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Após seguidos ciclos de exploração, será que Rondônia resiste a mais uma onda desenvolvimentista?

As baixadas amazônica e paraguaia, contínuas com a do oceano, aproximam-se muito a oeste: entre o Aguapeí, afluente do Jauro, tributário do Paraguai, e o Alegre, afluente do Guaporé, um dos formadores do Madeira, inseremse apenas poucos quilômetros de distância. O governo português pensou em cortar este varadouro por um canal, que levaria do Prata ao Amazonas, e deste, aproveitando o Caciquieri, ao Orinoco, à ilha de Trindade, ao mar das Antilhas. A obra começada parou logo e parece inexeqüível, porque uma língua de terra bastante alta aparece e se estende até Chiquitos, na Bolívia, produzindo um desnivelamento pouco favorável.”

J. Capistrano de Abreu

Por sua posição geográfica, a região hoje chamada Rondônia tem sido alvo freqüente de experiências desenvolvimentistas, ao longo de sua história.

Os obstáculos naturais do Madeirão não são mais problema. Rodovias e ferrovias eliminam os obstáculos entre as bacias do Prata e do Amazonas. Fazer eclusas e ainda produzir energia com o máximo de lucro aos investidores é parte do que a tecnologia disponível pode proporcionar ao Brasil e à América do Sul. Entretanto, sem os devidos cuidados, pode transformar-se em mais um pesadelo ou mais um monumento ao desperdício, sob a vocação predatória do capitalismo.

O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) pretende estimular investimentos privados e reduzir desigualdades regionais, além de remover obstáculos ao crescimento − sejam eles de natureza burocrática, administrativa, normativa, jurídica ou legislativa.

Porém, como tudo o que há na terra tem prazo de validade, haverá garantias técnicas e jurídicas de reparação ágil e eficaz às possíveis falhas tecnológicas no complexo hidrelétrico sobre o Rio Madeira?

Que não se repitam os registros típicos dos ciclos de ocupação branca nessa região, marcados por heroísmos e erros monumentais −construção do Forte Príncipe da Beira, no século 17; chegada das bandeiras e a cruz na cachoeira de Santo Antônio; construção da estrada de ferro Madeira−Mamoré, no início do século 20; ciclo da borracha; Expedição Rondon (linhas telegráficas); Caravana Ford (década de 1950); exploração da cassiterita (estanho); abertura da rodovia BR-364; extração de madeira; garimpo de ouro no Rio Madeira; borracha, madeira e diamantes nas terras do povo cintalarga. Todas essas ações produziram fortunas para algumas famílias, em ciclos de espoliação das comunidades nativas e de degradação ambiental que, ao se concluírem, deixam para Rondônia apenas um rastro de destruição e miséria.

Fragilizada por seguidos ciclos de esgotamento de suas riquezas naturais, até quando Rondônia resistirá? Será que resistirá a mais uma onda desenvolvimentista? Quem sabe a próxima venha com a produção de soja e etanol − projeto proposto e defendido a todo custo por lobistas e grandes produtores agrícolas, de olho no mercado internacional. Será que os governos que “embarcam de cabeça” nesses projetos sabem com certeza aonde isso vai dar?! Contudo, a justificativa é sempre a mesma: “Destruímos, mas fazemos o progresso”. Hidrelétricas no Madeira, hidrovia do Guaporé, boi, soja, cana têm-se firmado como paradigmas do desenvolvimento econômico predatório.

Rondônia tem 9 milhões de hectares irregularmente ocupados por fazendeiros e madeireiros, que o Incra não consegue retomar e destinar à reforma agrária. O zoneamento socioambiental do estado é um avanço importante, mas não se sustenta sem fiscalização e o devido monitoramento. Rondônia demanda um modelo de reforma agrária que respeite as vocações locais, que priorize a agricultura familiar tradicional e sustentável, apoiada por concepções e tecnologias modernas, de modo a agregar valor, diversificar e ampliar a produção dos pequenos, fixando-os na terra com dignidade.

Ocupar o oeste mato-grossense e o sul de Rondônia com monoculturas de grãos é produzir milhares de hectares de deserto em futuro bem próximo. Antes de incentivar novos projetos para a região, é necessário reconhecer, discutir e avaliar o esvaziamento e o empobrecimento de cidades que foram berço de culturas indígenas importantes na Chapada dos Parecis, de remanescentes quilombolas do Vale do Guaporé e de trabalhadores rurais em luta pela terra − hoje reconcentrada em mãos de alguns poucos empresários, produzindo carne e grãos para exportação.

Em ecossistemas e topografias que exigem cuidados especiais, estão os municípios de Vilhena, Cabixi, Cerejeiras, Corumbiara, Chupinguaia, Pimenta Bueno, Primavera e Parecis, em Rondônia. Vila Bela da Santíssima Trindade, Comodoro e Pontes e Lacerda, em Mato Grosso, estão ligados às bacias hidrográficas e coletoras de nossas águas (principalmente dos rios Machado, Roosevelt, Guaporé e Madeira) na área de transição entre o cerrado e a floresta tropical amazônica. Será esse o local adequado para a monocultora de soja na região?! Esses rios carregam resíduos de milhões de toneladas de defensivos químicos usados nas lavouras e pastagens, causando assoreamento e muitos outros problemas ambientais gravíssimos já detectados − resultado desse perverso modelo de economia regional.

Produzir conforme a demanda do mercado interno e externo é um princípio básico da economia e deve merecer a atenção responsável dos gestores públicos e privados. Mas a sociedade tem o direito e a obrigação de conhecer o custo social e ambiental disso. Paradigmas podem durar muito tempo, mas passam. Governos passam. As gerações passam. E a vida? Nessa caótica corrida, ínfima minoria desfruta nababescamente dos resultados financeiros, enquanto a maioria “desempoderada” paga o prejuízo nosso de cada dia.

As atividades econômicas predatórias em Rondônia foram e continuam sendo altamente subsidiadas pelos governos locais. A pecuária seria economicamente inviável se não contasse com os programas governamentais de crédito e subsídios. O simples levantamento dos custos ambientais dessas atividades, no cerrado e na floresta rondonienses, demonstraria facilmente sua impropriedade. O financiamento do Plano Agropecuário e Florestal de Rondônia (Planafloro), por meio do BID, é um exemplo disso.

A lucratividade de curto prazo é a outra face da deliberada negligência com os ecossistemas de Rondônia − onde a madeira é a principal fonte de financiamento das atividades agropastoris. No dorso do estado (BR-364) já há municípios 100% desmatados e 40% de suas terras reconcentradas para a produção de carne ou grão. Essa situação intensifica a migração interna por novas fronteiras para a exploração madeireira e agropecuária, com forte pressão sobre reservas ambientais, parques, áreas indígenas e extrativistas − confirmando que o modelo de desenvolvimento adotado é economicamente limitado e socialmente pernicioso.

Haverá um tempo para opções sociais, ambientais e econômicas sustentáveis em Rondônia? A considerar o comportamento e a composição dos poderes públicos locais e estaduais − a cada eleição, mais patronais, desenvolvimentistas e conservadores −, não haverá esse dia! Até este momento, a cultura político-econômica produz ganhos privados significativos, deixando para as gerações pobres do futuro uma dívida socioambiental impagável.

É tarefa do PT e dos movimentos sociais locais equilibrar a balança ideológica quando governos tendem a ceder unilateralmente aos interesses dos empreendedores. Por outro lado, a legislação ambiental brasileira − uma das mais avançadas do mundo contemporâneo − depende de coragem e percepção política para ser aplicada, constituindo-se, nesta conjuntura, em intransferível responsabilidade partidária.

Da Resolução do Diretório Nacional do PT, de 20 de abril de 2007, consta textualmente: Cabe ao governo e aos artidos da coalizão viabilizar legislativa e administrativamente o PAC. Cabe ao PT e aos partidos de esquerda lutar para que o PAC resulte em desenvolvimento com ampliação das políticas públicas, ambientalmente sustentáveis, articulado com o propósito de democratização política, soberania nacional e integração continental. Os resultados positivos derivados do PAC podem ser capitalizados por diferentes setores políticos e sociais. Por isso, as repercussões políticas do PAC dependerão, em parte, do debate político-ideológico acerca de seus pressupostos; bem como da luta político-social em torno de quem serão os beneficiados. O PT buscará o diálogo com os setores ligados ao campo popular que são atingidos ou beneficiados direta ou indiretamente pelo PAC.

É paradigma de desenvolvimento ou geopolítica criar, para o Brasil, acesso ao Pacífico pelo porto de Bayovar, no Peru? Causando arrepios aos americanos, as grandes obras − das quais ninguém, até o momento, conhece o custo final −, planejadas sobre a lógica econômica da Iniciativa de Infra-Estrutura Regional Sul- Americana (IIRSA, entidade criada na cúpula de Brasília, em 2000, para coordenar as ações para a integração sul-americana, que Bush quer controlar via BID), criam corredores de desenvolvimento que atravessam Goiás, Mato Grosso, Rondônia, Acre e Peru. Tudo isso pode ser fantástico, mas as comunidades não estão dispostas a pagar o custo econômico, social e ambiental. Os esclarecimentos, portanto, são indispensáveis e inadiáveis.

Devemos fazer o que está escrito? Integração da infra-estrutura, energia e comunicação; formação de bloco e proteção mútua contra eventos externos; aumento de competitividade dos produtos locais; interiorização do desenvolvimento; combate às drogas ilícitas e crimes conexos.

A lógica: a integração das hidrovias Orinoco−Amazonas−Prata; descompressão das grandes cidades; fim da energia térmica; diversificar a agricultura no Centro-Oeste; integração Brasil−Bolívia−Peru; integração interoceânica Atlântico−Pacífico.

Está escrito: transportar a soja US$ 30 mais barato por tonelada; encurtar o caminho em 5.793.640 quilômetros até a China (“boa intenção”); de quebra, gerar 6.450 MW de energia limpa (é o que o capitalismo excludente vem planejando há anos); a hidrovia Guaporé−Mamoré−Madeira, para escoar 28 milhões de toneladas de soja por ano, produzidas no oeste de MT e sul de Rondônia (previsão até 2015).

É essa a vocação do Rio Madeira? Produzir energia e transportar soja? É a verdade Eletrobrás?

Ninguém é ou será contra projetos estratégicos que cumpram seus objetivos com responsabilidade econômica, social e ambiental. Só não podemos ser co-responsáveis por um gasto de dezenas de bilhões de reais sem as garantias de que, daqui a alguns anos, essa interferência não criará problemas irreparáveis ao meio ambiente por todo o continente, com mais um Forte Príncipe da Beira e uma Estrada de Ferro Madeira−Mamoré.

Certamente um dos projetos mais promissores contemplados no IIRSA é o Complexo do Madeira, formado por duas hidrelétricas (6.450 MW) no lado brasileiro e extensa rede hidroviária (cerca de 4.225 quilômetros no Rio Madeira e afluentes) no coração da América do Sul.

Que venha a energia barata e limpa; que venha a integração regional; que venha o modal hidroviário; que venham a soja e o etanol; que venha o braço esquerdo da Ferronorte. Mas venham com respeito! Respeitando a cultura regional, respeitando o índio, respeitando o quilombola, respeitando os ribeirinhos, respeitando o ecossistema. Cumpra-se a função econômica, social e ambiental destas terras e rios. Que se promovam o bem-estar e a igualdade sem deixar em chagas as veias expostas da Amazônia.

Já que esses megaprojetos são inevitáveis, que não fique para depois a aplicação do receituário capaz de minimizar os seus efeitos colaterais (ver quadro).

A humanidade é parte de um vasto universo em evolução. A Terra, nosso lar, está viva com uma comunidade de vida única. As forças da natureza fazem da existência uma aventura exigente e incerta, mas a Terra providenciou as condições essenciais para a evolução da vida. A capacidade de recuperação da comunidade da vida e o bem-estar da humanidade dependem da preservação de uma biosfera saudável com todos os seus sistemas ecológicos, uma rica variedade de plantas e animais, solos férteis, águas puras e ar limpo. O meio ambiente global com seus recursos finitos é uma preocupação comum de todas as pessoas. A proteção da vitalidade, diversidade e beleza da Terra é um dever sagrado.” (Carta da Terra).

Medidas para um desenvolvimento responsável

• Restruturar o Incra, no sentido de apoiar efetivamente a função social, econômica e ambiental da terra.
• Acelerar os procedimentos de retomada dos 9,72 milhões de hectares de terras da União, em Rondônia, e a imediata destinação a projetos de assentamentos.
• Promover reforma agrária integrada, capaz de garantir condições de vida digna às famílias assentadas.
• Incentivar ações de recomposição e manutenção das reservas legais e áreas de preservação permanente.
• Promover correta gestão do zoneamento socioeconômico e ecológico de Rondônia, como importante instrumento de planejamento.
• Assegurar condições financeiras à execução das ações do Incra, tanto pela estrutura administrativa quanto pelos projetos de assentamento no estado de Rondônia.
• Acelerar a criação dos projetos de assentamento sustentáveis em Rondônia. • Iniciar estudos de viabilidade econômica dos assentamentos e pesquisas para desenvolvimento de atividades de permacultura, visando à sustentabilidade do assentado.
• Firmar parcerias entre o Estado brasileiro e indígenas, seringueiros e extrativistas, compartilhando a responsabilidade pela vigilância e pelo monitoramento de suas áreas.
• Reconhecer (via Incra) as Reservas Extrativistas Estaduais e disponibilizar os serviços de ATES, créditos, instalações e Pronaf.
• Viabilizar programas que resgatem o passivo ambiental.
• Discutir partidariamente a destinação das terras públicas da Amazônia.
• Comprometer os parlamentares do Partido dos Trabalhadores com a causa da reforma agrária por meio de ações concretas nos órgãos competentes.

Seminário “A reforma agrária e a função socioambiental da terra”

Bernardo Ciro Lopes é secretário de Organização do PT-RO