Sociedade

Tapas e tiros dentro de casa não são novidade muitas brasileiras. Vista como "natural" ou como um direito dos homens sobre "sua" mulher, essa situação denunciada pelo movimento feminista, há décadas, começa a ser enfrentada por força de legislação e ações de fortalecimento das mulheres

"A violência contra a mulher não é o mundo que a gente quer." Palavra de ordem tradicional das passeatas e manifestações do movimento feminista em todo o Brasil, essa frase mostra que o anseio por construir uma sociedade sem violência doméstica ainda é tema principal para as mulheres.

Segundo pesquisa Ibope e Insti­tuto Patrícia Galvão, de 2006, 33% dos entrevistados apontam a violência contra a mulher, dentro e fora de casa, como o problema que mais preocupa a brasileira na atualidade.

Em 2001, quando a Fundação Perseu Abramo realizou a primei­ra investigação com abrangência nacional sobre a vida das mulheres brasileiras, os números já indicavam uma situação alarmante: a cada 15 segundos uma mulher era espancada no Brasil. Depois da pesquisa A Mu­lher Brasileira nos Espaços Públicos e Privados, outras foram feitas, e os números mostram que a realidade da violência doméstica não mudou. Pesquisa de opinião realizada este ano pelo DataSenado constata que, em cada cem mulheres brasileiras, quinze vivem ou já viveram algum tipo de violência doméstica.

Não adianta justificar, como fazem alguns legisladores e chefes de Executivo, que toda a sociedade está mais violenta no geral ou que as mulheres estão "entrando" cada dia mais no mundo do crime. As mulheres continuam apanhando, são xingadas, espancadas e mortas, sua grande maioria, dentro de casa, e os criminosos são homens da sua confiança: companheiro, marido, pai ou namorado.

Embora reconheça o crescimento do número de mulheres envolvidas no crime, a delegada Claudia Molina, chefe da Unidade Policial Contra as Desigualdades, do estado de Pernambuco, ressalva que esse fato não justifica o aumento no número de mulheres mortas. "É preciso tomar cuidado, pois é muito fácil dizer que a mulher está errada", pondera Claudia. "Não se pode esquecer que a maioria das mulheres é morta por conta do machismo."Assassinatos de Mulheres em Pernambuco - Violência e Resistência em um Contexto de Desigualdade, Injustiça e Machismo, de Aureliano Biancarelli, Publisher, 2006

Ação e reação

O Estado brasileiro, a partir da demanda do movimento feminista, deu início a um processo que está em em andamento e completou seu primeiro aniversário em setembro passado. Uma lei colocou a violência contra a mulher na agenda da sociedade brasileira.

A comentada Lei nº 11.340, ou Lei Maria da Penha, pôs o machismo na pauta da mídia. Após longo período de discussão, num processo que envolveu setores da moral e patrimonial da mulher. Consi­derada bastante avançada, conta com medidas preventivas, assistenciais, punitivas, educativas e de proteção não só à mulher como aos filhos. Segundo Fausto Lima, promotor de Jus­tiça do Ministério Público do Distrito FederalEntrevista publicada na página da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres em 5/7/2007, desde que foi sancionada a lei virou ordem do dia nos meios de comunicação e no meio jurídico. Por modificar o Código Penal, o Código Processual Penal e a Lei de Execução Penal e tornar mais rigorosa a pena contra quem agride mulheres, ainda é objeto de muitos debates.

O Brasil passou a ser o 18º país da América Latina a contar com uma lei específica para os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Os profissionais da área jurídica e de assistência social acreditam que é um importante instrumento para reduzir a violência. Obriga a mudanças nos procedimentos e na cultura do Poder Judiciário, sendo as principais aquelas que incidem sobre a autoridade policial e os procedimentos da Justiça. Mas há resis­tências no próprio Judiciário. Alegando ver "um conjunto de regras diabólicas" e lembrando que "a desgraça humana começou por causa da mulher", o juiz Edilson Rodrigues, de Sete Lagoas (MG), considerou inconstitucional a Lei Maria da Penha e rejeitou pedidos de medidas contra homens que agre­diram e ameaçaram a companheira.

O juiz ganhou seus quinze minutos de (má) fama e neles expôs uma lista de considerações machistas e misó­ginas para referendar sua decisão. As declarações são assustadoras por deixar evidente como é longa e larga a estrada para modificar corações e mentes na sociedade como um todo, mas principalmente nos órgãos que são os implementadores de quaisquer mudanças ou políticas públicas.

"Marcar a diferença é o caminho para eliminá-la. Daí a necessidade das leis de cotas, quer para assegurar a participação das mulheres na po­lítica, quer para garantir o ingresso de negros no ensino superior. Nada mais do que mecanismos para dar efetividade à determinação constitu­cional da igualdade. Também não é outro o motivo que leva à instituição de microssistemas protetivos ao consumidor, ao idoso, à criança e ao adolescente", alerta Maria Berenice Dias, desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

A deputada federal Janete Rocha Pietá (PT-SP) apresentou moção de repúdio na Comissão de Direitos Hu­manos e Minorias da Câmara dos De­putados, alegando que "as declarações inusitadas do magistrado caminham na contramão das conquistas das mulhe­res por uma sociedade em que atos de violência não sejam banalizados nem contem com a omissão do Poder Público". Janete classificou de "descabidas" as afirmações do juiz, as quais, segundo ela, "implicitamente legitimam toda sorte de agressões contra as mulheres e podem levar à impunidade" O Con­selho Nacional de Justiça decidiu abrir processo disciplinar contra o juiz.

De Minas para Mato Grosso do Sul, onde ocorreu situação semelhante: a 2ª Turma Criminal do Tribunal de Jus­tiça do estado julgou correta a decisão do juiz Bonifácio Hugo Rausch, da Comarca de Itaporã, sobre inconstitu­cionalidade da Lei Maria da Penha.

Segundo Rejane Candado, da Marcha Mundial das Mulheres - ar­ticulação feminista que luta contra a pobreza e a violência -, "essa lei é uma construção social, uma conquista histórica de décadas de lutas, e não pode ser desqualificada. Ficamos assustadas quando vimos a matéria sobre essa decisão contra a lei, em Mato Grosso do Sul, um dos estados de referência nacional na luta pela igualdade da mulher na sociedade e contra a violência de gênero."

A lei é mais um instrumento que pode atingir de alguma forma as causas da violência a partir do momento que suscita o debate real de por que apanham e/ou morrem mulheres apunhaladas e baleadas pelo com­panheiro. Pode-se comemorar, pelo menos, o fato de o tema estar saindo do confinamento do "lar doce lar" e deixando de ser um assunto em que "não se mete a colher" O feminismo acredita que a superação do machis­mo e do patriarcado acontecerá a partir do momento em que a luta pela autonomia das mulheres seja forte e enraizada na sociedade, com pers­pectivas além das medidas judiciais apontadas: valorizar mais os aspectos educativos, preventivos, configurados numa rede de proteção social e de políticas públicas de um lado e, de outro, no controle social pelo movi­mento de mulheres, garantindo-lhes fortalecimento e respaldo dos poderes públicos, aí, sim, fazendo valer a lei em toda a sua plenitude.

Fernanda Estima é editora-assistente de Teoria e Debate.