar auto-suficientes.

É um programa de magnitude jamais vista no Brasil, está cumprindo rigorosamente suas metas – hoje são 8,7 milhões de famílias, aproximadamente 40 milhões de pessoas sendo atendidas –, com presença em todos os municípios do Brasil. Estabelecemos uma rede de fiscalização pública, temos convênios com os Ministérios Públicos estaduais e federal, de tal maneira que todos os promotores de Justiça, em todas as comarcas do Brasil, são nossos parceiros e fiscais do programa. Trabalhamos também com a Controladoria Geral da União, representada pela figura extraordinária do ministro Waldir Pires; com os Tribunais de Contas; com todas as prefeituras, na atualização dos cadastros e construindo em cada cidade os comitês de controle social do Bolsa- Família, consolidando uma rede de fiscalização pública e também uma grande rede na base de controle social.

Há um crítico do Bolsa-Família de sólida reputação, o professor Paes de Barros. Recentemente ele disse se tratar de um programa frio, que precisava ter um contato mais pessoal com os destinatários, porque revela uma cobertura e. - ciente, mas, quando localiza o problema de um menino que não foi à escola, não tem ninguém lá na ponta para perguntar por que o menino não foi à escola. Assim, propõe a integração dos mais de 100 mil agentes comunitários de saúde para acompanhamentos desse tipo. O que lhe parece essa observação?
O professor Paes de Barros tem sido um interlocutor e defendido o programa Bolsa-Família de forma vigorosa, como o professor Marcelo Néri, da Fundação Getulio Vargas, e outros estudiosos, no Brasil. Ele tem dialogado conosco e feito críticas pontuais, as quais temos acolhido. Estamos considerando essa participação mais efetiva dos 100 mil agentes comunitários de saúde. O Brasil é muito grande, descentralizado, precisamos dos estados e municípios, mas a participação é desigual em função das prioridades e dos compromissos de governadores e prefeitos. Também no caso da Agência de Saúde, a adesão dos agentes aos objetivos superiores do bem comum, da justiça social, é diferenciada. É preciso aprofundar nossas parcerias com o Ministério da Saúde.

As ponderações do professor são acolhidas por nós com muita atenção, mas também fazemos algumas pontuações. Não podemos esquecer que o Bolsa-Família tem dois anos e já é um êxito notável. No plano internacional, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, reconhece o programa como uma das experiências mais expressivas do mundo em termos de política social consistente, rápida, ágil e absolutamente republicana de promoção social.

É possível, apesar da brevidade do tempo, mensurar essa capacidade de inserção ou reinserção das famílias destinatárias do Bolsa-Família no processo produtivo de suas comunidades?
Temos algumas pesquisas por amostragem que delineiam resultados muito positivos com relação aos cuidados com a saúde. O Brasil avançou muito desde a implantação do Sistema Único de Saúde, e o Bolsa-Família reforça muito isso. As pesquisas mostram a presença das crianças na escola, inclusive vinculando a alimentação escolar da merenda à melhora das condições de alimentação em casa. Seguramente as crianças vão para a escola com suporte melhor, roupa melhor, material escolar, cadernos, lápis... Já temos centenas de casos de famílias que devolveram o cartão ou porque conseguiram trabalho mais bem remunerado ou porque se inseriram em programas de geração de trabalho e renda, de agricultura familiar, Pronaf etc.

Mas, mesmo dentro de um prazo exíguo para qualquer política pública, num país desta dimensão e com sua dívida social, historicamente acumulada e em muito agravada em face da perversidade do modelo neoliberal concentrador, penso que temos dados muito fortes nessa linha. Vivemos uma situação de desemprego estrutural em razão do modelo político globalizado, do neoliberalismo e também da mudança de paradigma, com as inovações tecnológicas, que se agravam num país onde a dívida social impediu que no passado as pessoas tivessem assegurados os direitos básicos, como, por exemplo, a escolaridade. Então, temos um desemprego estrutural, e uma pessoa que fica desempregada muito tempo tende a perder a auto-estima.

É o sonho do programa, a devolução do cartão?
Exatamente. O objetivo sempre é este: assegurar condições para que as pessoas possam sempre ter direito ao trabalho.

O Ministério comemorou, com justiça, os dados da Pnad, isto é, começam a chegar para a sociedade brasileira as repercussões de uma construção arduamente posta de pé no governo Lula, que é a diminuição das desigualdades.
A Pnad apresentou dados muito significativos. De um lado, o aumento do número de trabalhadores com carteira assinada, também incidindo nas possibilidades de desenvolvimento do país, mais de 3 milhões de novos empregos. De outro, 6 milhões de pessoas, no período de dois anos, praticamente ascenderam socialmente: 3 milhões que transcenderam a linha da pobreza e 3 milhões que melhoraram efetivamente suas condições de vida. Sem que tivesse sido expressamente vinculado à pesquisa, o Bolsa-Família emerge na própria pesquisa como o grande fator de promoção social para o país, mostrando que tem uma dimensão muito além daquilo que uns dizem ser um programa assistencialista.

Que papel deve ter um partido democrático e socialista num projeto dessas dimensões, na perspectiva de encontrar caminhos nessa encruzilhada que o Brasil viverá em 2006?
Imagino que os leitores de Teoria e Debate, os militantes, filiados, simpatizantes do Partido dos Trabalhadores, dos partidos de esquerda ou centro-esquerda, comprometidos com o projeto nacional de desenvolvimento com justiça social, têm um sentimento de urgência que não podemos perder: a fome e a miséria não podem esperar, e nós temos de colocar toda a nossa inquietação, indignação, numa ação positiva, transformadora e eficaz. Temos de buscar cada vez mais, como estamos fazendo no governo e no ministério, mecanismos ágeis e eficazes de gestão e de respostas aos problemas e desafios que nos são postos pela vida dos pobres.

Somos portadores de um sonho que às vezes nos faz querer queimar etapas, queremos o reino dos céus ou a sociedade sem classes. Utopias, ideais que têm de ser construídos ao longo do tempo e da História; temos de calçar o caminho das nossas utopias, dos nossos desejos, e confrontá-los com a realidade. Não podemos ficar aquém das possibilidades da História, temos de forçá- la cada vez mais. Mas não podemos dar um passo além das possibilidades, porque a História nos ensina que muitas experiências generosas se perderam um pouco pela falta da compreensão da correlação de forças, das disputas que se colocam no interior das sociedades e no contexto internacional. Em nome desse ideal amplo, não podemos deixar de fazer pelos pobres, aqui e agora, o que podemos fazer.

Como diz Carlos Drummond de Andrade, no poema “Mãos dadas”, “...não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins/O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. Estamos vivendo um momento histórico no Brasil. A História não se manifesta de forma visível em dois, três anos, quando a estudamos – e é fundamental que estudemos cada vez mais –, percebamos que as construções são lentas. Costumo dizer, numa linguagem de fé: “O tempo de Deus nem sempre é o nosso tempo”. Mas as coisas acontecem. A eleição do presidente Lula, em 2002, constituiu um capítulo novo na história do Brasil, que nunca mais será o mesmo. E é fundamental que as forças democráticas, populares, progressistas, as pessoas de bem tenham consciência disso e ajudem a aprofundar e ampliar as transformações sociais que estamos fazendo.

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo

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