Internacional

As resoluções do Partido, ao longo da história recente, tiraram a China da miséria mais abjeta

A respeito do 17° Congresso do Partido Comunista chinês, têm surgido notícias e opiniões de que, da mesma forma que na antiga União Soviética, tais congressos não tomam decisões reais, mas apenas sacramentam fórmulas, a ascensão de novos dirigentes e as tendências, preocupações e conflitos internos de sua burocracia.

Se isso fosse verdade, as resoluções dos congressos do PC da China não teriam modificado aquele país. Mas é difícil negar que, até 1978, eles promoveram esforços imensos para elevar a capacidade produtiva e o padrão de vida do povo chinês. Levaram a China a construir uma razoável indústria de base e a produzir mais de 300 milhões de toneladas de grãos. Garantiram teto, alimentação e vestuário a toda a população, erradicaram as endemias e reduziram para 15% o analfabetismo, que em 1949 afetava 80% da população.

Em termos gerais, tiraram a China da miséria abjeta, construindo uma sociedade quase igualitária, com 700 milhões de pobres e 400 milhões vivendo abaixo da linha da pobreza. Porém, com um PIB de US$ 48 bilhões, a capacidade produtiva do país era inferior a 1% da produção industrial do mundo e seu PIB per capita era insignificante. Continuava atrasada e pobre.

No esforço para desenvolver as forças produtivas, haviam contado, em certos momentos, com a participação de múltiplos tipos de propriedade. Porém, contaram mais com as mobilizações da sociedade pobre, que, apesar de maciças, se mostraram incapazes de gerar riqueza no volume e na velocidade necessários para implantar uma dinâmica sustentada de desenvolvimento.

Assim, foi no rescaldo da revolução cultural, a maior e última das tentativas de desenvolver as forças produtivas e, ao mesmo tempo, construir uma sociedade igualitária e de democracia direta, que o Partido Comunista chinês abandonou esse caminho e decidiu realizar uma grande retirada estratégica. Elaborou um programa de reformas, de 30 a 50 anos, que admitia o mercado e as formas de propriedade privada como importantes instrumentos de desenvolvimento da capacidade produtiva de sua sociedade socialista.

Nos últimos 27 anos, o PC e o Estado chineses implementaram esse programa, com um êxito que só os ignorantes ousam negar. A China responde, hoje, por 7% da produção industrial do mundo. Em 2007 seu PIB, pela paridade cambial, será acima de US$ 3 trilhões, superando o da Alemanha. Pela paridade de poder de compra, o PIB chinês ultrapassará os US$ 12 trilhões, enquanto seu comércio exterior já é superior a US$ 2 trilhões.

A China conseguiu a proeza de fazer sua economia crescer, entre 1980 e 2007, à taxa média de 9%, enquanto a renda per capita subia à taxa média de 6%. Embora ainda convivesse, em 2006, com cerca de 20 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza e 500 milhões de pobres, a China havia elevado 500 milhões de pessoas ao patamar de classe média baixa e média e 300 milhões à classe média alta. Ou seja, em 27 anos, retirou da pobreza cerca de 800 milhões de pessoas.

Além disso, o crescimento chinês introduziu na economia mundial nova configuração produtiva e novos paradigmas industriais. Desmentindo as teorias neoliberais sobre o absolutismo do novo mundo informacional e da sociedade pós-industrial, a China tem desempenhado papel importante em colocar no mercado mundial cerca de 40% da população do planeta, da Ásia, África e América Latina, e contribuir decisivamente para o controle mundial da inflação.

Foram os congressos do PC que traçaram os padrões desse desenvolvimento chinês. São padrões baseados em economias de escala, para obter baixos custos unitários; infra-estrutura desenvolvida, para evitar custos elevados na distribuição e circulação; quebra dos monopólios, inclusive estatais, para estimular a concorrência; juros financeiros baixos, para estimular os investimentos produtivos; altos investimentos em educ0ação e em centros de desenvolvimento científico e tecnológico, para ter uma força de trabalho qualificada e à altura da nova revolução científica; incentivos à inovação, para elevar a competitividade; e incentivo ao consumo e ao mercado de massa, para ter o mercado interno como núcleo do desenvolvimento econômico e capaz de enfrentar as crises externas de realização da produção.

Críticas e perigos

Alguns dos que criticam o PC da China, pela utilização do mercado e das formas privadas de propriedade para o desenvolvimento das forças produtivas, consideram que isso representa uma ruptura brutal com sua teoria de defesa dos interesses dos operários e camponeses. E acham risível que esse partido, em todos os seus congressos, reitere seu compromisso com o marxismo, assim como com o pensamento maozedong.

Esses críticos talvez ignorem que Marx também considerava que nenhuma formação social poderia ser substituída, enquanto não esgotasse todas as suas potencialidades de reprodução. O que o levou a prever que as revoluções socialistas se dariam nos países capitalistas avançados. Por seu lado, Mao Zedong defendia que a revolução chinesa era democrática, não socialista, e que o fato de ser dirigida pelo Partido Comunista apenas impedia que fosse erigida uma muralha da China entre essa revolução democrática e a revolução socialista. Apesar disso, ele e o Partido Comunista da China acreditaram, como outros, que seria possível evitar as dores do capitalismo na construção da sociedade socialista. Seus fracassos, como os dos outros, apenas demonstraram que as premissas descobertas por Marx estavam corretas.

Nesse sentido, o que diferencia o PC da China dos partidos comunistas da União Soviética e do Leste Europeu é que ele levou a sério o fracasso das tentativas de construir o socialismo sem completar o desenvolvimento das forças produtivas, que cabia ao capitalismo realizar. Por outro lado, embora utilizando o mercado e formas de propriedade privada, o PC chinês não concorda que o mercado e a propriedade privada subordinem o Estado a seus interesses. Na China, a economia é de mercado, mas o mercado e a propriedade privada encontram-se sob a direção do Estado, com a propriedade social tendo um peso relevante.

Não por acaso, os principais "críticos" ocidentais do modelo chinês se voltam contra o que chamam de "Estado do sistema de partido único" Segundo eles, tal Estado impediria a China de construir um arcabouço jurídico de concorrência, o que limitaria sua competitividade, e de construir um regime democrático e uma sociedade civil ativa, o que a impediria de ocupar uma posição de liderança global. Na verdade, para esses críticos, com partido único ou multipartidarismo, o problema é a existência de um Estado que direciona e regula a ação do mercado e das formas de propriedade. E, ao contrário do que afirmam, tem capacidade de estimular a competitividade, a democracia e a sociedade civil, e ocupar posição importante no cenário mundial.

É evidente que há, sempre, a possibilidade de a situação se inverter, e o Estado chinês subordinar-se ao mercado e à propriedade privada. Esse parece ser um dos riscos inerentes aos países em desenvolvimento, que buscam realizar processos mais profundos de transformação social. Assim, talvez por se dedicarem com afinco ao ajuste dos desequilíbrios, disparidades e desvios de rumo, inevitáveis num processo de reformas tão vasto e complexo, os congressos do Partido Comunista chinês tenham conquistado tamanha importância.

Os desafios do 17º Congresso

Desde seu 16° Congresso, em 2002, o PC da China havia detectado pelo menos cinco desafios prementes: os ambientais, as disparidades regionais, as disparidades entre pobres e ricos, os riscos financeiros e a corrupção.

Os problemas ambientais, numa combinação perversa entre passivo histórico e industrialização muito rápida, espraiaram-se. A posse de reservas de carvão, possibilitando produzir energia termelétrica e artigos siderúrgicos baratos, transformou a China num dos países que mais poluem o ar e mais gastam energia. Em sentido contrário, a posse de uma área agrícola correspondente a 7% do total mundial, para alimentar 22% da população do planeta, conduziu-a ao uso intensivo e à degradação das águas e solos.

A desproporção de 3,26 para 1,09 e 1, respectivamente, entre o produto interno bruto das regiões leste, central e oeste e a disparidade da renda per capita urbana, de mais de 5 mil iuanes, em relação à renda das zonas rurais, de 2,3 mil iuanes, mostravam a lenta modernização do centro e do oeste do país.

A distância entre a renda per capita dos mais ricos e dos mais pobres aumentou. Agravaram-se os problemas relacionados com o trabalho e a segurança no trabalho, desemprego, seguridade social, educação, saúde, abastecimento, Justiça e segurança pública. A falta de regularização dos trabalhadores migrantes permitia a exploração abusiva e os acidentes. A ausência de serviços públicos influía diretamente sobre a renda dos trabalhadores das zonas rurais, impondo-lhes cargas para a educação, saúde e Justiça. Um desemprego de 4% não impediu que algumas regiões da China tivessem falta de mão-de-obra qualificada.

Os riscos financeiros e da globalização haviam se tornado mais evidentes, à medida que as operações financeiras passavam a ser o coração da economia moderna, determinando a estabilidade ou a instabilidade de todo o sistema econômico. O sistema financeiro chinês ainda mantinha estruturas fracas, com governança deficiente. Os desequilíbrios na balança de comércio internacional da China, com altos superávits e níveis muito elevados de reservas internacionais, podiam tornar-se perigosos para o desenvolvimento sustentável do país.

E a corrupção, embora fosse um problema atacado desde o início das reformas, como uma das questões-chave para manter a legitimidade do PC e do Estado socialista, passara a exigir medidas mais amplas e seguras de supervisão, de modo que não lhe fosse dada qualquer trégua.

Se tais desafios continuassem crescendo, a suposição de desenvolver o socialismo com características chinesas, tomando o desenvolvimento econômico como tarefa central e as políticas de reforma e abertura ao exterior como esforço principal, corria o risco de fracassar. Diante disso, cabia ao 170 Congresso do PC da China não só avaliar as experiências levadas a cabo desde 2002, mas também realizar um ajuste mais vigoroso.

Não é por acaso, pois, que as decisões desse recente congresso do PC da China, além de colocar a "construção verde" como preocupação central dos projetos de crescimento econômico, apontem para medidas rigorosas de fiscalização, conservação e recuperação do meio ambiente. Os poderes da Administração de Proteção Ambiental foram ampliados, permitindo-lhe fechar mais de 3 mil empresas e minas poluidoras, tornar mais rígida a obrigatoriedade dos estudos de impacto ambiental, implantar taxações para desenvolver métodos científicos de monitoramento, conservação e recuperação ambiental e impor compensações pelo uso de recursos naturais e danos causados ao meio ambiente. O programa de economia de energia tem meta de redução do consumo em 20%, até 2010.

A preocupação com os desequilíbrios regionais e entre as zonas urbanas e rurais resultou na adoção de medidas para extinguir todos os impostos agrícolas e acelerar a universalização do sistema de segurança social e de serviços públicos nas zonas rurais. Estão sendo prioritariamente corrigidos os problemas nos transportes, abastecimento de água, educação e atendimento médico.

Os 20 milhões de pessoas que ainda vivem abaixo da linha da pobreza devem ter elevado seu padrão de vida até 2010. A situação dos trabalhadores migrantes está sendo regularizada, para garantir seus direitos. E as classes sociais de renda mais alta passam a contribuir com maiores taxas para a extensão e barateamento dos serviços públicos. O Estado também se tornará mais atuante frente às empresas estrangeiras que se neguem a aceitar a organização sindical.

Para reduzir os riscos globais, o PC pretende que a China aprofunde as reformas de seu sistema financeiro, fortalecendo sua supervisão e controle e melhorando sua governança. Também quer que a China diminua o desequilíbrio no comércio internacional, por meio do aumento de suas importações e da constituição de fundos financeiros, que chegam a US$ 200 bilhões, para projetos no exterior.

O 17° Congresso do PC da China também reiterou a decisão de assegurar a constante extensão dos direitos democráticos, intensificando a obediência às leis, reforçando o sistema de congressos populares, ampliando o sistema de cooperação multipartidária e consulta política e o sistema de autogestão nos níveis primários da sociedade, como as aldeias, povoados, cantões e empresas estatais. O sistema de congressos do PC deve passar a ser anual.

Com isso, o PC espera completar a fase primária de construção do socialismo com características chinesas, realizar o desenvolvimento das forças produtivas materiais e, paralelamente, de uma sociedade harmônica, como base de uma civilização política e cultural avançada.

É lógico que a China pode, hoje, concretizar todas essas medidas e sonhos, que envolvem investimentos de algumas centenas de bilhões de dólares. Em 27 anos de reformas, o país acumulou reservas internacionais superiores a US$ 1,5 trilhão e uma poupança pública doméstica de cerca de US$ 2 trilhões, depositados em seus bancos. Nos próximos dez anos, tem condições de duplicar essa riqueza.

Se vai conseguir reequilibrar a sociedade no prazo estipulado, é algo que só a História pode comprovar. De qualquer modo, como a própria História já mostrou, seria um erro considerar que os congressos do PC da China não adotam decisões reais. Portanto, é melhor levá-los a sério, mesmo não gostando deles.

Wladimir Pomar é presidente do Instituto de Cooperação Internacional (Icooi) e membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.