Cultura

Militante dedicada e apaixonada pela liberdade, cerrou fileiras em diversas manifestações contra as várias formas que a opressão pode tomar e ofereceu sua garra existencialista a essas lutas

A passagem do centenário de nascimento de Simone de Beauvoir (1908-86) tem suscitado a promessa de celebrações, cuja amplitude, todavia, ainda não dá para aquilatar. Tanto ela como Jean-Paul Sartre parecem não mais atrair os holofotes tanto quanto no passado: afora as efemérides, há muito escassearam cogitações e debates a seu respeito, seja em publicações, seja na universidade. E pensar que já foram figuras de proa do universo intelectual, posição que ocuparam durante décadas.

Ambos fizeram parte da talentosa geração que surgiu na França do pós-guerra e se congregou na revista Temps Modernes, dirigida por Sartre. Co-fundadores foram Merleau-Ponty e Raymond Aron, que depois abandonariam a revista e o grupo, tomando outros rumos, inclusive políticos. O grupo daria as cartas por longo tempo. A essa altura, Sartre já era o famoso autor de  O Ser e O Nada (1943), obra inaugural do existencialismo (“A existência precede a essência”), escola filosófica que fundou influenciado pela fenomenologia alemã de Husserl e Heidegger.

Simone de Beauvoir soube trilhar um caminho próprio e vincadamente original. E isso, mesmo no seio de tão brilhante cenáculo, integrado por intelectuais militantes de esquerda, mais existencialistas no imediato pós-guerra, mais gauchistes na seqüência, que deixariam uma marca coletiva na história do pensamento e na ação de seu tempo. E por esse motivo faz jus à identificação de um perfil singular que se destaca daquele – múltiplo – do círculo de convivência a que pertenceu, do qual tanto recebeu influências e ao qual tanto influenciou.

Vale lembrar que, antes de seus escritos, nada havia para orientar as mulheres em busca de esclarecimento quanto a sua condição e à diferença que essa condição implicava. O Segundo Sexo (1949) fez furor, ao estudar a mulher por meio da história, da literatura e da mitologia, como o Outro criado pelo homem, que impõe a norma e condena a mulher à alienação. Sua célebre definição – “Não se nasce mulher: torna-se” – designa o feminino como gênero, e não como sexo. Foi assim que acabou envolvida tardiamente no paradoxo que lhe conferiu a singularidade de ser ao mesmo tempo precursora e já monumento do movimento feminista deflagrado nos anos 1970, que contou com sua adesão. Porém se não fosse ela, nem saberíamos que certos assuntos eram dignos de reflexão. Porque, conforme era intuído mas não formulado, só os assuntos masculinos eram universais e constituíam matéria nobre.

Quanto ao mais, dentre os muitíssimos lances instigantes e provocadores tanto de sua vida quanto de sua obra, não ocupa o último lugar um ziguezaguear entre a linha romanesca e a linha testemunhal. Às vezes não é fácil para o leitor comutar o pacto autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa. A pergunta que se coloca habitualmente, a propósito de romances, visa apurar o quanto eles absorvem de personalidades e incidentes, transfigurando-os; a propósito de autobiografias, o quanto elas mentem e desmentem a história de vida. Simplório demais para avaliar Simone de Beauvoir. Em sua obra, podemos ler par a par os romances e a autobiografia, que recortam sucessivamente o mesmo conjunto de eventos, sem que possamos decidir seja o que for: nem a ficção é tão autobiográfica nem a autobiografia é tão ficcional.

O fato de ter se tornado a posteriori e ao que parece um tanto surpresa a precursora indisputada do feminismo dos anos 1970 – seu livro é de 1949! – obscureceu um pouco, e ainda obscurece, o valor do restante de sua obra.

Seja a vertente tratado, de que não só O Segundo Sexo mas também A Velhice são protótipos, pelo alcance da pesquisa e pelo rigor da reflexão.

Seja a vertente autobiográfica, a qual, já começando alto com as Memórias de Uma Moça Bem-Comportada, passando por A Força da Idade e A Força das Coisas, chega até aquele estupendo A Cerimônia do Adeus. Este último retrata com minúcia naturalista os anos finais de Sartre, a penosa decadência física e a morte em 1980: e por isso mesmo escandalizou tanta gente. Cabem nessa vertente seus escritos de viagem e os textos de intervenção política.

Seja ainda a vertente ficcional, em que gostava de experimentar a mão, afeiçoando romances muito diferentes uns dos outros. Mas dentre estes podemos destacar os que, mesmo não as tematizando, perscrutam personagens femininas colocadas no embaraço daquilo que o destino lhes oferece – destino de mulher –, desde o primeiro de todos, A Convidada, até os vários ulteriores. Ou tarefas ambiciosas como o painel da história mundial visto por meio de um homem que recebeu o dom da imortalidade, como em Todos os Homens São Mortais. Ou então aquele em que faz a radiografia, lúcida e impiedosa, da renomada geração intelectual a que pertenceu, espécie de que Os Mandarins ainda não encontrou igual. Para avaliar sua relevância, hoje demasiado distante para nós e perdida nas brumas do tempo, esse romance foi agraciado em 1954 com o Goncourt, o mais importante prêmio literário francês, que no passado distinguira Marcel Proust.

E, como ela mesma diria no título de um de seus livros, contas feitas (Tout Compte Fait, na tradução Balanço Final), é impossível sonegar sua dedicação de militante. Não se furtou às causas de seu tempo, hipotecando todo o seu prestígio ao se colocar na dianteira de manifestações contra as várias formas que a opressão pode tomar, a começar pela colonialista, e participando de todas as demais desde que fossem emancipatórias, como ocorreu com a causa das mulheres, da qual assentou um alicerce. Militou contra a guerra da Argélia, em que a ignomínia predominou na conduta de seu país; denunciou a tortura praticada pelo exército francês; e enfrentou com galhardia ameaças e perseguições. Mais tarde, esposaria a defesa do Vietnã, invadido pelos Estados Unidos. Em 1967, juntamente com Sartre, integrou o Tribunal Bertrand Russell, que apurou os crimes de guerra cometidos pela potência imperialista contra o pequeno país asiático. Visitou Cuba e prestou todo o seu apoio a Fidel Castro e à Revolução Cubana. Nessa paixão pela liberdade mostrou a garra existencialista.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, integra o Conselho de Redação de TD