Internacional

Mesmo juntando todas as vertentes ideológicas possíveis, a esquerda na França obteve 6 pontos menos que em 2002, o pior resultado desde 1969, quando os medos entregaram a Presidência ao conservador Georges Pompidou

A eleição de Nicolas Sarkozy para presidente da França, no início de maio, foi uma das piores derrotas sofridas pela esquerda francesa nas últimas décadas. Como em estado de choque, o Partido Socialista (PS) começou uma discussão amarga e acirrada sobre as razões da débâcle de sua candidata, Ségolène Royal. A vitória, sabe-se bem, sempre tem muitos pais (e mães), enquanto a derrota amarga a solidão dos órfãos. A eleição de Sarkozy, no entanto, não pode, nem deveria, ser explicada somente pelos fenômenos mais evidentes, como a condução excessivamente pessoal da campanha eleitoral de Ségolène, suas gafes (amplificadas em demasia pela mídia, na quase totalidade engajada ao lado do candidato da direita), sua incapacidade de tomar uma posição clara sobre os assuntos mais polêmicos. Na realidade, há razões muito mais profundas, e preocupantes, que explicam o resultado das urnas.

Antes de tudo, os números. A participação eleitoral foi a mais alta dos últimos trinta anos: num país onde o voto não é obrigatório, no domingo 6 de maio foram votar 83,9% dos franceses. Sarkozy recebeu 18,9 milhões de votos, ou 53,06% dos votos válidos; Ségolène Royal teve 2 milhões de votos a menos – 16,7 milhões, equivalentes a 46,94% do total. Pode parecer uma derrota até honrável e um resultado bem melhor que o de 2002, quando o candidato do PS, Lionel Jospin, nem chegou ao segundo turno.

As cifras do primeiro turno, no entanto, contam uma história bem mais preocupante. Em 26 de abril a candidata socialista teve 25,87% dos votos (contra 31,18% de Sarkozy), enquanto os seis candidatos à sua esquerda recolheram, juntos, 10,88% dos votos. Ou seja, juntando todas as suas mais diferentes almas – socialistas, trotskistas, verdes, comunistas, militantes antiglobalização –, a esquerda francesa obteve 6 pontos menos que em 2002 (36,75%, ante 42,89%). O pior resultado desde 1969, quando, na onda da reação conservadora à revolta estudantil de maio 1968 e às poderosas greves operárias dos meses seguintes, os medos da França profunda entregaram a Presidência do país ao conservador Georges Pompidou.

A desbotada mitologia da Sorbonne ocupada pelos estudantes, dos intelectuais refinados e engajados do Quartier Latin, do país que soube acolher de braços abertos exilados e refugiados do mundo inteiro, não vai muito além do Périférique, o grande anel viário que marca os limites do município de Paris. A França verdadeira, com suas angústias e seus problemas, fica bem longe daí – e é com ela que a esquerda parece ter perdido o contato.

Sarkozy ganhou as eleições após uma campanha eleitoral abertamente de direita. Sem mediações. Ele prometeu uma “ruptura” com a história política e econômica das últimas décadas. Por um lado, uma clara virada neoliberal: chega de igualitarismo, de jornada de trabalho de 35 horas semanais (aprovada pelo governo do primeiro ministro socialista Jospin nos anos 1990), de flexibilização das horas extras, de ajuda às empresas; pelo endurecimento das regras para a concessão do seguro-desemprego, por melhores relações com os Estados Unidos. E, pelo lado mais simbólico, um apelo aos piores instintos do país: mão dura contra a criminalidade, exaltação da “lei e ordem” contra a nefasta “herança de 1968”, limitação da imigração (só permitindo a entrada no país de trabalhadores úteis à economia francesa), defesa da identidade nacional ameaçada.

Principalmente nesse segundo aspecto, Sarkozy se afirmou como o rosto apresentável da direita: na prática, apropriou-se, tornando-o aceitável e “civilizado”, do discurso reacionário de Jean-Marie Le Pen, o líder neofascista e xenófobo do Front National. Não por acaso, no primeiro turno Le Pen só alcançou 10,44% dos votos: 5% a menos que a média dos últimos vinte anos e menos ainda dos 16,86% alcançados em 2002, quando chegou ao segundo turno contra o presidente Jacques Chirac. O pior é que, há anos, a agenda “lei e ordem” vem permeando boa parte do espectro político, incluindo uma parcela do PS, e a própria Ségolène Royal.

Não se trata de um fenômeno exclusivamente francês. Em toda a Europa vem crescendo há tempos um sentimento de insegurança em relação ao futuro. De forma confusa, a maioria dos europeus percebe que seu padrão de vida está  ameaçado pela globalização e pela crise do Estado de bem-estar social. Os mais jovens sabem que, fora alguns sortudos ou privilegiados, não terão as mesmas oportunidades que seus pais: para eles, empregos estáveis e casa própria restarão, com toda a probabilidade, sonhos distantes. Os mais velhos temem por seu emprego, por sua aposentadoria, por sua assistência médica. E, como sempre, a resposta mais fácil à escalada do medo é buscar os bodes expiatórios mais óbvios (começando pelos imigrantes, que “roubam o trabalho”, “que são todos delinqüentes”) e confiar as esperanças e as frustrações às mãos de algum homem forte, que poderá tirar do colete soluções milagrosas.

A esquerda européia se encontra como paralisada desde a queda do Muro de Berlim, em 1989. Com o fim do “socialismo real” e a aceleração dos processos de globalização, que diminuíram fortemente as margens de autonomia dos processos econômicos e políticos em nível nacional, todos os partidos de esquerda ficaram desprovidos de suas velhas bandeiras: a busca da igualdade social, a construção de um Estado de bem-estar social, a expansão dos direitos dos trabalhadores. De forma geral, a esquerda européia continua, até hoje, incapaz de encontrar novos rumos. Pior ainda, desencadeou- se uma flagelação autocrítica, pondo em discussão todas as certezas do passado e indo ao encalço da direita em seu próprio terreno: o respeito à autoridade, a necessidade de premiar a competição, a subalternidade aos interesses do grande capital.

Como resultado, uma parcela significativa do antigo voto de esquerda acabou migrando para a direita. Aconteceu nas periferias operárias, onde os votos do outrora poderoso Partido Comunista minguaram a favor do Front National de Le Pen – este ano, a candidata do PCF chegou ao mínimo histórico nas eleições presidenciais: mísero 1,92%. E aconteceu na Itália, na Alemanha, na Áustria, na Holanda...

Talvez outro candidato socialista, pessoalmente e politicamente mais sólido, pudesse ter derrotado Sarkozy. Passadas poucas horas do fechamento das urnas eleitorais, no Partido Socialista começou o acerto de contas interno. Velhos e influentes dirigentes como Dominique Strauss-Kahn e Laurent Fabius – batizados, pouco carinhosamente, de “elefantes” –, que haviam sido postos à margem na condução da campanha eleitoral, começaram a pedir, de forma mais ou menos explícita, a cabeça da candidata derrotada e, com algumas ressalvas, também a do primeiro-secretário (o dirigente máximo) do partido, François Hollande, que de Ségolène Royal, na vida privada, é o companheiro e pai de seus  quatro filhos. Uma aparência de unidade interna foi salvaguardada só em vista das eleições legislativas de 10 e 17 de junho próximo, que vão determinar a composição do Congresso com o qual o novo presidente trabalhará.

Por outro lado, com sua personalidade agressiva e arrogante, Sarkozy elegeu-se ao preço de uma profunda divisão do país. Não existem meios termos a seu respeito: quem não o ama o detesta. Diante dessa situação de polarização, o futuro político da França dependerá das escolhas e da habilidade do novo presidente. Se Sarkozy decidir ir logo ao enfrentamento, na tentativa de realizar o que prometeu na campanha eleitoral, poderá defrontar com grandes movimentos de protesto, como os que sacudiram o país nos últimos anos (a revolta das periferias, as grandes manifestações dos estudantes etc.). Os primeiros movimentos de Sarkozy parecem indicar alguma prudência. Seus homens vazaram à imprensa os possíveis nomes de políticos socialistas que poderiam ser convidados para assumir ministérios no novo governo – o que serviu para jogar ainda mais gasolina na briga interna do PS.

Em todos os casos, eventuais protestos populares e as greves, por importantes que sejam, não resolvem o problema de identidade e de perspectiva da esquerda. Na noite da eleição, o diretor do jornal Le Monde, Jean-Marie Colombani, próximo de Sarkozy (apesar de ter declarado seu voto na candidata socialista), comentou que “o voto foi de direita, porque a França foi para a direita”. Ele provavelmente tem razão. Mas também é certo que a esquerda não soube apresentar uma alternativa à altura. Esse é o verdadeiro desafio para o futuro, e não somente na França.

Giancarlo Summa é jornalista, trabalhou para Carta Capital, l’Unità, Reuters, Radiobrás, entre outros, e foi assessor nas campanhas de Lula em 2002 e 2006. De 2003 a 2007 foi assessor de comunicação na Europa do BID. Concluiu mestrado em Estudos Latino-Americanos na Universidade Paris III – Sorbonne-Nouvelle