Cultura

No dialeto comum aos "ponteiros", o Brasil se "desesconde" porque o Estado já não impõe, dispõe

O "do-in antropológico" do Gil. Porque o país pede massagem, ponto a ponto do corpo nacional. Pensando nisso, em 2004 o governo federal inicia o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania, voltado para grupos culturais que já tinham estrada em suas comunidades, tão variadas quanto São Paulo, Macapá, Pau Brasil, no interior baiano, Cataguases, em Minas Gerais, ou Porto Nacional, no Tocantins. Vem daí o nome de guerra do programa: Cultura Viva. Gente ativa e criativa que teve pouco ou nenhum apoio oficial ao longo da vida, sempre à margem das leis de incentivo, sem apelo de marketing, mesmo para empresas estatais.

Por meio de edital público e transparente, desbancando o balcão, pouco mais de 70 inscritos foram conveniados com o MinC na primeira leva - nasciam os Pontos de Cultura. Hoje já são 679. Cada um recebe R$ 180 mil em dois anos e meio, R$ 6 mil por mês. É a Rede Nacional de Cultura, de capilaridade capaz de representar a diversidade cultural do Brasil.

Belo Horizonte acolheu, em novembro, a Teia 2007, segunda edição do encontro que põe frente a frente as muitas caras dessa miríade. Cerca de 650 Pontos de Cultura estiveram presentes com 2.175 delegados eleitos em eventos regionais.

Ciranda do Thiangá (Boa Vista-RR), índios On-Line (Pau Brasil-BA), Laboratório de Poéticas (Diadema-SP), Anima Bonecos (Rio do Sul-SC), Calangueiros de São José das Três Ilhas (Belmiro Braga-MG), Jongo da Serrinha (Rio de Janeiro-RJ), Hip Hop a Lápis (São Paulo-SP), Navegar Amazônia (Macapá-AP), Tambores de Tocantins (Porto Nacional-TO): eis uma miúda amostra da abrangência do encontro e da fertilidade que preparou seu terreno para a troca.

O objetivo declarado do MinC é fazer, por meio do fortalecimento dessa rede, com que a sociedade brasileira atue crescentemente na construção das políticas públicas de cultura, de forma sistematizada, organizada e democrática. Focado este ano no binômio Educação & Cultura, uma das constatações da Teia 2007 foi que o programa Escola Viva - interação entre Pontos de Cultura e escolas - ainda patina na dificuldade de articulação entre os níveis de governo.

Para além da riqueza de experiências postas sobre a mesa, três momentos da teia dividiram o pódio: os dois primeiros foramo Seminário Internacional Saberes Vivos, que reuniu importantes intelectuais nativos e estrangeiros, e o Espaço Cultura Digital, vanguarda no trato de assuntos como banda larga, governança da intemet, TV Digital e TV pública, produção de conteúdo, inclusão digital, software livre, propriedade intelectual e ferramentas colaborativas. O último coroou a Teia com o 1º Fórum Nacional dos Pontos de Cultura, que debateu propostas elaboradas por nove encontros macrorregionais realizados nos meses anteriores.

Consenso entre os grupos é que assistimos, pela primeira vez no país, a uma experiência concreta de política pública de cultura descentralizada e sintonizada com a diversidade cultural brasileira. Embora ainda não seja possível mensurar com exatidão o reflexo dessa nova ótica sobre nossa produção cultural, é indiscutível o impacto dos Pontos de Cultura nos municípios e regiões onde atuam. No dialeto comum aos "ponteiros", o Brasil se "desesconde" porque o Estado já não impõe, dispõe. Como quem aprende a andar de bicicleta, os Pontos de Cultura já são vivência sem retorno. Mais fortes, mais articulados e mais autônomos frente a prefeituras e empresas locais, os Pontos de Cultura enfrentam, todavia, as agruras da gestão administrativa e financeira do programa. Ainda hoje há grupos com oito, dez e até doze meses sem receber os recursos parcelados. Coisas de uma burocracia que não foi concebida para trabalhar com impessoalidade, com transparência, sem intermediários.

O 1º Fórum discutiu o problema, mas ficou devendo no quesito política. Faltou um debate mais aprofundado sobre o rumo das políticas públicas de cultura e sobre como convertê-las em ações de Estado. No entanto, debitemos as lacunas ao fato de ter sido este o primeiro da espécie, que valeu simplesmente por ter existido, por celebrar os tantos brasis e por demonstrar de forma cabal, como diz a canção de Itamar Assunção, que, em matéria de cultura, "mistura não mata, cura!"

Paulo Barcala, jornalista

(Agradecimentos a César Piva pelas informações e pelo entusiasmo).