Cultura

A construção da MPB, desde antes dos anos de chumbo, acompanha os diversos padrões históricos e sociais e formou um suculento caldo cultural e criativo

"Em torno da música surgiram associações de auxílio mútuo nas cidades onde houvesse aglomeração de negros." Foto: Acervo Iconographia

A canção de 1968 insere-se num percurso em que os nexos entre música popular e poder nem sempre surgem claramente definidos. Ao longo de nossa história, conforme a conjuntura, esses nexos foram adotando configurações variáveis, que examinaremos a seguir.

Geraldo Vandré: sua canção se tornou hino nas manifestações contra o jugo fardado. Foto: Arquivo Iconographia

Malandro e trabalhador

Num primeiro momento, observa-se no plano da música o afã de aceitação que partia de grupos marginais na direção da sociedade abrangente. Quando produzidas por pretos pobres, escravos e seus descendentes, as práticas musicais eram desde o início objeto de repressão policial. Profanas como a roda-de-samba e o batuque, ou então religiosas como os rituais de candomblé, bastava essa origem para despertar a sanha das autoridades. Atravessam a Colônia, o Império e a República as notícias de razias policiais que dispersavam as reuniões festivas dessa plebe negra,arrebentando os instrumentos, espancando e prendendo os oficiantes.Apesar disso, o fato é que em torno da música foram-se criando associações de auxílio mútuo nas cidades, onde houvesse aglomeração de negros.

Aspiravam à afirmação de uma identidade, ao mesmo tempo que se erigiam em focos de resistência à opressão e à descaracterização. Desse modo, procuravam alicerçar a auto-estima e proteger-se do racismo.

A partir de então assistimos a seus esforços para adquirir legitimidade, sobretudo quanto ao desempenho nas ruas da cidade. Devotaram-se a obter o direito de escapar ao gueto e realizar suas festividades extramuros. A meio caminho depararam, do lado dos poderes constituídos, com uma ampla campanha de domesticação das massas urbanas. Assim, as duas forças convergiram para uma mesma meta, a de acabar com eventos descontrolados, fosse a assustadora indisciplina dos anárquicos cordões, fosse a coreografia das maltas de capoeiras1.

O nascimento no Rio de Janeiro de um novo gênero musical que se tornaria hegemônico, o samba, e a correlata criação das escolas de samba, marcam uma etapa nada desprezível nessa conjugação de forças, no início do século 20. Os sambistas lutavam para disciplinar suas hostes em escolas e após tanta persistência acabariam por obter das autoridades um estatuto que regulamentava o desfile de carnaval e o samba-enredo, em 1935. O estatuto comprometia ambas as partes, tanto a comunidade quanto as autoridades. Também estabelecia que o tema do samba-enredo deveria ser patriótico, abrindo as portas a uma tradição de letras quilométricas e rebuscadas. E já chama precocemente a atenção para o rendimento turístico em que implicaria.

De conquista em conquista, em poucos anos as escolas de samba, de suburbanas que eram, já tinham garantido o direito de desfilar na principal artéria da cidade, a Avenida Rio Branco. Sua centralidade no calendário das efemérides metropolitanas ficou, a partir de então, assegurada. Rastros desse vasto movimento social ficariam registrados nos sambas que glorificavam o malandro carioca.

Marginal negro ou mulato, sem profissão definida, vivendo de expedientes, prestigiado por seus dotes de esperteza e de malícia – sobretudo para fugir ao trabalho –, o malandro era um valentão, armado de navalha, camisa listada, chapéu palheta e lenço no pescoço. Seu tipo ficou perenizado por uma iconografia própria, em charges e caricaturas, no teatro de revista, nos periódicos, nos filmes. Herói para o povo miúdo, era considerado inimigo número um pela polícia. Muitos sambas exaltam essa figura e seu estilo de vida. E sobretudo Frankenstein da Vila, de Ismael Silva (1931), constituem verdadeiras declarações de princípios gravadas pelo Rei da Voz, Francisco Alves: “Se eu precisar algum dia/ De ir pro batente/ não sei o que será / Pois vivo na malandragem/ E vida melhor não há”

Noel Rosa era branco e de Vila Isabel, um bairro da pequena burguesia. Em meio a uma obra de intenso lirismo dedicada à crônica de costumes de sua cidade, deixou canções que tratavam do malandro. Esse foi o pivô da discórdia com Wilson Batista, provocando a famigerada polêmica musical entre ambos2. São marcos Se Você Jurar e O Que Será de Mim, ambos da controvérsia, entre vários outros, do lado de Noel Rapaz folgado, Feitiço da Vila e Palpite infeliz, estes últimos duas de suas melhores criações. Do lado de Wilson Batista, Lenço no Pescoço, Mocinho da Vila, Terra de Cego, zombando cruelmente da deformidade facial do oponente.

No entanto, o malandro estava com os dias contados. Na obstinação em tornar-se respeitável, o samba deparou-se a meio caminho com a estratégia de controle do proletariado, articulada por Getúlio Vargas. A ele devemos, como ninguém ignora, a primeira legislação trabalhista da história do país. Durante sua gestão começaram a surgir composições que se dedicavam a louvar o trabalhador e a depreciar o malandro. No timbre possante do mais popular dos cantores dos anos 1930 e 1940, o mesmo Francisco Alves que tanto tinha elogiado o malandro até então, os fãs passaram a ouvir coisas diferentes, de que é exemplo O Bonde São Januário: “O bonde São Januário/ leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”. Esse seria apenas um entre muitos, todos decretando o fim do malandro.

Não demorou assim tanto tempo, e a certa altura as massas já estariam domesticadas, o Carnaval, institucionalizado, e o malandro, extinto. Passaria à história como personagem de folclore e como pitoresca memória, só relembrado pela nostalgia de um passado heróico em que miticamente o povo se mantinha incorruptível, não se rendendo nem às autoridades nem às convenções burguesas.

Canção contra ditadura

Quando do golpe de 1964, os compositores armaram-se em trincheira de resistência e arcaram com as conseqüências, expressas em censura, perseguição, prisão, exílio. O novo regime não se acanharia de criar uma lei considerando crime o desrespeito aos “símbolos da Pátria”, isto é, bandeira e hino. Houve famoso show no Olympia de Paris, no qual Gilberto Gil, exilado, cantou calcando aos pés uma bandeira do Brasil.

Como brado de rebeldia, a canção que marcou época foi Carcará (“Pega, mata e come/ mais coragem do que homem”), de João do Vale, sucesso daqueles ano.

O voluntarismo que então grassou se expressa em várias composições, como as de Geraldo Vandré. Já em Porta-estandarte, insinua-se que a missão do artista é levar alento aos  oprimidos, anunciando a futura libertação. De êxito em êxito, Vandré lançaria Disparada, que avançava mais alguns passos na proposta da contestação, analisando o processo de aquisição de uma consciência revolucionária: “Aprendi a dizer não”. Em seguida, Pra Não Dizer que Não Falei de Flores explicitamente admoestava os militares. Execrado e caçado pelo Exército, o autor seria salvo pelo desterro. A lógica do terror não era ingênua: esta canção viria a se tornar o hino das manifestações públicas contra o jugo fardado.

O advento do Tropicalismo iria levar mais água ao moinho. Surgem algumas das mais notáveis canções de Caetano Veloso. Uma delas é Enquanto Seu Lobo Não Vem, sem muito disfarce celebrando as passeatas que paralisavam a malha urbana. Outra é Divino Maravilhoso, uma das belas gravações de Gal Costa. No início da carreira, tanto ela quanto Maria Bethânia tinham na voz uma aspereza, uma intransigência, uma cólera, que depois foram cuidadosamente lixadas e polidas pelo processo de metamorfose em estrela midiática, muitas vezes com grotesco resultado. Esta canção ao mesmo tempo assumia e acautelava a respeito dos riscos da militância estudantil: “É preciso estar atento e forte / Não temos tempo de temer a morte”. Caetano ficaria ainda ligado ao período por duas brilhantes realizações, que são Alegria, Alegria e Tropicália.

Uma observação mais atenta mostraria que, por volta do ano 1968, no código lingüístico do cancioneiro nacional a rima obrigatória para Brasil deixou de ser o ufanista céu de anil e passou a ser fuzil.

Não pode ser esquecido Gilberto Gil que, entre outras criações dignas de menção, salienta-se com Domingo no Parque, tentativa de alçar dois trabalhadores, um pedreiro e um feirante, a heróis de nosso cancioneiro; Geléia Geral, protesto contra a situação brasileira; e Miserere, expressão de anseios de igualdade. O repúdio à força bruta que se encarniçava contra os artistas manifesta-se em Aquele Abraço: uma despedida, sob a aparente bonomia, no fundo iracunda, de quem parte para o degredo.

Nos anos seguintes, destacou-se por seu papel de líder da categoria Chico Buarque, que muito foi perseguido e, para seu crédito, nunca se acomodou. A indignação extravasa em várias composições, como em Apesar de Você, gravada com vocalises na parte vetada pela censura, ou em Gota d’água. Acossado pela marcação pessoal, acabaria recorrendo a pseudônimos. Um destes, Julinho da Adelaide, seria o autor de Acorda, Amor, um sambinha composto com leveza e graça, mas tratando de um assunto terrível, qual seja o dos seqüestros e desaparecimentos.

Chico Buarque, com papel de destaque, foi perseguido mas nunca se acomodou. Foto: Acervo Iconographia

Tantas são as composições valiosas, que fica difícil privilegiar uma ou outra, como Sinal Fechado, de Paulinho da Viola, cujo título metafórico é apropriado aos tempos de que se origina. Ou Pesadelo, de Paulo César Pinheiro e Maurício Tapajós, verdadeira ode à tenacidade na insubordinação (“Você corta um verso, eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto”).

Caberia a Aldir Blanc e João Bosco, por último chegados, a autoria de dois sambas sobre o assunto candente do final da década de 1970, qual seja a caducidade do regime, já à vista. Um é O Bêbado e a Equilibrista, cobrando “a volta do irmão do Henfil”, enquanto nomeia Maria e Clarice3. Logo recebeu o apelido de Samba da Anistia. O outro é Plataforma, que alegoriza no desfile de um bloco carnavalesco os anseios de democratização.

O hino das Diretas-já, Menestrel das Alagoas, dedicado a Theotônio Vilela, que foi cantado nos comícios da campanha, bem como no sepultamento de seu líder, ficamos devendo a Milton Nascimento e Fernando Brant. Antes, ambos já se tinham feito notar por uma bela nênia sobre o assassínio do estudante Edson Luís Souto no Rio de Janeiro – estopim dos distúrbios deflagrados em 1968 –, intitulada Sentinela.

O movimento estudantil não só  esteve na linha de frente da oposição durante todo o período, como ainda forneceu a maioria dos integrantes da luta armada, num desprendimento e idealismo incomparáveis. Uma bela homenagem se depuraria em Coração de Estudante, de Wagner Tiso e Milton Nascimento. Metamorfoseando-se em hino de batalhas cívicas posteriores, seria entoado no cortejo fúnebre de Tancredo Neves e até, bem mais tarde, nas demonstrações pelo impeachment de Collor.

Entretanto, com toda justiça, devemos a Chico Buarque as duas canções definitivas dos estertores da ditadura, ambas de 1984. A saber, o samba das Diretas-já, Pelas Tabelas, e aquele que ficaria conhecido como o hino da redemocratização, o sambão Vai Passar. Ambas permaneceriam, a exemplo de tantas outras que não só as aqui examinadas, como padrões históricos de um interregno singular, encerrando as várias fases por que passou o país sob tutela militar.

Ira Branca

Finda a ditadura, seguiu-se a busca tateante, complexa e delicada, dos reajustes necessários à redemocratização. No pop-rock, uma pequena mas aguerrida constelação se constituiu, formada por compositores e bandas que se alçaram à linha de frente da consciência política. Não perdoam aos dirigentes e às camadas abastadas a iniqüidade da concentração da renda e o abismo crescente entre ricos e pobres.

No bojo desse processo, começou a delinear-se nos anos 1980 uma descentralização da produção musical, que antes se restringia ao Centro-Sul, sobretudo ao Rio de Janeiro. Foi quando surgiram importantes contribuições de Pernambuco, Paraíba e Brasília.

Em Recife, Chico Science cria o mangue-beat e na vizinha Paraíba surge Chico César. Ambos elaboram, embora com resultados diferentes, uma fusão de elementos pop com os ritmos tradicionais do Nordeste. E reclamam mais atenção para a miséria e o abandono a que vive relegada a gente de seus rincões.

O pop-rock de Brasília faz-se notar com duas bandas, a Legião Urbana e os Paralamas do Sucesso, cujas canções são ácidas, cheias de sarcasmo social e político.

Nas duas metrópoles do Centro-Sul, assinalam-se alguns artistas brancos e de classe média, como os de Brasília. Entre eles, os Titãs, com Arnaldo Antunes, em São Paulo; no Rio, Cazuza e sua banda Barão Vermelho, cujas canções empunham o estandarte da crítica. Outro é Lobão, o independente, que, formando bandas e saindo delas, não cessou de fustigar os males dos donos do poder. Gabriel o Pensador, rapper de língua afiada, sobressaiu especialmente com Tô Feliz − Matei o Presidente, quando estourou o escândalo que levaria à queda de Collor.

Revolta negra

Um fenômeno que data dos anos 1990 e ultrapassa de muito a pura música, cuida de orientá-la para a conscientização de negros e pobres. O movimento hip-hop, e o rap que é seu hino e bandeira, veicula o protesto negro, amalgamando favelados e comunidades carentes da periferia.

Antigamente, como vimos, os negros almejavam tanto a respeitabilidade quanto o reconhecimento de seu direito a trafegar com seus folguedos pelas ruas da cidade. Agora, exigem condições de vida que não os lancem na criminalidade e não os tornem vítimas inermes, esmagadas entre a polícia e os traficantes de drogas. O cinema tem sido instigado pelo papel que essa “tribo” desempenha na cultura urbana. Um documentário de 2004, Fala Tu,  dirigido por Guilherme Coelho, acompanha durante nove meses a vida cotidiana de Macarrão, Togum e Combatente, três rappers negros da Zona Norte do Rio de Janeiro.

Entre as mais proeminentes bandas de rap estão os Racionais MC’s, liderados por Mano Brown. Não escondem, até ostentam, sua condição de soldados numa guerra civil: “Minha palavra vale um tiro/ Eu tenho muita munição”. Clamam contra o que, sem eufemismos, chamam de Holocausto Urbano, título que deram a um de seus CDs. Falando do grupo de risco com o maior índice nacional de mortos a bala, aludem à chacina, que nunca cessa, de jovens de cor.

Nessa linha, outro músico que se destaca entre os numerosos confrades é Rappin’Hood. Seu rap Sou Negrão é um verdadeiro manifesto em defesa da raça, com reclamos específicos e um catálogo de heróis, que vão desde Clementina de Jesus a Zumbi dos Palmares. Ao se apresentar numa celebração do aniversário de São Paulo, no Vale do Anhangabaú, o rapper fez todos os 80 mil presentes, brancos na maioria, cantarem em uníssono o estribilho: “Sou negrão”. Foi um momento de comunhão, que não deixa de ter sua novidade, indicando rumos futuros para as relações entre música popular, sociedade e poder.

Acrescentem-se aqui as reivindicações exclusivamente femininas de compositoras e cantoras ultimamente surgidas, como Deise Tigrona, Tati Quebra Barraco, Deize Injeção e muitas outras. Solistas ou em grupo, formando conjuntos sem participação masculina, assumem nomes-de-guerra engraçados e provocadores, em decidida postura contra o machismo. Foi sobre elas que Denise Garcia produziu o documentário Sou Feia Mas Tô na Moda (2005) e Tata Amaral realizou Antonia (2006), estrelando Negra Li. Esses filmes permitem uma aproximação ao universo funk das mulheres do subúrbio: ao assumirem sua posição de sujeito do baile funk, elas proclamam sua autonomia sexual e comportamental.

Como vimos, as configurações podem variar, mas a fecunda tensão entre música popular e poder atravessa os tempos.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária, integrante do Conselho de Redação de Teoria e Debate