Nacional

Parcialidade e manipulação das informações não são suficientes para esconder o que os números mostram: o PT é visto pelo eleitorado como o partido que mais defende os pobres e a justiça social e o mais aberto à participação da população

“Eu vou dar um exemplo, uma coisa bem trágica mesmo: você conhece alguém, um cara que tomou um tiro. ‘Pô, aquele cara lá tomou um tiro! É, tomou um tiro’. Depois de um tempo, você vai falar: ‘Ah, aquela pessoa, aquela que tomou um tiro!’”
(Grupo de discussão – 18 a 24 anos, classe C/D, São Paulo, simpatizantes do PT, abril de 2006 – sobre como o PT seria lembrado no futuro, frente às denúncias de mensalão/caixa dois)

“PT é visto como sigla que tem mais corruptos”, estampou o jornal O Estado de S. Paulo (edição de 13/3/07, p. A8), com base em pesquisa nacional da Fundação Perseu Abramo (FPA), de novembro de 20061. Conforme carta do presidente da FPA, Hamilton Pereira, publicada no Fórum dos Leitores do dia seguinte, a edição da matéria foi um claro exemplo de como “a manipulação de uma informação pode não estar no que se divulga – os dados publicados estão corretos –, mas naquilo que se omite”.

De fato, o dado fora pinçado de uma bateria de imagem dos partidos políticos em que a associação do PT a corruptos (30%) aparece em nono lugar, depois da identificação do PT como o “partido que defende mais os pobres” (57%), o que “mais defende a justiça social” (42%), o “mais aberto à participação da população” (39%) e o que “tem mais potencial de crescimento no futuro” (36%), entre outros atributos positivos omitidos – e em relação aos quais nenhuma outra sigla passa de 10%.

Desinformação e parcialidade à parte – no limite, um problema dos leitores d’O Estado2 –, o debate que aqui importa é outro.

Depois de um ano e meio no centro das CPIs que investigaram as denúncias de mensalão/caixa dois, com extensa e quase sempre tendenciosa cobertura da mídia, era esperado que se realizasse o vaticínio do jovem paulistano citado na epígrafe. Talvez mais intrigante – a despeito da novidade e gravidade do dado – fosse que apenas 30% da opinião pública associasse o PT à sigla “que tem mais corruptos”.

Nesse sentido, o relevante aqui são três questões: compreender a trajetória de queda e recuperação do nível de preferência da opinião pública pelo PT; entender a coexistência de traços aparentemente antagônicos, como a identificação do partido com a defesa dos pobres e a luta por justiça social, simultaneamente a sua associação com corrupção; e subsidiar a discussão sobre os caminhos para enfrentar este último traço, antes pouco discernível, mas agora também marcante na fisionomia do PT.

Pesquisa Criterium realizada para o PT em abril de 2005 – pré-crise política – encontrara 27% de preferência partidária nacional espontânea pelo PT, contra 29% para a soma das demais 28 siglas (12% do PMDB, 7% do PSDB e 5% do PFL). Pesquisas Datafolha de agosto daquele ano e de fevereiro de 2006 – cobrindo o período mais agudo da crise – apontaram o PT com 19%, contra 24% e 20% (respectivamente em agosto e fevereiro) dos demais partidos somados. E a pesquisa da FPA de novembro último – senão pós crise, refletindo a euforia da reeleição de Lula – aferiu 29% para o PT, contra 19% dos demais partidos, repondo o PT, portanto, no patamar de preferência pré-crise.

Entre o piso no auge da crise e a reascensão pós-eleições gerais, outros levantamentos captaram a recuperação da preferência pelo PT (paralelamente ao crescimento da popularidade do governo Lula) já em março (23%) e maio (25%) de 2006, mas seguida por uma inflexão na curva e nova queda na véspera do primeiro turno (22%) e início do segundo turno (21%), sob o impacto em torno do Dossiê Vedoin e da ausência de Lula no debate da Globo. O que mais chama a atenção, porém, é que em todos os momentos em que declina a simpatia pelo PT, em vez de outra sigla ocupar esse espaço, cresce a não-preferência por qualquer partido.

Parte disso se explica pelo fato de o PT ter construído sua credibilidade pelo enraizamento social, presente já em sua origem, que se consolida entre setores populares organizados, antes relevados como interlocutores de um jogo político restrito a personalidades e surdo a suas demandas. Crescendo na oposição a políticos e partidos considerados tradicionalistas e sob a crítica incondicional dos meios de comunicação, hegemonicamente conservadores (e assim colaboradores involuntários na construção da sua imagem de autenticidade), gradualmente o PT angaria simpatizantes, cuja trajetória, ao “chegarem” a ele, já embutia o descarte dos demais partidos, vistos como elitistas, corruptos ou ultrapassados.

Essa imagem das demais principais siglas (PSDB, PFL e PMDB), há muito captável em pesquisas qualitativas, foi reiterada em três levantamentos quantitativos ao longo de 2006: diante da questão sobre o caráter novedoso ou não de práticas como “mensalão, caixa dois e dossiês”, em torno de sete em cada dez brasileiros sempre optaram pela afirmação de que “corrupção assim acontece na maioria dos governos, até mais nos governos de outros partidos”. Apenas entre 20% (março) e 26% (setembro, logo após o surgimento do Dossiê Vedoin) optaram pelas alternativas de que seriam práticas que “ocorrem principalmente nos governos do PT” ou que “aconteceram somente no governo Lula”.

Dessa má imagem prévia das demais siglas resulta que a decepção com o PT tenha deixado parcelas do eleitorado sem opção partidária – decepção no plano ético, mas um pouco também no plano das realizações do governo Lula, como se captava já antes, na forma de descontentamento com o ritmo e/ou rumo da implementação das muitas mudanças prometidas em 2002. O PSOL, que surge com potencial para angariar o apoio de ex-simpatizantes do PT que também já haviam feito a crítica dos demais partidos, se equivoca na campanha de Heloísa Helena à Presidência e, ao enfatizar mais a crítica ética que programática, confunde-se com a oposição de direita ao governo e ao PT, desperdiçando a oportunidade para se firmar como alternativa à esquerda.

Na interpretação da retomada de seu patamar de preferência, não convém perder de vista essa falta de opção ao PT, sob o risco de que se minimize a necessidade de enfrentar a questão da ética no trato das relações políticas. O mesmo perigo reside em uma leitura superficial sobre o desempenho eleitoral para a Câmara dos Deputados: o fato de o PT ter tido a maior votação nas eleições passadas (15% contra 14,6% do PMDB e 13,6% do PSDB) e de ter elegido a segunda maior bancada (83 deputados, contra 89 do PMDB) não pode ocultar que, não fossem a crise e o estrago em sua imagem, é muito provável que tivesse prosseguido na curva de crescimento observada desde 1982, nas seis eleições antecedentes, em vez de recuar de 91 para 83 eleitos. Não fosse a crise, era de esperar que o PT ultrapassasse todos os seus patamares anteriores de preferência partidária – a exemplo de municípios em que por mais de uma gestão governa com aprovação popular, como Recife (PE) e Diadema (SP), onde há muito rompeu a barreira dos 40% de preferência. Trata se de suposições plausíveis, diante do empuxo da reeleição de Lula.

Justiça social versus corrupção

Como era de esperar, a associação do PT ao “partido que tem mais políticos corruptos”, com 30% na média nacional da pesquisa de novembro de 2006 (contra 9% em abril de 2005), é bem maior entre os 9% da população com preferência pelos oposicionistas PSDB e PFL (68%) e bem menor (17%) entre os 29% de simpatizantes do PT. Entre a maioria (51%) sem preferência partidária – que, como tal, tende a responder de forma menos interessada que os que se identificam com algum partido –, 28% associam o PT à sigla com mais corruptos (7% antes da crise) e metade (50%) não indica um partido, seja por não ter opinião a respeito (28%), seja por afirmar que esse é um problema comum a todos (22%).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A idéia de que o PT é a sigla “que mais defende os pobres”, com 57% na média nacional pós-eleições (47% em abril de 2005), chega a ter o reconhecimento de metade dos que preferem PSDB e PFL (48%) e a 84% dos simpatizantes do PT. Entre os sem preferência, 46% associam o PT à defesa dos mais pobres (33% em abril/05), 20% não têm opinião e 16% afirmam que nenhuma sigla tem esse atributo. De modo semelhante, a associação do PT ao “partido que defende mais a justiça social”, com 42% na média nacional em novembro de 2006 (36% antes da crise), atinge um terço dos simpatizantes do PSDB e PFL (33%) e sobe para 73% entre os que preferem o PT. Entre os sem preferência, 27% associam o PT à defesa da justiça social (25% em abril/05), 36% não têm opinião a respeito e 11% afirmam que nenhum partido tem essa virtude.

Se por um lado era esperado que o PT ficasse marcado pelas denúncias, passando a liderar como partido com mais corruptos, o mesmo não se pode dizer do fortalecimento de seus traços identitários históricos de compromisso com os mais pobres e com a justiça social. Ao contrário, se isso ocorreu foi apesar de sua intensa associação às denúncias. O aumento da percepção da devoção do PT a essas causas vincula-se à melhoria objetiva das condições de vida das classes populares, resultante da política social e econômica do primeiro governo Lula – principal determinante de sua reeleição.

A coexistência da associação do PT a corrupção, de um lado, e a defesa dos pobres e da justiça social, de outro, reforça a constatação da primazia moral que as classes populares, sobretudo, conferem à ética da política (seus resultados) sobre a ética na política (a forma de executá-la). Nos acontecimentos recentes essa hierarquia ficou evidente: não só ajuda a entender a recuperação da preferência partidária pelo PT como forneceu elementos decisivos para explicar a popularidade e antever a solidez da (então apenas provável) reeleição de Lula.

De perto a questão mostra-se mais complexa. Combinando-se as variáveis mais defende os pobres (associada ao PT por 57%), com defende mais a justiça social (associada por 42%), cerca de um terço da opinião pública (35%) identifica simultaneamente ambos atributos no PT. Nesse grupo, apenas 22% (equivalentes a 8% da população total) associam ao mesmo tempo o PT ao partido com mais corruptos (taxa que cai para 15% entre os simpatizantes do PT e para 17% entre a maioria sem preferência partidária). Já entre os que identificam esses traços antes em outros partidos que não o PT, 49% associam o PT à sigla com mais corruptos (9% do total).

Vale dizer, a associação do PT a corrupção é tanto maior quanto menos é associado a seus atributos positivos mais expressivos, ou, ao contrário, é tanto menor quanto mais é identificado com seus principais compromissos históricos. Em suma, a coexistência de uma imagem de que abriga corruptos com a de que defende os pobres e luta por justiça social é conflituosa e claramente menor que aparentava à primeira vista.

Governabilidade com autonomia partidária

Os dados sugerem que será difícil para o PT retomar sua curva histórica de crescimento, sem enfrentar a marca de corrupção que justa ou injustamente hoje lhe carimba a imagem, não como principal atributo, mas como um traço de sua fisionomia madura, praticamente inexistente até anos recentes. Do ponto de vista interno, o 3º Congresso será decisivo para que o PT repense seus mecanismos de participação e de transparência de gestão, diminuindo o risco de que as instâncias de direção adotem táticas contrárias aos interesses estratégicos da ampla base social que historicamente representa – seja organizada, seja expressa no contingente difuso de simpatizantes que ora se recompõe –, a exemplo das práticas que levaram ao que as oposições e a mídia conseguiram cunhar como mensalão e a episódios como o do dossiê.

Do ponto de vista externo, três campos de ação merecem menção, com vistas à revitalização do partido. O próprio 3º Congresso, pela cobertura que deve receber na imprensa, terá em suas resoluções finais a oportunidade de sinalizar ao conjunto da opinião pública que o PT não ficou indiferente aos episódios que lhe agregaram a associação a corrupção. Como indicou a pesquisa de março de 2006, apenas 18% da população tomou conhecimento de alguma mudança no partido depois das denúncias de 2005 – 25% entre os simpatizantes do PT – e, mesmo informada sobre a realização do PED e da eleição de nova direção, a maioria (59%) avaliou que essas medidas ficaram aquém do necessário (57% dos petistas).

Segundo, a luta por uma reforma político-eleitoral, dentro e fora do Parlamento, poderá ter a virtude de tocar na raiz da questão, apontando como um dos pilares da corrupção não o eventual desvio moral de condutas pessoais, mas as lógicas vigentes de financiamento de campanha eleitoral e de (in)fidelidade partidária. Para tanto, é preciso considerar que no estágio atual do debate público há apoio da maioria absoluta para aumentar o grau de fidelidade partidária, mas não para o financiamento público das campanhas, como demonstrou última pesquisa nacional da FPA.

Por fim, há o desempenho do PT fora e dentro do governo Lula, considerando- se que foi em seu papel como oposição e depois nas administrações que assumiu que o partido se construiu, aos olhos da opinião pública, como alternativa real de poder. Frente à tensão entre ser e não ser governo ao mesmo tempo – entre estar na maioria dos ministérios do governo Lula, mas também como entidade que pretende atravessar muitas administrações e como tal não pode perder sua identidade com os segmentos sociais que representa –, é preciso clareza na distinção dos papéis.

Aos quadros que estão no governo cabe o máximo de esforço no desenvolvimento e sustentação de políticas públicas que venham ao encontro da construção da justiça social – como já vinham fazendo e a reeleição de Lula demonstrou. Aos que permanecem no partido, o desafio é aprofundar a autonomia do PT, reaproximando-o dos movimentos sociais – de modo a fazer contrapeso político às forças conservadoras, dando respaldo popular para o tensionamento do governo Lula para a esquerda –, e fomentar práticas de cidadania ativa, acumulando assim, por ambos os caminhos, instituições e cidadãos com capacidade para defender as conquistas para além deste e de futuros governos. Afinal, como diz a sabedoria popular, o dia de amanhã nunca se sabe.

Gustavo Venturi é doutor em Ciência Política pela USP, coordenador do Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo e diretor da Criterium Assessoria em Pesquisas