Internacional

Ações e omissões que o antecederam e o sucederam produzem uma diáspora interna de centenas de milhares de americanos

No histórico bairro negro do Lower Ninth Ward, situado a leste do canal de drenagem que conecta o Rio Mississippi e o imenso Lago Pontchartrain – os dois corpos de água que limitam a cidade de Nova Orleans pelo sul e pelo norte –, a história do sr. J.R. não é tão original, exceto pelo extremo de tragicidade. Em 26 de agosto de 2005, sexta-feira, ouvira no rádio que o furacão Katrina poderia atingir a categoria 5, a mais alta. A desocupação da cidade era fortemente recomendada. Mas aos 65 anos de idade, sem automóvel, cartão de crédito ou dinheiro poupado, e com a esposa numa cadeira de rodas, a saída era quase impossível. O sr. J.R. decide permanecer e enfrentar a tempestade, a exemplo do que sempre fizera. Apesar de violento, o Katrina não causou maiores destruições além das esperadas quedas de árvores e danos à fiação elétrica. Com estoques de comida e água, a família se sentia preparada. Na segunda-feira, a ruptura dos diques inundou em poucas horas essa que é umas das regiões mais baixas de Nova Orleans. A subida rápida da água no Lower Ninth Ward forçou J.R. a tirar a mulher da cadeira de rodas, mas mesmo seu considerável 1,90 metro não foi suficiente para evitar a tragédia. J.R. vê sua amada morrer submersa depois de escapar de seus braços. Pior de tudo, sobrevive a ela.

Só as histórias do Katrina como a de J.R. que eu, morador de Nova Orleans desde 1999, ouvi ou reconstruí, comporiam um panorama aterrador, que um conhecedor da democracia americana contemplaria estupefato. Constatar que a caracterização do Katrina como “tragédia natural” é falsa e simplificadora não requer reviver teorias conspiratórias inspiradas na enchente de 1927 (quando, sim, dinamitou-se um dique com intenções genocidas)1. A inundação, destruição, diáspora e confisco vividos a partir de 2005 pela população pobre de Nova Orleans,especialmente sua maioria negra, se remontam a causas que incluem o desfinanciamento federal da manutenção de diques, o descaso administrativo, o aparelhamento de cargos por trambiqueiros da turma de Bush e, depois da ruptura dos diques, uma deliberada, criminosa negligência. Não o “fenômeno natural Katrina”, mas ações e omissões humanas, políticas que o antecedem e o sucedem produzem uma diáspora interna de centenas de milhares de americanos, maciço confisco de terras, quase limpeza étnica e destruição de uma das cidades mais originais do país, a Nova Orleans excêntrica e antipuritana onde Bush havia amargado uma derrota por 82 a 18, a cidade multicultural, negra, francesa, caribenha, mulata, hispânica, católica e bruxa que o fundamentalismo religioso do Partido Republicano e o conservadorismo contemporâneo nos EUA sempre viram com uma curiosa mescla de horror e inveja. A cronologia de alguns fatos políticos coloca-o em contexto.

<--break->Em 12 de janeiro de 2001, o Houston Chronicle citava uma avaliação da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (Fema) de que um furacão em Nova Orleans era uma das catástrofes mais prováveis nos EUA, junto com um terremoto em San Francisco e, profeticamente, um ataque terrorista a NovaYork 2. Em 2002, o Times-Picayunne, de Nova Orleans, realizou uma série de reportagens mostrando o cenário de uma ruptura dos diques e concluindo que “uma grande população de residentes de baixa renda que não possuem automóvel dependeria de um sistema de emergência pública não testado para a desocupação”. Em março de 2003 a Fema foi rebaixada de ministério (cabinet level) a mera seção no Departamento de Segurança Interna, já redesenhado em função da “guerra ao terrorismo"3. As funções de preparação e planejamento da unidade federal a cargo das emergências passam para um novo escritório. A Fema passa a ser responsável só por “resposta e recuperação”4. No mesmo ano de 2003, Bush nomeia, para a chefia da Fema, Mike Brown, cuja única experiência administrativa concluíra com renúncia forçada devido ao desastre deixado por ele na Associação Internacional de Cavalos Árabes 5. Brown vinha suceder Joe Allbaugh, outro sem-experiência nomeado por Bush, que deixara o cargo para criar uma firma de consultoria para empresas que fazem negócios no Iraque 6. No verão de 2004, coincidindo com estudos e previsões do cenário macabro em Nova Orleans no caso de furacão seguido de ruptura dos diques, a Fema recusa os pedidos da cidade de financiamento para mitigar desastres7.

A recusa é politicamente carregada e adquire todo o seu sentido quando lembramos que os diques de Nova Orleans são de responsabilidade exclusivamente federal, administrados e construídos que são pelo Corpo de Engenharia do Exército. Em 2004, o gerente da zona de inundação do condado de Jefferson, vizinha a Nova Orleans, Tom Rodrigue, declara: “Imaginar-se-ia que receberíamos consideração máxima. Estamos mais que qualificados”8. Ainda no Jefferson Parish, em 2004, o chefe de gerenciamento de emergências, Walter Maestri, comentava: “Move-se dinheiro para segurança interna e para a guerra no Iraque, e suponho que nós pagamos o preço”. Quando, em 25 de agosto de 2005, o Katrina recebeu denominação de furacão categoria 4, o plano de prevenção de catástrofes do governo Bush já havia sido reduzido ao conceito de terrorismo e à manipulação em virtude da guerra do Iraque. Enquanto isso, nas agências de preparação de emergências, figuras do tráfico de influência e da negociata, como Mike Brown, ocupavam os postos mais altos.

Depois de uma passagem relativamente tranqüila do furacão, em 29 de agosto romperam-se diques em Nova Orleans, especificamente no Canal Industrial e no Canal da Rua Londres. Já em 30 de agosto, entulhados num estádio sem água nem comida, 20 mil nova-orleanianos começam a passar pelo horror do Superdome, onde ocorre um incontável número de estupros, tiroteios e mortes por homicídio ou suicídio9. O mundo começa a se perguntar: onde estão os helicópteros dessa tão poderosa nação, que podem ir ao Iraque e não chegam a Nova Orleans? Enquanto circulavam as cenas de cadáveres boiando e de massas humanas de refugiados presos na própria cidade, ninguém menos que o secretário de Segurança Doméstica – responsável pelo ministério para dentro do qual se movera a preparação para emergências – declarava que não sabia que milhares de pessoas estavam aglomeradas sem água ou comida do lado de fora do Centro de Convenções, “72 horas depois que o fato era de conhecimento do planeta”10. Em 2 de setembro, o diretor da Fema, o trambiqueiro Mike Brown, alude à responsabilidade das vítimas dizendo “não entender” por que as pessoas haviam ficado na cidade. Seguindo-se ao inédito fracasso assistencial do estado, Bush, de férias, solta seu famoso Brownie is doing a great job11.

Ante a proliferação de saques – boa parte dos quais absolutamente justificáveis pela situação de vida ou morte em que se encontrava a população depois de alguns dias –, o Exército americano, em texto oficial, faz referência ao início das operações de combate em Nova Orleans, qualificando os cidadãos americanos lá presentes como a insurgência12. Em 3 de setembro, centenas de pessoas ainda eram evacuadas do Superdome, uma semana inteira após a chegada do furacão13. O mundo descobre que incontáveis vítimas, todas negras, tentaram atravessar a ponte que liga Nova Orleans a Gretna, os subúrbios majoritariamente brancos a oeste do Rio Mississippi, e foram mandados de volta ao inferno da inundação pela própria polícia, sob a mira de revólveres e espingardas.

<--break->Dos 500 mil habitantes da área metropolitana de Nova Orleans, pelo menos 200 mil ainda não haviam voltado dois anos depois, constituindo uma diáspora inédita na história dos EUA. Enquanto antes do furacão 67% da cidade era composta por negros, estima-se que hoje os afro-americanos não perfazem mais que 30% da população.

Inicia-se um processo de confisco que inclui a fixação de limites temporais para a reconstrução (sob risco de perda de direitos), a impunidade e a autonomia para as companhias de seguros, a concentração de verbas nas mãos de empreiteiras e a composição de um comitê de reconstrução dominado pelos interesses da especulação imobiliária, da indústria dos seguros e do capital financeiro. A faixa de terra que se estende ao longo do Rio Mississippi – a parcela não inundada do território, uptown a oeste e downtown a leste – experimenta um renascimento, com preços inflacionados e mão-de-obra latina. Na região residencial que bordeia o Lago Pontchartrain, inundada mas habitada pela classe média branca, a liberação de verbas e a reconstrução seguem em velocidade muito superior à do resto da cidade. Em mid-city, região majoritariamente de classe trabalhadora, os sistemas escolar e hospitalar continuam em colapso e há locais onde alguma vizinhança vai se recompondo, há outros em que não.

Em toda a cidade proliferam as histórias de horror burocrático e descaso na liberação de trailers pelo governo federal ou no pagamento esperado das seguradoras. O retorno da população negra ocorre em números reduzidos, e parte dela se dá conta de que terá não só de se reerguer por conta própria, mas também enfrentar obstáculos políticos para recuperar direitos básicos. Uma das instâncias dessa luta se deu em abril e maio de 2006, nos dois turnos da eleição para prefeito, talvez a primeira da história dos EUA em que a maioria dos eleitores habilitados se encontrava fora da cidade. Tanto Mitch Landrieu, branco e de oposição, como Ray Nagin, negro e de situação (e ali reeleito), eram candidatos conservadores e pouco comprometidos com a população mais pobre. A luta que interessou se deu não tanto por uma candidatura, mas ao redor do direito mesmo de votar. Os negros terminaram sendo 55% dos 113.500 votantes e optando por Nagin em 80%. O surpreendente é que entre os brancos (44% do eleitorado) o voto em Landrieu parou nos 80%. Os cruciais 20% que teve Nagin entre os brancos se devem, em parte, a um curioso apoio de um setor dos republicanos de Louisiana que não detestam Nagin tanto quanto detestam a família Landrieu, da oligarquia democrata local14. Mesmo com o fracasso durante o Katrina, Nagin se reelege. Sua  figura é um contraditório compósito em que se refletem aspirações legítimas da população local, submetidas, no entanto, a um modelo capitalista selvagem, herdado da sua experiência como empresário de TV a cabo. Num contexto de descapitalização da cidade e de controle da política estadual por máfias e oligarquias, um prefeito como Nagin reduz-se a ser pouco mais que um refém. Mas não foi pequeno o poder simbólico de reeleger o negro que havia dito “poucas e boas” para Bush e que bem ou mal esteve o tempo todo em Nova Orleans durante a tragédia.

A população negra, base histórica da cultura e do modo de vida nova-orleanianos, se divide hoje, grosso modo, em 1) uma minoria de classes trabalhadora e média intactas, em áreas não inundadas como o Tremé, vizinho do French Quarter e mais antigo bairro negro da América do Norte; 2) uma pequena classe média em uptown, mid-city, e mesmo em áreas mais atingidas como Nova Orleans leste, que foram capazes de voltar à cidade e se restabelecer; 3) uma imensa massa de excluídos que, desprovidos das únicas posses que tinham (mesmo quando estas incluíam imóveis), lutam pelo direito básico de voltar para o lugar onde sempre viveram todos os seus. Ali, na tragédia dessa massa de quase duas centenas de milhares de americanos, se deixa ver o fracasso moral, ético, humano do modelo de gerenciamento da era Bush.

<--break->Hoje é possível visitar Nova Orleans, ater-se a algumas regiões e passar pela cidade sem perceber os rastros do que ela foi vítima. Ao longo do Rio Mississippi, tanto na uptown mais moderna como na downtown histórica, fervilha uma vida cultural que inclui oferta musical comparável aos níveis pré-Katrina, sempre com 20 a 40 shows dignos de nota mesmo em começo de semana. Já está restabelecida a tradição popular das secondlines, desfiles musicais ao longo da cidade no rastro de uma banda de metais (brass band), em verdadeiras tomadas rituais, festeiras, das ruas. Também há, na contrapartida da efervescência cultural, a diáspora de refugiados, o colapso dos sistemas hospitalar e escolar, a dura realidade das drogas e da violência, o confisco imobiliário contra o povo pobre da cidade, a superexploração da nova mão-de-obra imigrante.

O pós-catástrofe de Nova Orleans é produto de uma interação complexa entre esses vários fatores. Se, em algum momento, temeu-se até mesmo uma “morte cultural” da cidade, a ainda pequena porcentagem de seu povo que voltou já pôde demonstrar que o medo era infundado. Se, ao longo das lutas políticas ao redor da reconstrução, chegou a cogitar-se uma cidade “parque temático”, com a museificação da cultura local numa smaller Nova Orleans (“menor” aqui sendo um eufemismo, no dialeto nova-orleaniano de hoje, para “mais branco e menos negro”), já é visível que há forças populares dispostas a resistir, ainda que sem muita representação no corrupto sistema político de Louisiana. Quantos levarão essa batalha, e por quanto tempo, em condições de diáspora e exílio é uma variável fundamental na pugna pelo futuro da mais musical, afro-atlântica, caribenha e “brasileira” de todas as cidades norte-americanas. Que ela se dê em condições tão duras é um testemunho eloqüente de um duro golpe à democracia americana e um retumbante fracasso do modelo de Estado imposto na era Bush, ancorado em traficantes de armas e de petróleo, máfias de seguros e organizações fundamentalistas, todos eles hostis, por boas razões, ao que poderíamos chamar a alma de Nova Orleans.

Idelber Avelar é professor de Literatura na Universidade de Tulane, Nova Orleans, escreve sobre política e cultura no blog O Biscoito Fino e a Massa (http://idelberavelar.com)