Internacional

Entrevista com Fernando Lugo

Depois de seis décadas no poder, o Partido Colorado está ameaçado. O ineditismo se deve à receptividade da candidatura à Presidência de Fernando Lugo, ex-bispo católico, que concedeu esta entrevista à Teoria e Debate durante sua visita ao Brasil para o 3° Congresso do PT

Por que sua decisão de abandonar o sacerdócio, optando por entrar para a política e, ainda, se candidatando ao maior cargo de seu país?

Isso tem relação com duas questões fundamentais. Como bispo, atuei durante onze anos na região mais pobre do país. A atividade pastoral foi intensa sobretudo na pastoral social, na qual se procurou atender às reivindicações do homem de São Pedro, econômicas e sociais; recuperar sua dignidade, criar organizações campesinas etc. Depois desse período, percebemos que as grandes mudanças, tudo o que propúnhamos para que o homem de São Pedro vivesse de maneira mais digna, passava não somente pelo trabalho eclesial, mas pela vontade política. Acreditamos que a política é a ferramenta, o caminho, o método mais sustentável para que o homem de São Pedro possa reivindicar e recuperar sua dignidade e viver melhor. De outra parte pesou uma questão mais pessoal. Uma petição de 17 de dezembro, com mais de 100 mil assinaturas, para que eu deixasse o sacerdócio e me dedicasse a um projeto político que promovesse verdadeiras e genuínas mudanças no país. Esses dois elementos foram os que me fizeram deixar o sacerdócio e me dedicar à política.

Como é a direita paraguaia?

É tudo muito parecido com o que acontece na América Latina. A oligarquia paraguaia teve seus negócios beneficiados pelo Estado − com os grandes créditos, empréstimos, das instituições do Estado − e sempre teve um trato preferencial que lhe é muito difícil abandonar. Ela quer manter o status que sempre teve. A oligarquia paraguaia não é numerosa, são poucas famílias, porém com muita força. Exercem pressão social, principalmente por meio de pressão política dentro dos partidos tradicionais.
As eleições presidenciais coincidem com as parlamentares?

Sim. Teremos quatro eleições simultâneas, para presidente, deputados e senadores, governadores e juntas departamentais.

Caso o senhor vença, existem chances de que a formação do Congresso seja favorável?

Estamos trabalhando num formato de chapas unificadas para o Congresso dentro da Concertação Nacional. Será muito difícil chegar a acordos. De qualquer modo, acreditamos que a composição do Parlamento será favorável, pela inquietação dos cidadãos para que ocorram as mudanças necessárias no país.

Sua candidatura está bem nas pesquisas de opinião, fala-se que há o risco de o senhor ganhar e não levar, não assumir...

Pode-se dar quatro situações. Primeiro, impugnarem minha candidatura porque têm a Justiça eleitoral nas mãos, têm a maioria na Corte Suprema de Justiça; segundo, podemos ser vítimas de fraude eleitoral, porque também têm todos os juízes eleitorais e podem manipular as eleições; terceiro, o que você disse, posso concorrer, ganhar e não me entregarem o poder, pois são especialistas em criar cenários em que possam dizer depois que não há garantias; quarto, não se descarta também a possibilidade de uma eliminação física, porque farão qualquer coisa para não deixar o poder que possuem há mais de 60 anos.

Do ponto de vista constitucional, como é que funciona o fato de o Vaticano não dispensá-lo do episcopado?

Esse é o argumento que tem sido utilizado para a impugnação. Mas nenhuma lei está acima da Constituição Nacional. O direito canônico, ou o que diga o Vaticano, não está acima da Constituição do país. O argumento ontológico não pode primar sobre o argumento jurídico. Ao renunciar ao voto sacerdotal, episcopal, recuperei todos os meus direitos de cidadão, sociais e políticos, que é o que permite, com toda a liberdade, que eu me candidate a presidente ou vice-presidente do Paraguai. Porém, eles podem apresentar qualquer argumento, embora não tenha solidez e seja contrário às grandes aspirações e esperanças da maioria do país.

Também tentaram impedir a candidatura do mexicano Manuel Lopez Obrador por meio de manobras, mas a pressão da população fez com que ele se candidatasse normalmente. Embora saibamos o que aconteceu depois, podemos pensar em algo assim, uma pressão popular.

Estamos estudando três iniciativas contra a impugnação: primeiro, brigar pela candidatura juridicamente, porque nosso argumento é sólido; segundo, que as grandes manifestações e os cidadãos defendam a candidatura; e, terceiro, buscar solidariedade internacional. Entregaremos um dossiê a todos os países, a todas as organizações sociais e políticas em nível nacional e internacional, para que estejam cientes da situação do Paraguai.

Que papel desempenham as Forças Armadas no Paraguai hoje?

Podemos dizer que há três tipos de integrantes das Forças Armadas: os militares comerciantes, os militares que brincam de políticos e os militares institucionalistas.

Neste momento, prima o institucionalismo nas Forças Armadas, e não achamos que possam atuar contra a população civil, nas manifestações que queremos sejam pacíficas.

No que consiste seu programa de governo?

Sobre o programa de governo posso dizer que o nosso não será um governo personalista. As propostas de governo estão sendo elaboradas junto com os cidadãos, numa construção coletiva. Temos percorrido todo o país com uma expressão muito interessante: “Não queremos teu voto, queremos a tua voz”. Queremos que as pessoas participem, uma democracia mais participativa do que representativa. E as pessoas fizeram seu próprio diagnóstico sobre qual é a grande doença do país. Estamos agora realizando uma segunda rodada.

As propostas de governo não serão elaboradas em laboratórios por especialistas, apesar de também ser possível fazer isso. Estão sendo discutidos assuntos muito importantes, como, por exemplo, a intenção econômica, que é garantir uma administração sadia, honesta, com o controle dos cidadãos. A geração de empregos, a agilidade e a viabilidade das instituições estatais, a modernização do Estado. Pensar que tipo de Estado queremos para viver. Esses são grandes eixos temáticos. Como a reforma agrária, por exemplo, que não se pode desconsiderar ao elaborar mais sistematicamente um programa de governo.

O que não dá para ceder mesmo sendo uma grande coalizão?

Pensamos que tem de haver um programa mínimo acordado porque a coalizão é muito grande e também muito heterogênea. Primeiro, está a administração da Justiça, que precisa ser autônoma, livre e independente. Segundo, a reforma agrária, com a qual quase todos estamos de acordo, assim como a geração de emprego. Capitalizar as energias no sentido de buscar um modelo em que a industrialização tenha um espaço prioritário.

Tem alguma coisa atual que este governo faz...

Sim. Por exemplo, queremos cortar os apadrinhamentos, o nepotismo. Em oposição ao que faz este governo, pretendemos realizar uma política internacional com bastante clareza. Hoje nossa política exterior carece de um rumo claro. Não existe um horizonte fixo.
Nesse sentido, sobre política externa, seu país tem relações fortes com a Argentina, o Uruguai e o Brasil. E aí, obviamente, há temas sensíveis, como o Tratado de Itaipu, a presença de brasileiros terra-tenentes no Paraguai e o pequeno comércio, entre os países, que sempre foram motivo de polêmica...

Por um lado, queremos ter uma política externa simples, no sentido de nos relacionarmos bem com nossos vizinhos – apostaremos no fortalecimento das relações com Argentina, Brasil e Uruguai dentro do Mercosul. Por outro, enfrentar com transparência a Represa Itaipu, os “brasiguaios” na Ciudad del Leste, a questão dos biocombustíveis, temas dos quais nenhum governo pode se eximir. E isso ficará já marcado na agenda do próximo governo com os países vizinhos. Não somente Itaipu, mas também Yaciretá, o comércio com bases e princípios para fortalecer a integração regional.

O Mercosul é interessante para o Paraguai? Ou pode ser mais do que interessante?

Pode ser mais do que interessante. Acreditamos que não somente o ingrediente econômico é importante. Há um Mercosul não explorado ainda, que é o social e o cultural. Há um Mercosul político com o Parlasul, que, tomara, possa ter uma boa direção. São ingredientes de uma convivência comunitária que ainda não se integrou dentro do Mercosul, que precisa ser ampliada nos eixos temáticos de integração, sobre quais possibilidades podem se fortalecer nessa integração, em novos critérios nos quais todos ganhemos, e ganhemos bem, e os quais fortaleçam também nossos respectivos países, onde todos possamos viver melhor depois da integração.

O que é o Movimento Tekojoja?

Hoje, no Paraguai, têm nascido muitos movimentos e partidos políticos: o Partido Social Democrata, o Partido Social Democrático Progressista, o PMAS, que é o Partido do Movimento ao Socialismo, e temos o Tekojoja, um movimento político que se converteu, rapidamente, num interlocutor político importante em todo o país. É nele que estão todos os grupos camponeses, trabalhadores e também intelectuais, artistas e jovens. Seu nome foi extraído das duas últimas palavras do Hino Nacional, união e igualdade. Tekojoja é a vida em igualdade. Que a lei seja igual para todos, o Paraguai seja de todos os paraguaios, são princípios do Movimento Político Tekojoja.

Movimento, não é um partido?

É um movimento político. Está dentro do Bloco Social e Popular e, como tal, apresentou candidaturas a deputado, senador e membros de departamento.

Que papel deverá ter a Igreja em sua candidatura?

Nenhum. Nem formal nem informalmente. A Igreja no Paraguai sempre se manteve muito neutra, objetiva e distante de todos os processos políticos. A última comunicação da Conferência Episcopal Paraguaia deixou claro que não apoiará nenhuma candidatura, alegando que, para manter a harmonia, o equilíbrio, é melhor manter também a distância do jogo político do país.

O que acha de se referirem ao senhor como Hugo Chávez ou Evo Morales paraguaio?

Somos muito diferentes. Muitos dizem, principalmente a oligarquia, que agirei como Hugo Chávez, ou como Evo Morales, que vou expulsar os brasileiros, confiscar as terras. Mas há muita distância. Costumo dizer que, se há um novo ar na região dos governos progressistas, o Paraguai precisa ter seu próprio processo nacional de fazer política, de fazer um governo e de fazer um país. Por isso, espero que nas comparações − embora digam que todas as comparações são odiosas... − o Paraguai não seja como a Venezuela. O Paraguai não tem 3 milhões de barris de petróleo diários, que são quase US$ 200 milhões de dólares por dia. O Paraguai, contando com sua realidade, partindo de sua gente e respeitando seu ritmo, fará seu próprio processo.

O que pensa sobre a questão da Base Aérea Mariscal Estagarribia e o possível acordo do governo paraguaio com os Estados Unidos?

Há dois assuntos tabus no Paraguai: as bases militares norteamericanas e o financiamento do terrorismo internacional da Tríplice Fronteira. Acredito que nos dois assuntos o Paraguai tem de oferecer abertura, transparência, todo tipo de investigação. Para muitos é como um tabu, mas, para outros, uma realidade.

Como não se tem demonstrado objetivamente, nem cientificamente, que esses acordos existam nem que se tenha a presença de forças militares dentro do país, acredito que seja conjectura. O mesmo vale em relação ao financiamento do terrorismo internacional dentro da Tríplice Fronteira − o Paraguai precisa se dispor a investigar.

Kjeld Jacobsen é presidente do Observatório Social

Rose Spina é editora de Teoria e Debate