Cultura

O papel ativo do Estado se concretizou em inúmeras áreas culturais, conectado com a sociedade

Fazer política é expandir sempre as fronteiras do possível.
Fazer cultura é combater sempre nas fronteiras do impossível.

Jorge Furtado

Uma avaliação das políticas culturais do presidente Lula e do ministro Gilberto Gil exige, antes de tudo, o enfrentamento das três tristes tradições das políticas culturais no Brasil - a ausência, o autoritarismo e a instabilidade -, e não apenas uma análise crítica do governo FHC e sua gestão da área, que, por certo, realizaram em plenitude aquelas tristes tradições.

Na coletânea dos discursos "programáticos" pronunciados em seu primeiro ano de governo, Gilberto Gil privilegiou dois temas que batiam de frente com a tradição da ausência. Em uma perspectiva, enfatizou continuamente o papel ativo do Estado na formulação e implementação de políticas de cultura. Teceu uma poética relação entre políticas culturais e cultura. Para o artista ministro, "formular políticas culturais é fazer cultura" (Gil, 2003, p.11). Em outra perspectiva, complementar à anterior, os discursos fizeram continuadamente uma crítica contundente da gestão Francisco Weffort naquilo que ela significou a expressão maior da nova modalidade de ausência do Estado: sua submissão ao mercado, através das leis de incentivo (Gil, 2003).

O papel ativo do Estado se concretizou em inúmeras áreas culturais. Aliás, o próprio Gil disse que a marca de sua gestão seria a abrangência. O novo papel do Estado se fez em conexão com a sociedade. Ele, várias vezes, afirmou que o público do Ministério da Cultura não eram apenas os criadores e produtores culturais, mas a sociedade brasileira. Desse modo, o diálogo com a sociedade deu substância ao caráter ativo, abrindo veredas para enfrentar outro desafio: o autoritarismo. Ou seja, formular e implementar políticas culturais em circunstâncias democráticas.

Outra das ênfases dos nomeados discursos programáticos encontra uma sintonia fina com a idéia força da luta contra o autoritarismo e o elitismo: a ampliação do conceito de cultura (Gil, 2003). A assimilação da noção "antropológica" permite que o ministério deixe de estar circunscrito à cultura culta (erudita) e abra suas fronteiras para outras modalidades de cultura. Em alguns casos, sua atuação passa mesmo a ser inauguradora, a exemplo da atenção e do apoio às culturas indígenas (Ministério da Cultura, 2006). Em outros, se não é inaugural, sem dúvida revela um diferencial de investimento em relação às situações anteriores. É o que acontece nas culturas populares (Ministério da Cultura, 2005), de afirmação sexual, na digital e mesmo na midiática audiovisual. São exemplos força dessa atuação: a tentativa de transformar a Ancine em Ancinav; o projeto DOC-TV, que associa o ministério à rede pública de televisão para produzir documentários em todo o país; o edital para jogos eletrônicos; os apoios à Parada Gay; a construção da TV pública etc.

Tal atuação significa não só o abandono de uma visão elitista e discriminadora, mas um contraponto ao autoritarismo e a busca da democratização da cultura. A intensa opção por construir políticas públicas, porque em debate com a sociedade, emerge como outra marca da gestão Gil. Assim, proliferam os seminários; as câmaras setoriais; as conferências, culminando inclusive na Conferência Nacional de Cultura. O desafio de construir políticas de cultura em um ambiente democrático não é enfrentado de qualquer modo, mas por meio do acionamento da sociedade civil e dos agentes culturais.

As políticas públicas dão substrato democrático à viabilização de políticas de Estado que, ao transcender governos, possam oferecer ao campo cultural políticas nacionais mais permanentes. Nessa perspectiva, os investimentos, ainda iniciais, do ministério na área da economia da cultura e da economia criativa e sua ação com o IBGE, ao produzir séries de informações culturais, adquirem notável funcionalidade e já apresentam seus primeiros resultados (IBGE, 2006). Mas dois movimentos assumem lugar central na construção de políticas de Estado nessa área: a implantação e o desenvolvimento do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e do Plano Nacional de Cultura (PNC).

A construção que vem sendo realizada pelo ministério, em parceria com estados, municípios e sociedade civil, de um SNC é vital para a consolidação de estruturas e de políticas, pactuadas e complementares, que viabilizem a existência e persistência de programas culturais de médio e longo prazo, não submetidas às intempéries conjunturais. Tal sistema deve estar associado e comportar outros (sub)sistemas que vêm se constituindo, como o Sistema Nacional de Museus (Ministério da Cultura, 2006). A aprovação pelo Congresso Nacional (Emenda Constitucional n° 48/2005) e subseqüente elaboração do PNC surge como outro fator favorável à superação da tradição de instabilidade e descontinuidade que tem dilacerado a atuação no campo da cultura. Enfim, a possibilidade de superação dessa triste tradição depende em ampla medida da existência, articulação e sintonia fina entre SNC e PNC.

A institucionalização do ministério se consolida com sua atuação cada vez mais nacional, por meio de inúmeros projetos, com destaque para os Pontos de Cultura, que já atingiram mais de quinhentos em todo o país. A descentralização de suas atividades decorre também da reforma administrativa realizada logo no início da gestão, que buscou superar as áreas de sombreamento e dar maior operacionalidade ao ministério e seus órgãos vinculados (Meira, 2004). A realização do "primeiro concurso público da história do ministério" (Ministério da Cultura, 2006) traz perspectivas alvissareiras para seu fortalecimento institucional, por meio da incorporação de novos servidores.

Dois outros fatores têm essencial significado para a construção institucional do ministério. O primeiro é a ampliação do seu orçamento (de R$ 289 milhões em 2002 para R$ 513 milhões em 2005), ainda que isso não tenha atendido à meta do ministro Gilberto Gil, de 1% para o orçamento nacional de cultura. O segundo é a permanência do ministro no segundo mandato do presidente Lula. Essa manutenção pode ser interpretada como compromisso com a continuidade das políticas empreendidas.

Limites

Um dos aspectos mais positivos na avaliação da gestão Lula/Gil na cultura é a abrangência assumida como meta pelo Ministério da Cultura. Essa amplitude representa um enorme desafio de continuidade. Dar contemporaneidade ao ministério exige consolidação e acolhimento de novos horizontes. A continuidade torna-se crucial para a maioria dos projetos em andamento.

Para atingir tais objetivos, entretanto, alguns obstáculos têm de ser enfrentados. Um esforço teórico se faz necessário para delimitar com mais rigor o campo de atuação do ministério. O conceito antropológico, se acerta ao reconhecer que todo indivíduo produz cultura - que todo ser humano é nesse sentido um intelectual, como diria Gramsci -, cria dificuldades para a efetiva formulação de políticas culturais e para o próprio delineamento institucional do ministério.

A continuidade da reforma administrativa aparece como necessária para sua maior institucionalização, para corrigir sombreamentos que persistiram e para propiciar uma estrutura mais adequada à ampliação das atividades do ministério. Isso é notório na área internacional, na qual a envergadura de seu trabalho está a exigir bem mais que uma assessoria.

Os interessantes canais de participação da sociedade civil e dos artistas precisam ser avaliados e consolidados, inclusive institucionalmente. Nessa perspectiva, as câmaras setoriais, os seminários, as conferências, a Conferência Nacional de Cultura assumem lugar de destaque.

A concentração dos equipamentos, que persiste apesar da nacionalização das atividades do ministério, continua a ser um grave problema, porque ela age ativamente contra essa distribuição mais eqüitativa de recursos humanos, materiais e financeiros, com repercussões inevitáveis e indesejáveis na democratização da cultura. A dificuldade de enfrentar essa tradição de concentração do ministério não o exime de dar passos efetivos para democratizar e nacionalizar seus equipamentos.

Apesar do imenso simbolismo da realização do primeiro concurso público para o ministério, continua acentuada a necessidade de quadros para as instituições culturais nacionais. A carência de pessoal, as condições de salário e a má-distribuição tornam-se ainda mais graves com a ausência de uma política sistemática de formação, qualificação e atualização dos organizadores da cultura. Aliás, essa é uma das maiores mazelas da área, nunca enfrentada pelas políticas culturais no país. A instituição de um sistema nacional de formação e qualificação, inserido no SNC, pode ser uma possível alternativa a essa grave omissão.

Outro enfrentamento inevitável: a questão do financiamento. Desde a perversa instalação das leis de incentivo, que penetraram e contaminaram toda a arquitetura institucional da cultura, em seus diferentes patamares, existem enormes problemas nesse registro. As leis de incentivo, ao ganharem tamanho protagonismo, parecem esgotar o tema das políticas de financiamento da cultura, quando não das próprias políticas culturais. Elas agridem a democracia, ao introduzir uma enorme distorção no poder de decisão do Estado e do mercado no uso das verbas públicas. Apesar dos avanços inegáveis, com a instituição de uma política de editais para a área no ministério (Fundo Nacional de Cultura) e nas empresas estatais, o tema ainda demanda um grande esforço para superar a lógica neoliberal que entronizou o mercado como o poder de decisão acerca da cultura brasileira. A ausência de uma política de financiamento em plenitude corrói iniciativas do ministério, inclusive aquela primordial de fazer o Estado assumir um papel mais ativo na cultura.

A conquista do mínimo de 1% do Orçamento e o aumento dos recursos para a área devem estar associados à construção institucional de uma política de financiamento, submetida à política pública e nacional de cultura. Ela deve garantir: papel ativo e poder de decisão do Estado sobre as verbas públicas; mecanismos simplificados de acesso aos recursos; instâncias democráticas de deliberação acerca dos financiamentos; distribuição justa dos recursos, considerando as regiões, os segmentos sociais e a variedade de áreas culturais; modalidades diferenciadas de financiamento em sintonia com os tipos distintos de articulação entre cultura e mercado.

Enfim, o desafio a ser enfrentado pode ser condensado na construção de uma política de Estado de cultura - nacional e pública -, consubstanciada em um documento, que represente a superação democrática da enorme falta que durante tantos anos tal política fez e ainda faz. A democracia brasileira está a exigir para sua consolidação a ampliação dos direitos e da cidadania culturais em nosso país.

Bibliografia

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Meira, Márcio. "Uma política republicana". In: Teoria e Debate. São Paulo, (58): 60-65, maio/junho de 2004.

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Sarcovas, Yacoff. "O incentivo fiscal no Brasil". In: Teoria e Debate. São Paulo, (62)58-62, abril/maio de 2005.

Antonio Albino Canela Rubim é professor da UFBA, coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Cult) e pesquisador do CNPq.