Nacional

Uma história de mobilizações, iniciativas e lutas precede o estágio de compreensão e elaboração de propostas que o tema exibe hoje entre as políticas públicas

A II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada em março de 2004, em Olinda, demarcou a chegada desse tema a um novo patamar no Brasil, a partir da maturidade alcançada em sua definição conceitual e da clareza sobre os papéis que governo e sociedade devem desempenhar nas políticas públicas. A definição refere-se ao direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais.

A chegada a esse estágio de compreensão e à elaboração de uma série de propostas e diretrizes, no entanto, não se deu da noite para o dia. Foi precedida de uma história de mobilizações, iniciativas e lutas.

A questão começou a se tornar pública com Josué de Castro, o autor de Geografia da Fome, ainda na década de 50 e ganhou grande impulso na década de 90, a partir de mobilizações de massa na chamada Campanha contra a Fome, liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Esse avanço foi desencadeado pelo Governo Paralelo, que vigorou durante a Presidência de Fernando Collor. Com Luiz Inácio Lula da Silva à frente, apresentou-se ao país uma proposta intitulada “Política Nacional de Segurança Alimentar”, elaborada por especialistas coordenados por José Gomes da Silva, que exerceu grande influência sobre o que se realizou no governo do presidente Itamar Franco, como a criação do primeiro Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea), em 1993.

Esse contexto de grande sensibilização da opinião pública na luta contra a fome viabilizou a realização, um ano depois, da I Conferência Nacional de Segurança Alimentar, em Brasília. Esse encontro representou bem aquele momento, devido à força de sua manifestação política e à capacidade de elaboração coletiva de diretrizes básicas para os avanços futuros. Porém, poucos meses depois, o novo governo, presidido por Fernando Henrique Cardoso, deixou de reconhecer o lugar estratégico da segurança alimentar nas políticas públicas, além de não prezar a participação social em instâncias de concertação dessas políticas, extinguindo o Consea. Os oito anos seguintes foram, evidentemente, de refluxo desse movimento, o que não significou sua paralisação.

Pelo lado da sociedade, tratou-se de um período de acúmulo de forças, com a incorporação da noção da segurança nutricional e a adoção do princípio fundamental do direito humano à alimentação adequada. Avançou-se, igualmente, no aspecto organizativo, com a formação do Fórum Brasileiro de Segurança Alimentar e Nutricional e, por iniciativa deste, dos primeiros Conseas estaduais. Registre-se, também, que as organizações sociais brasileiras passaram a ter papel destacado em eventos internacionais, como no Fórum Mundial pela Soberania Alimentar, realizado em 2001, em Havana, e na avaliação dos cinco anos da Cúpula Mundial da Alimentação em 2002, em Roma. Mas, durante os dois mandatos de Fernando Henrique, a permanente reivindicação do movimento de segurança alimentar no Brasil, de realização de uma nova conferência nacional, nunca foi atendida.

Na trajetória de retomada do tema como prioridade de um projeto nacional, surge o Programa Fome Zero, elaborado por destacados especialistas, a partir de iniciativa do Instituto da Cidadania. Essa proposta, adotada pela candidatura de Lula à Presidência da República, vem reforçar o debate e a disposição de implantação de uma política nacional de segurança alimentar. Uma vez vitorioso na eleição de 2002, o novo governo reafirmou de imediato seu caráter prioritário com a montagem de uma estrutura institucional para dar conta dos desafios colocados. O Consea foi recriado e, com seis meses de existência, propôs a II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional ao presidente Lula, que a convocou.

Coube também ao Consea a organização do evento, que foi pensado como um processo construído a partir da mobilização no nível local, passando por conferências municipais e estaduais, para a elaboração de teses e propostas e a indicação de seus delegados para a reunião nacional. O período que transcorreu, de agosto de 2003 até março de 2004, envolveu milhares de pessoas, em todo o país, discutindo as políticas para a segurança alimentar e nutricional. A importância desse fato não deve ser desprezada e será sentida posteriormente, com um forte engajamento em torno do tema, nunca antes experimentado em todo o Brasil.

A Conferência Nacional ocorreu com participação amplamente majoritária de representantes da sociedade civil, de todos os estados do país, mas também contou, em todo o seu transcurso, com a presença de representantes dos ministérios envolvidos. O presidente Lula, junto com os ministros e secretários relacionados ao tema, fez a abertura do evento e o ministro Patrus Ananias, do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, teve papel de destaque durante o encontro. A discussão realizada foi marcada por saudáveis embates entre os participantes, na defesa de diferentes teses e opiniões, daí resultando 153 propostas, das quais 47 foram definidas como prioritárias.

Sem dúvida, a Conferência legou uma importante agenda ao governo e, mais especialmente, ao Consea. Não caberia, aqui, examinar cada uma das resoluções aprovadas, mas apreciar alguns dos programas e ações que foram por ela priorizados e como se desenvolveram a partir de então.

Foi unânime a decisão sobre a necessidade da elaboração de uma lei orgânica de segurança alimentar e nutricional, passo indispensável para a instituição de um sistema nacional dessa matéria. O Consea nacional encarregou-se de sua elaboração, com a realização de videoconferências e audiências públicas. O governo federal, por seu turno, respeitou plenamente o que fora aprovado na plenária do Conselho. Assumindo o projeto de lei como prioritário, o presidente Lula o enviou ao Congresso Nacional em outubro de 2005. Ainda em tramitação no Legislativo, uma vez aprovado o projeto será a principal vitória da Conferência.

O programa Bolsa-Família foi alvo de grande atenção, na época da realização da Conferência, e também de manifestações de incertezas quanto a aspectos que ainda se definiam para sua implantação, iniciada menos de seis meses antes. Assim, foi aprovada resolução para a consolidação e ampliação dos programas de transferência de renda articulados e integrados com a política de geração de emprego e renda. Em parte, essa resolução foi cumprida acima de todas as expectativas. Atualmente o programa está em todos os municípios brasileiros, com cerca de 9 milhões de famílias beneficiadas e significativo aperfeiçoamento de seu cadastro, da gestão, do monitoramento das condicionalidades, do controle social e da fiscalização, melhorias que contaram com reconhecida contribuição do Consea. Dado o ritmo de sua expansão, não foi possível garantir a universalidade de ações estruturantes, como recomendava a Conferência, o que faz prever que esta venha a se tornar a demanda principal sobre o programa, para o próximo ano.

No que se refere à produção e ao abastecimento, destaque-se a ênfase da Conferência no prosseguimento da política de fortalecimento da agricultura familiar, a partir do Plano de Safra, inaugurado um ano antes por iniciativa do Consea. No tocante ao financiamento da produção, entre 2003 e 2005 o crescimento do crédito foi notável, com expansão de 156% do valor aplicado e de 81% do número de contratos, além da implantação de novas linhas, como o Pronaf Florestal, Agroecologia e Alimentos, além do Pronaf Mulher, voltado ao financiamento das atividades das agricultoras familiares.

A Conferência também aprovou posição relativa à consolidação e ampliação do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, com destinação dos produtos a pessoas em situação de insegurança alimentar e à formação de estoques estratégicos. Embora tenham ocorrido avanços, como a definição do arcabouço institucional do programa e sua implantação em nível nacional, operacionalizada pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), seu alcance ainda é muito restrito, dada a limitação dos recursos diante da demanda existente.

Outra resolução da Conferência, relativa à proibição da produção e comercialização de alimentos transgênicos, frustrou-se frente às principais decisões tomadas. Por meio de várias manifestações, o Consea buscou orientar o governo quanto à necessidade de adotar o princípio da precaução em relação a esses produtos, mas não foi atendido, ao ser aprovada a legislação que autoriza a comercialização dos alimentos geneticamente modificados. Porém, duas recentes posições assumidas pelo governo retomam, pelo menos parcialmente, a postura de precaução: a rotulagem de alimentos, especificando a presença de transgênicos, e a proibição da comercialização de sementes estéreis (“Terminator”).

Duas outras indicações da Conferência devem ser consideradas, em razão de sua importância para uma política de segurança alimentar. A primeira trata da reformulação da legislação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). O Consea nacional e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), do Ministério da Educação, elaboraram um pré-projeto de lei que traz mudanças significativas, como a ampliação de sua cobertura, podendo contemplar o ensino médio, o respeito aos hábitos alimentares e o estímulo à economia local, por meio da aquisição de alimentos produzidos em áreas próximas das escolas. Assinale-se, ainda, a recuperação do valor per capita da alimentação escolar, que por decisão do presidente da República, ao assumir solicitação do Consea, rompeu um congelamento de dez anos, que já inviabilizava o prosseguimento do programa.

Menos satisfatório foi o atendimento à reivindicação de fortalecimento do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan). Instrumento estratégico de monitoramento e avaliação das políticas públicas de vigilância nutricional, sua implantação continua insuficiente, com apenas 1.050 municípios alimentando o sistema. Para superar essa baixa cobertura, encontra-se em análise pelo Ministério da Saúde uma proposta de garantia de recursos orçamentários para incentivar os municípios no preenchimento e informação dos dados.
Diante desses resultados, algumas conclusões podem ser tiradas em relação à II Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Sua realização atestou, de um lado, a crescente força da sociedade civil organizada em torno desse tema e, de outro, a enorme acolhida do governo Lula para a participação popular na proposição de políticas públicas. Mostrou, ainda, que governo e sociedade precisam apurar, cada vez mais, suas capacidades na construção de propostas e em sua concretização em políticas que tragam de fato as transformações que o país hoje requer. Pouco mais de dois anos após a Conferência, ocorreram avanços significativos, mas também ficaram claros os limites encontrados, sobretudo a restrição orçamentária que ainda trava o resgate da imensa dívida social que o país acumulou. O Consea nacional está convocando a III Conferência Nacional para 2007, confiante de que não precisaremos mais aguardar tanto tempo para a realização de um processo dessa importância, como infelizmente ocorreu entre o primeiro e o segundo encontro.

Francisco Menezes é presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)