Nacional

A criação do Ministério das Cidades, a implantação do Conselho das Cidades e a realização das conferências nacionais são conquistas do movimento pela reforma urbana brasileira

Um dos aspectos mais importantes do governo Lula, mas infelizmente pouco valorizado pelos meios de comunicação, diz respeito à promoção de um amplo processo participativo na formulação de políticas públicas. Novos canais foram abertos por meio do ciclo de conferências dedicado à construção de esferas públicas institucionalizadas, inaugurando assim um modelo diferente de gestão pública participativa.

Considerando a agenda prevista para 2006, temos 29 conferências realizadas e/ou programadas, com a discussão dos seguintes temas: criança e adolescente (2003 e 2005); agricultura e pesca (2003 e 2006); direitos humanos (2003 e 2004); cidades (2003 e 2005); saúde (2003); assistência social (2003 e 2005); meio ambiente (2003 e 2005); infanto-juvenil pelo meio ambiente (2003 e 2006); medicamentos e assistência farmacêutica (2003); segurança alimentar e nutricional (2004); esporte (2004 e 2006); política para as mulheres (2004); Arranjos Produtivos Locais – APLs (2004 e 2005); promoção da igualdade racial (2005); cultura (2005); saúde do trabalhador (2005); ciência, tecnologia e inovação (2005); dos povos indígenas (2006); direitos da pessoa com deficiência (2006); e direito do idoso (2006). Pode-se estimar a mobilização de mais de 2 milhões de pessoas que se envolveram na realização das conferências municipais e estaduais, no processo de organização das conferências nacionais.

Esse ciclo de conferências demonstra um compromisso com uma esfera pública participativa, que procura envolver tanto os demais níveis de governo – municípios e estados – quanto a sociedade civil – através das organizações populares, empresariais, ONGs, entidades sindicais e profissionais. A nosso ver, a aposta na institucionalização e sustentabilidade de um sistema de participação social de tal envergadura representa um esforço inédito na história do país.

Crise urbana e a política de desenvolvimento

Nas últimas duas décadas do século 20 a questão urbana e os processos de exclusão social se constituíram em problemas centrais para pensar o futuro da humanidade. Os efeitos perversos do redesenho do papel do Estado e das macropolíticas econômicas preconizadas pelo Consenso de Washington e sua ideologia neoliberal são bastante conhecidos no que se refere ao agravamento das desigualdades nas cidades, à massificação da pobreza, à insegurança generalizada e à exclusão crescente.

O modelo de produção e gestão das cidades brasileiras foi resultado da combinação de processos de concentração territorial em áreas metropolitanas, segregação urbana e exclusão socioeconômica, produzindo uma nova ordem socioespacial, na qual a cidade aparece como a expressão de uma estrutura social dualizada entre ricos e pobres, cidadãos e não-cidadãos.

Ao mesmo tempo, em termos institucionais, a política urbana nunca foi assumida como uma política de Estado, com exceção do período autoritário e centralizador do regime militar. Os sucessivos governos nunca tiveram um projeto estratégico para as cidades brasileiras envolvendo, de forma articulada, as intervenções no campo da regulação do solo urbano, da habitação, do saneamento ambiental e da mobilidade e do transporte público.

A criação do Ministério das Cidades, em 2003, representou uma resposta a esse vazio institucional, de ausência de uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) consistente, capaz de construir cidades sustentáveis e democráticas. Pode-se dizer que tanto a criação do Ministério das Cidades como a implantação do Conselho das Cidades e a realização das conferências nacionais são conquistas do movimento pela reforma urbana brasileira. Como parte desse movimento social destaca-se a importância do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), uma coalizão de organizações que reúne movimentos populares, ONGs, associações de classe e instituições acadêmicas e de pesquisa em torno da defesa da reforma urbana, da gestão democrática e da promoção do direito à cidade.

O ciclo de conferências das cidades

A primeira Conferência Nacional das Cidades foi realizada de 23 a 26 de outubro de 2003, em Brasília, com o tema “Cidade para Todos” e o lema “Construindo uma política democrática e integrada para as cidades”. Participaram 2.510 delegados, divididos por segmentos sociais assim distribuídos: gestores, administradores públicos e legislativos, envolvendo o governo federal, os governos estaduais e municipais e o Distrito Federal, 40% (20% para o nível municipal, 10% para o estadual e 10% para o federal); movimentos sociais e populares, 25%; ONGs, entidades profissionais, acadêmicas e de pesquisa, 7,5%; trabalhadores, através de suas entidades sindicais, 10%; empresários relacionados à produção e ao financiamento do desenvolvimento urbano, 7,5%; e operadores e concessionários de serviços públicos, 10%.

Apesar de o Ministério das Cidades, então recém-criado, ainda estar se estruturando e de um calendário preparatório apertado, a convocação da primeira Conferência alcançou um alto grau de mobilização no âmbito dos municípios e estados. Tal mobilização pode ser evidenciada pelo fato de ter sido precedida de 1.427 conferências municipais, 185 conferências regionais – o regimento facultava a opção pela realização de conferências conjuntas para os municípios de uma mesma região –, totalizando 3.457 municípios de todos os estados da Federação. Além disso, 26 governos estaduais, dos 27 existentes, convocaram conferências. No total, mais de 300 mil pessoas participaram desse processo, o que expressa o grande interesse da sociedade em debater a política urbana.

Aberta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a Conferência avaliou cerca de 3.850 propostas originárias das conferências municipais e estaduais. Foram aprovados princípios, diretrizes, objetivos e ações da política nacional da política urbana; as atribuições, a estrutura de funcionamento e a composição do Conselho das Cidades; e as diretrizes, os objetivos e as ações das políticas específicas de habitação, saneamento ambiental e mobilidade e trânsito. Por fim, ainda na Conferência foi eleito o Conselho das Cidades, formado por 71 membros e 27 observadores.

A Segunda Conferência Nacional das Cidades foi realizada em Brasília entre 30 de novembro e 3 de dezembro de 2005, dessa vez com o lema “Reforma urbana: cidades para todos” e o tema “Construindo uma Política Nacional de Desenvolvimento Urbano”. Analogamente à primeira edição, a segunda foi antecedida de conferências municipais, regionais e estaduais. Foram realizadas conferências em todos os 27 estados – em dois deles, convocadas pela sociedade civil organizada.

Com a participação de 1.820 delegados e 410 observadores, a Segunda Conferência avançou na discussão da PNDU ao estabelecer as bases de um projeto nacional que promova o direito à cidade, o desenvolvimento social, econômico e ambiental, o combate à desigualdade social, racial, de gênero e regional; diretrizes e instrumentos de integração das políticas urbanas, através das políticas de habitação, saneamento ambiental, transporte e mobilidade; diretrizes e prioridades para a cooperação, a coordenação e a articulação de ações intergovernamentais; a garantia da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos; e diretrizes e orientações que garantam a aplicação dos investimentos públicos no enfrentamento das desigualdades sociais e territoriais. Definiu ainda que a PNDU deve conter um Sistema Nacional de Desenvolvimento Urbano estruturado nas várias esferas da Federação, por meio de instâncias de representação do poder público e da sociedade civil, visando o controle social e a articulação das políticas setoriais do desenvolvimento urbano – expressas por conferências, conselhos, fóruns de integração setorial e fundos voltados para o desenvolvimento urbano.

Outro aspecto a ser destacado é que a Segunda Conferência consolidou o Conselho Nacional das Cidades, elegendo sua nova composição, agora com 86 membros, assim distribuídos: poder público federal (16); poder público estadual (9); poder público municipal (12); movimentos sociais e populares (23); entidades empresariais (8); entidades sindicais e trabalhadores (8); entidades profissionais, acadêmicas e de pesquisas (6); e ONGs (4). Além destes, o Conselho contará com 9 observadores dos estados, garantindo a presença de todas as unidades da Federação.

Eleito no processo das conferências, o Conselho Nacional das Cidades debateu e aprovou importantes resoluções. Entre elas destacam-se os seguintes temas: política nacional de habitação; política nacional de saneamento ambiental; política nacional de mobilidade, transporte e trânsito; campanha do plano diretor participativo; programa de regularização fundiária e revisão da legislação existente; e o programa nacional de capacitação para a PNDU. Um marco nesse processo foi a aprovação da mencionada Lei nº 11.124, que instituiu o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, em 2005, treze anos após o Projeto de Lei, de iniciativa popular, ser entregue ao Congresso Nacional.

Desafios e o direito à cidade

Não restam dúvidas de que jamais na história deste país a política urbana mereceu debate democrático tão abrangente como vem ocorrendo desde 2003, com o processo de realização das Conferências e o funcionamento do Conselho Nacional das Cidades. Mas, apesar dos avanços identificados, também é importante reconhecer alguns desafios a ser enfrentados no aperfeiçoamento do Conselho das Cidades. Alguns segmentos sociais importantes ainda não estão ali representados, como o movimento ambientalista, as organizações feministas e o movimento negro. O compromisso dos demais órgãos do governo federal, além do Ministério das Cidades, deixa a desejar. É fundamental envolver os diversos ministérios representados no Conselho, para aumentar sua capacidade decisória. Dada a inexistência de um sistema de participação em torno das políticas urbanas, nos estados e municípios, torna-se necessário desenvolver mecanismos e instrumentos – inclusive vinculados ao repasse de recursos – que incentivem a institucionalização de conselhos estaduais e municipais das cidades. Outro aspecto negativo é a pouca expressão dos demais níveis de governo, devido à fraca representatividade de suas entidades presentes no Conselho das Cidades – a cooperação federativa é indispensável para a implementação da PNDU. Por fim, é imprescindível reconhecer os limites do Conselho das Cidades decorrentes de sua criação por decreto presidencial. Para alterar o estatuto institucional-jurídico do Conselho das Cidades, de forma a torná-lo uma instância deliberativa, faz-se necessária a aprovação de lei pelo Congresso Nacional.

Como tentamos argumentar, o ciclo de Conferências das Cidades indica o potencial desse espaço em se constituir em esfera pública de concertação entre os diferentes atores e seus respectivos interesses em torno de políticas públicas pactuadas socialmente, possibilitando a proposição de uma nova política de desenvolvimento urbano que combata as desigualdades sociais. Ao contrário do que muitos pensam, a busca de um pacto num debate aberto que conta com a participação de governos e sociedade, em que estão presentes interesses divergentes relacionados à produção e ao usufruto da cidade, não pretende subordinar interesses, mas fazer emergir conflitos que sempre foram sufocados pela tradição política brasileira.

Ermínia Maricato é arquiteta e urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura da USP. Foi secretária executiva do Ministério das Cidades (2003 a 2005) e secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo na gestão Luiza Erundina (1989-1992)

Orlando Alves dos Santos Junior é so­ció­logo, doutor em Planejamento Urbano, diretor da Fase, secretário geral do Fórum Nacional de Reforma Urbana. Foi integrante do Conselho das Cidades em 2004-2005