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Quarto ano do golpe militar no Brasil, 1968 foi único na história da democracia

José Ferreira Lopes, o Zequinha, um dos quatro vices-presidentes da UPE, arremessa pedras nos policiais armado de um estilingue. Essa imagem deu o Prêmio Esso de Jornalismo ao fotográfo Edison Jansen. Foto: Jansen/Cedida pelo jornal O Estado do Paraná

Quando se fala em movimento estudantil, o tempo recua quarenta anos para assistirmos a um filme, divisor de águas no imaginário das rebeliões, dos cercos policiais, das barricadas, canções de protesto e irreverências nos costumes. Março de 1968 marcava o quarto ano do golpe militar no Brasil. A guerra do Vietnã, o Quartier Latin, em Paris, os protestos na Tchecoslováquia, o frescor da revolução cubana, a febre do maoísmo, a terra, em transe. Como um raro alinhamento dos astros, 1968 foi único na história da democracia.

Em Curitiba, sem lenço, sem documento, ouvia-se A Banda, de Chico Buarque, e o frenesi dos festivais, e João do Vale “pisava na fulô”1 num tablado da Casa do Estudante; assistia-se – na febre do cineclubismo – a Um Dia, Um Gato, Os Companheiros e Vidas Secas2. E, assim, passou a ferver o caldeirão arrogante do reitor Suplicy de Lacerda, antes ministro da Educação do presidente Humberto de Alencar Castelo Branco que, de qualquer maneira, queria inaugurar na Escola Polítécnica o ensino pago no Paraná – o famigerado acordo MEC-Usaid3. Antes, como em todo o Brasil, os estudantes foram para a rua protestar contra a sanha da ditadura que havia assassinado a inocência do secundarista Edson Luís de Lima Souto. O ano de 1968 começaria em 28 de março.

Por obra de um flagrante fotográfico, do estudante tencionando a atiradeira contra o policial militar e seu cavalo na Escola Politécnica, uma luta ganhou repercussão internacional. Em maio, os alunos protestavam para impedir a inauguração de um curso de engenharia pago numa universidade pública. O campus, ainda rarefeito e afastado do centro da cidade, era ideal para o exercício da cavalaria. Alguns se machucaram, outros foram detidos.

Dois dias depois, a resposta surpreendente: cerca de 3 mil estudantes concentraram-se bem cedo na Praça Santos Andrade, em Curitiba, de onde saíam os ônibus para a Faculdade Politécnica. Por certo, a polícia estava lá, acantonada. Mas, dissimuladamente, tomou-se outra direção − a apenas dois quarteirões encontrava-se a Reitoria da Universidade Federal do Paraná, símbolo político do arbítrio do ensino superior.

A ocupação foi cinematográfica e impressionante pela velocidade e pelo entrosamento das iniciativas. Os estudantes tomaram de empréstimo dos trabalhadores de um prédio em construção pés-de-cabra e outras ferramentas para retirar os paralelepípedos, e rapidamente ergueram barricadas. Carros oficiais que por ali passavam eram interrompidos com a mesma finalidade. Até um sistema de rádio foi utilizado, e às 8 horas da manhã a reitoria estava tomada e protegida.

Enquanto a polícia chegava com infantaria e cavalaria, mais estudantes aglomeravam-se num círculo externo. O momento mais dramático foi a derrubada do busto do reitor, narciso arrastado por jovens imberbes. Tiveram início então as negociações, com mensageiros indo até a casa do governador. Diante da iminente selvageria, prevaleceu o bom senso. E a gratuidade do ensino público. Este foi um feito que merece estar ao lado dos grandes acontecimentos que marcaram o ano de 1968 no Brasil.

O movimento estudantil do Paraná renasceu em 1965, com características bem curiosas. À época do golpe de 1964, a União Paranaense de Estudantes (UPE), entidade mais importante, estava na mão da direita. Aos poucos, ano a ano, sua composição foi avançando para a esquerda. O Diretório Central dos Estudantes (DCE) e os diretórios das grandes escolas da Universidade Federal e da Universidade Católica distribuíam-se entre as forças políticas mais reconhecidas, como o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), a Ação Popular (AP), a Dissidência Leninista e a Política Operária (Polop) ou lideranças próximas. A Igreja progressista estava lá. O mesmo aconteceu com inúmeras faculdades isoladas em cidades do Paraná, como Ponta Grossa, Londrina e Maringá, que, aos poucos, foram se alinhando com as lutas do movimento estudantil brasileiro.

Umas das disputas mais acirradas que animavam a luta estudantil no Paraná era a polarização em relação a propostas diferenciadas para o futuro da universidade, tem do em vista o resgate das reformas de base preconizadas até antes do golpe. Um embate teórico acontecia em torno da proposta Universidade Crítica, encampada pela Polop e por grupos mais próximos aos trotskistas e a de Universidade Popular, puxada pela AP e que tinha certa proximidade com o PCBR.

Militantes do movimento estudantil participavam de panfletagens nos bairros operários buscando a aliança com a “força dirigente da revolução” e apoiavam o incipiente movimento bancário. A eleição da UPE, em um confronto acirrado entre dois grupos de esquerda, foi vencida pela Dissidência Leninista e os aliados, mas pouco pôde fazer: a queda do 30º Congresso da UNE (União dos Estudantes) e a imposição do AI-5 (Ato Institucional nº 5) colocaram as entidades combativas na ilegalidade e seus dirigentes, na clandestinidade. De fato, o ano de 1968 teria seu fim em 13 de dezembro. Restaria a difícil opção entre construir um movimento de massas e a resistência armada. No Brasil, jamais nevaria tanto como naquele Natal.

José Carlos Zanetti é economista, trabalha na Coordenadoria Ecumênica de Serviço, em Salvador, e militante de Direitos Humanos. Foi vice-presidente da UPE (1967-1968) e militante da AP