Nacional

Nazaré da Mata (PE), terra de lutas libertárias que viu florescer desigualdades sociais gritantes, deu a vitória ao presidente Lula nos dois turnos.

Território de topografia irregular, é na mata setentrional do estado de Pernambuco que está encravada Nazaré da Mata, distante 65 quilômetros da capital. É terra de cana-de-açúcar, mas nem por isso a doçura que já exalava dos engenhos há 300 anos conseguiu adocicar a vida dos trabalhadores rurais, obrigados a cortar cana, lidar com a afiada e peluda folhagem, a cambitar, transportar no próprio lombo os feixes pesados de cana crua ou queimada nos íngremes declives aonde caminhão não chega. Essa terra de antigas lutas libertárias – na qual, da sacada de uma casa defronte à principal igreja da cidade, Joaquim Nabuco incitou a população a aderir à causa abolicionista – viu florescer desigualdades sociais gritantes, viu agigantar-se um fosso entre latifundiários, os temidos senhores de engenho, e camponeses, estes frutos de uma violenta relação de subserviência. Do apogeu das centenas de engenho de açúcar quase nada sobrou, a não ser a lastimável miséria de descendentes de escravos, que eram e são a força motriz a indústria açucareira. Habitada por 31 mil pessoas, das quais mais de 24 mil são eleitores, Nazaré tem uma zona rural preenchida com 34 engenhos de açúcar e, dentro dos limites do perímetro urbano, vê-se dividida administrativamente em três bairros – Sertãozinho, Juá e Alto da Boa Vista. Na última década, após o fechamento da usina Matary, que durante quase cem anos foi a única indústria de açúcar e principal recolhedora de tributos do município, restam as terras dos engenhos que fornecem cana para outras cidades, além da tímida movimentação econômica de pequeno comércio, uma indústria de massas, destilaria de álcool e abatedouro de aves.

No dia 1º de outubro a aparente calmaria nas ruas da cidade, sobretudo as mais afastadas dos locais de votação, não deixava transparecer com facilidade quem seria exatamente o presidenciável preferido. Mas bastou aguçar os sentidos e ouvir comentários, conversas aqui e ali, para saber quem era quem naquela disputa. “O homem é Lula”, gritou um ciclista ao amigo que fazia a sesta na ensombrada calçada. “Se não fosse Lulinha, a gente não estava comendo”, comentava outro passante. “Lula ganha”, avalia José Pedro da Silva, 37 anos, candidato a vereador por duas vezes, e integrante do palanque contrário. “O povo confia em Lula, a expectativa está aí nas pesquisas. Até aqui não se provou nada contra ele”, ressaltou.

A preferência por Lula era tão evidente na cidade que até mesmo o representante da coligação que defendia a candidatura de Geraldo Alckmin, o advogado trabalhista José Maurício de Andrade, 40 anos, afirmou que os próprios eleitores da frente de oposição estavam com Lula. A justificativa é o fato de o presidente ter-se voltado para Pernambuco. O vereador Severino Joaquim da Silva (PSDB), conhecido por Irmão Ia, declarou sem titubear: “Vou votar em Lula, é o meu desejo mesmo”. Pedreiro de profissão, é a primeira legislatura que enfrenta, e com popularidade. Dos nove vereadores, quatro votam em Lula. Três do PSDB, um do PP. Não há nenhum do PT.

O prefeito, Inácio Manoel do Nascimento, tratado familiarmente pelo apelido de Nino, foi trabalhador rural, militante de esquerda, defensor das causas dos camponeses, vereador e presidente da Câmara Municipal, participante das mesmas bases políticas de Miguel Arraes. Nasceu no engenho Lagoa, a cerca de cinco quilômetros do centro de Nazaré, local hoje ocupado por integrantes do MST. Prefeito da cidade em dois mandatos anteriores (1983-1988 e 1993-1996), foi filiado ao MDB, PSB, PDT, entretanto, mesmo tendo sido arraesista ferrenho, atualmente é do PSDB. Dizia-se, à boca miúda, no dia da eleição, que votaria mesmo em Lula, apesar de ter orientado os comissionados da prefeitura em sentido contrário. O vice-prefeito atual, Edenísio Lourenço da Silva, ou Nego, embora vinculado ao PSDB, decidiu-se pelo voto em Lula, por considerar que “esse pernambucano, torneiro-mecânico sem instrução superior, buscou soluções para problemas como a miséria, a fome, o desemprego”.

Proprietária de vastas extensões de terra dos engenhos de açúcar, dona dos meios de produção e dos principais empreendimentos econômicos da região, a elite nazarena comporta-se como elite: opta pelos candidatos conservadores. Um contraponto a isso é o trabalho de base realizado pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Nazaré da Mata, Tracunhaém e Buenos Aires, que acompanha a realidade dos 4,5 mil associados, presta assistência social e jurídica, além de defender candidatos alinhados à esquerda. O presidente, José Pereira da Silva Filho, no cargo desde 1998, considerou garantida a vitória de Lula: “O programa Bolsa-Família e o salário mínimo são o carro-chefe do governo. Isso é muito forte. Apoiamos para governador Eduardo Campos e Lula para presidente”.

Com uma espécie de imunidade às acusações contra o presidente, o eleitorado de baixa renda, em Nazaré da Mata, defende exatamente essa identidade com o metalúrgico. Das 3.472 famílias pobres, quase 2,5 mil são atendidas pelo Bolsa-Família, o que foi conferindo aproximação ainda maior com o candidato presidente. Essa, ninguém tira!

Montado no cavalo, São Jorge espeta o dragão e quem enfeita a cena, em preto e branco, é a estrelinha do PT. Como que protegido pela imagem do combatente, o jovem Gustavo José da Silva, 28 anos, escolheu a dedo a camisa que vestiria no dia da eleição, para votar mais uma vez em Lula. Vivendo há 22 anos em Nazaré da Mata, nasceu no Recife e é aí onde atualmente trabalha como assistente de plenário dos desembargadores do Tribunal de Justiça. O bairro nazareno em que mora se chama Alto da Boa Vista, ou Alto da Santa, ou ainda bairro da estação, porque, ao pé do morro, está a antiga estação ferroviária, hoje desativada. “Por que voto em Lula? Porque Lula vê mais o lado dos pobres. Nos bairros pobres a maioria é Lula. Na zona rural também”, avalia Gustavo, que considera o Bolsa-Família valiosa ajuda para quem vivia na miséria, na fome, e não dá crédito aos escândalos. “Querem derrubá-lo, mas não ficou nada provado”, defende.

“Naquele bairro ali dá muito Lula”, afirma mais um morador do alto da Boa Vista, o pedreiro Manuel Belo da Silva, pai de um casal de filhos, de 22 e 24 anos. A mulher, dona-de-casa, não tem emprego. A família não é beneficiária do Bolsa-Família. “Lá em casa só deu Lula mesmo. Votei no 13 de cima a baixo”, complementa Manuel, que trabalha no Recife de segunda a sexta e nos fins de semana vende picolé e sorvete em Nazaré. Outra moradora do Alto da Santa, loteamento Pedregulho, Severina Gomes defende Lula com unhas e dentes: “A fome e o desemprego são terríveis, ai de nós se não fosse Lula”.

O bairro agora é o Sertãozinho. Diante de uma casa na principal via, quem está na calçada não percebe que, pelo corredor lateral, há acesso para outras casas nos fundos do terreno. A descida não é suave e o cheiro, nada agradável. O proprietário cria porcos, de canto a canto corre um esgoto a céu aberto, mas quem se ressente dessa situação é o inquilino João Júlio da Silva, que vive ali com a família – sete pessoas ao todo. “Só foram dois presidentes bons que eu vi: Lula e Getúlio Vargas”, ressalta, convicto de que Lula “foi um bom presidente, quem botou defeito nele é cego da consciência”. João Júlio é poeta, mestre improvisador de maracatu rural, brincadeira típica da região no período carnavalesco. Um dos filhos, Genival Lopes da Silva, 26 anos, cortador de cana, analfabeto, tocador de zabumba, defende o voto: “Ele mesmo é quem pode fazer o que está fazendo”.

“Essa, ninguém tira dele, não. Lula foi um presidente”, enfatiza João Júlio, 61 anos, 50 anos de improviso poético, aplaudido por onde passa fazendo poesia. Analfabeto, começou a improvisar versos aos 11 anos e sabe se expressar de forma clara. “Lula deu logo R$ 50 de aumento pros pobres, deu a mão aos pobres. A falácia é grande. Outros dizem que fazem, ele faz mesmo.” Na época do governo de Arraes, João Júlio trabalhou no programa social Chapéu de Palha, que se destinava a amparar os camponeses na entressafra. Dos sete componentes da família – dois filhos, uma filha, duas netas e a mulher – apenas os rapazes têm contrato de safra. O chefe da família trabalha numa roça de três hectares, nas terras do engenho Lagoa, onde viveu durante o ano passado, integrado à comunidade do MST. Após sua saída do engenho, paga aluguel de casa e a renda familiar é obtida com a colheita do roçado. Comercializa parte no banco de um conhecido, na feira livre da cidade, e reserva uma quantia para consumo próprio.

Para se deslocar até o trabalho na Usina Cucaú, Mata Sul pernambucana, onde trabalha há nove anos, o cortador de cana José Vieira da Silva, 29 anos, gasta três horas de viagem. Dedé, como é conhecido esse outro poeta de maracatu, mora no bairro do Sertãozinho e escolheu votar em Lula porque considera que “dentre os presidentes, ele fez o melhor”. E não acredita nos escândalos: “Isso é mentira”. A esposa, Maria de Fátima do Nascimento, 24 anos, mãe de duas filhas, igualmente escolheu Lula. A família dela fez a mesma opção. Severina Rosa do Nascimento, uma das irmãs, é beneficiária do Bolsa-Família, e todos se sentem aliviados por isso. Fátima, ou Mimi, cadastrou-se no programa e aguarda resultado: “Queria que minha Bolsa-Família chegasse”. Ela não trabalha, dedica-se às duas filhinhas, de 1 e 3 anos, e é mantida pelo marido, que vem visitá-las a cada 15 dias.

Também no bairro do Sertãozinho, no loteamento Eugênio Bandeira, reside a viúva Severina Maria da Silva, donade- casa, 55 anos. Votou em Lula, com a filha, o genro e o neto de 18 anos. A filha, Maria das Graças da Silva, tem outro adolescente, de 14 anos, que ainda não vota, mas defende o candidato do núcleo familiar. O marido é do corte da cana e há cerca de quatro anos trabalha, somente nos períodos de safra, na usina Petribu, Mata Sul. “O Lula é um presidente muito bom, o Bolsa-Família foi uma bênção”, defende Severina. No bairro do Juá, Severina Maria da Conceição, merendeira em escola municipal, tem seis filhos e cria um neto. “Todos votamos em Lula, é o melhor, é quem ajuda aos pobres.” Um dos filhos, que mora no Recife, foi a Nazaré especialmente para votar. É caminhoneiro e viaja muito para São Paulo. Dos seis filhos de dona Biu, duas filhas recebem o Bolsa-Família, quase todos trabalham, mas a mãe ainda mantém dois solteiros em casa. “Tenho um salariozinho pequeno, casa de aluguel, água e luz para pagar. Comprei um terrenozinho, com um empréstimo, e estou sem condições de construir.” A vizinha de bairro, Roseane Maria dos Santos, 30 anos, dois filhos, trabalha em casa de família, e o marido, que era cobrador de ônibus, há sete meses está sem emprego. Votaram os dois em Lula. Beneficiária do Bolsa-Família, considera que tudo melhorou bastante: “Antes era só o meu salário, agora tenho mais condições de comprar as coisas para os meus filhos e eles estudam mais. Um deles está na escola em horário integral”.

Na zona rural, mais precisamente no engenho Várzea Grande, a moradora Neuza Maria de Souza vive com a filha, genro e dois netos, de 13 e 10 anos. Há três décadas reside lá e é servente merendeira na escola de outro engenho, o Teimoso. A filha recebe Bolsa-Família, o que tem evitado que as crianças precisem trabalhar no campo. O genro trabalha na palha da cana. “Meu presidente é o de sempre. É Lula”, confessa Neuza, acrescentando que “quando a gente vê que o presidente é bom, a gente tem que renovar. Se não fosse ele, os meninos não estavam comendo”. Tem sete filhos e todos votam em Lula. Embora o delegado do PT e assessor da Federação dos Trabalhadores Rurais de Pernambuco, Mário João da Silva, avalie que o eleitorado nazareno tenha se mantido dividido nas eleições em que Lula era bem cotado, é importante verificar que, já no resultado do primeiro turno, os números crescem em relação aos resultados de 2002. Enquanto Lula ganhou com 9,7 mil votos, contra pouco mais de 6 mil de José Serra, desta vez teve, no primeiro turno, 10.278 votos e Geraldo Alckmin, 5.374. No segundo turno, conquistou ainda mais eleitores, atingindo a marca dos 11.780 votos, contra os 5.083 de Alckmin. As pessoas pobres se sentem identificadas com o presidente Lula, para elas símbolo de uma maioria que não tem acesso a mínimos direitos de cidadania. Isso certamente foi o que fez uma animada lulista bradar aos quatro ventos – “quando o povo quer, quer mesmo” – na hora de votar no segundo turno.

“De um modo geral, a Zona da Mata sempre foi muito receptiva às frentes populares, sobretudo à figura de Miguel Arraes. Quando chega um presidente com um programa como o Bolsa-Família, já havia um ambiente histórico propício. Lula se beneficiou por causa do programa e em função de uma tradição política voltada para esse segmento”, argumenta Túlio Velho Barreto, cientista político e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco. Relembra, ainda, que, nos anos 60, quando eleito, Arraes estabeleceu o “acordo do campo”, viabilizando a conquista de direitos trabalhistas aos camponeses, antes garantidos somente aos trabalhadores urbanos, o que beneficiou toda uma geração. Considera, também, a importância do carisma de Lula, a identificação e credibilidade entre os segmentos mais pobres, os efeitos dessa política social que mexe com o concreto da vida das pessoas. Avalia o resultado das eleições como uma decisão racional, construída pouco a pouco, sem messianismos. “Tudo isso criou um caldo que terminou favorecendo Lula.”

Maria Alice Amorim é jornalista.