Nacional

Parte considerável dos universitários se mobilizou, em especial nas capitais dos estados, em eventos tão importantes quanto inesperados

José Dirceu, presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo, em 1968. Foto: Agência Estado

Sempre me senti surpreendido pela vastidão do movimento de 1968, que abrangeu parte importante do planeta. Do mesmo modo, sempre me intrigaram os relatos sobre sua força e influência. Nascido em 1971, em meio à “geração AI-5”, não aceitei nunca com tranqüilidade a taxação de que os jovens das décadas posteriores à de 1960 eram apolíticos, alienados ou individualistas. E quis mesmo conferir a tal força de 1968. Se ainda considero caricata a imagem dos jovens da minha geração como tão somente individualistas, a pesquisa à qual me dediquei durante meu doutoramento me fez aprender a enorme energia da revolta de 1968. E o que me propus a fazer foi observá-la como um movimento juvenil de caráter mundial.

Menos que uma coincidência no tempo de inúmeras revoltas de cunho nacional, quis ler 1968 – e as revoltas juvenis dos anos 1960 em seu todo, na verdade – como fenômeno único, complexo e contraditório, de cunho global, como uma onda mundial de revoltas. Ao mesmo tempo, considerei que este movimento teve na juventude real ou presumida de seus integrantes o seu principal elemento comum. Tal olhar não deve nos abster, entretanto, de compreender as muitas nuanças destas revoltas que, é bem verdade, tiveram características nacionais e mesmo locais bastante particulares.

Outro risco a se evitar com o olhar global sobre 1968 é o de considerar os movimentos algo mais legítimo ou característico dos países ditos “desenvolvidos”. Ainda que contrário à mera inversão simplista desta postura, o que eu proponho é que a onda mundial de revoltas teve no Terceiro Mundo seu início e uma de suas principais fontes. Isto não significa desconsiderar a importância dos movimentos do “Primeiro Mundo”, ao contrário. O maio francês de 1968 foi provavelmente o movimento em que as possibilidades emancipatórias daquela onda tenham ido mais longe. A Alemanha teve importantes movimentos estudantis na então Berlim Ocidental desde o início da década de 1960. E, mesmo depois de 1968, países que já haviam tido eventos muito relevantes, atingiriam o ápice de suas mobilizações, como a Itália (com uma greve estudantil-operária de amplas proporções em 1969) e os Estados Unidos (com uma enorme revolta estudantil em 1970 contra a invasão do Camboja, no contexto da guerra do Vietnã).

Mas, no Terceiro Mundo, foi forte e até mesmo precursora esta onda. Na América Latina, inclusive Brasil e México, na Ásia, em países como Japão, Vietnã, Paquistão e Bangladesh, Sri Lanka, Índia, Iraque, Irã, Síria, Israel, Palestina, Turquia, Líbano, Tailândia, Birmânia e Malásia, e na África, como Nigéria, Senegal, Egito, Argélia, Marrocos, Mauritânia, Congo e Camarões, a onda mundial de revoltas teve eventos tão importantes quanto inesperados para um olhar que espera apenas do “Ocidente civilizado” os ímpetos de emancipação da humanidade.

Também, contra quaisquer simplismos na interpretação destes eventos, que poderiam caracterizá-los tão somente como “anticapitalistas” (que, em boa medida, realmente eram), 1968 foi muito importante também no antigo mundo socialista, em países como Polônia, ex-Iugoslávia, ex-Tchecoslováquia, antiga Alemanha Oriental e, na China, a revolução cultural. Não se tratavam de movimentos “anti-socialistas”, mas sim contra as feições totalitárias, burocráticas e corruptas assumidas pelos regimes soviéticos, em prol de mais liberdade e democracia.

Entre os elementos que deram a 1968 relativa unidade, deve ser citado, primeiro, o fato de que os mais característicos movimentos eram de juventude universitária com origem principalmente nas classes médias (principalmente das “novas classes médias”). Como segundo elemento de unidade, os movimentos se deram principalmente nas grandes cidades, que eram centros políticos e econômicos (São Francisco, Washington, Nova York, Londres, Berlim, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro, Cidade do México, Praga, Tóquio, Cairo etc.). Terceiro, tinham como elementos desencadeadores aspectos de um explosivo contexto histórico mundial: fatores geopolíticos como a guerra fria e a descolonização da Ásia e da África; fatores socioeconômicos como o enorme avanço da economia mundial no pós-Segunda Guerra Mundial e a ascensão das novas classes médias (mais ligadas aos setores de serviços e técnicos); e fatores político-culturais, como as transformações nas universidades, os novos radicalismos e a contracultura.

A relativa unidade está no fato de que os mais característicos movimentos eram de juventude universitária. Foto: Agência Estado

Importantes temas de cada movimento nacional giraram em torno de alguns eixos, em especial a rejeição agressiva ao imperialismo norte-americano (a começar pelos protestos no interior dos próprios Estados Unidos contra a guerra do Vietnã). Também se fez a crítica à tese da “convivência pacífica” entre o socialismo soviético e o capitalismo de extração norte-americano, e adotaram-se temas sobre a democratização radical da universidade e da sociedade; mundo afora, declarou-se solidariedade aos movimentos de libertação nacional, fizeram-se presentes de modo contundente os socialismos heterodoxos – em especial os da revolução cultural chinesa e os da revolução cubana – e houve a apologia e algumas vezes até a prática de guerrilhas, luta armada e “guerra popular revolucionária”, sob a influência dos socialismos antes citados. Esta apologia, demonstrando a complexidade e a contraditoriedade desta galáxia de rebeldias, conviveu, algumas vezes bem, outras mal, com propostas de reestruturação e transformação da vida cotidiana, da cultura e do comportamento, em especial na práxis da contracultura e do movimento hippie.

Em todos os movimentos, certamente, foram marcantes as manifestações artístico-culturais, como o Cinema Novo, a canção de protesto e o tropicalismo no Brasil, o movimento hippie, as drogas psicodélicas e a revolução sexual nos Estados Unidos e em outros países da Europa Ocidental, os grafites e os panfletos no maio de 1968 francês, a literatura e o teatro nos países soviéticos do Leste Europeu e, até mesmo, os cartazes e as caricaturas na revolução cultural chinesa. Na arte, nas manifestações culturais e nas novas doutrinas políticas, todo um rol de respostas alternativas à situação global insatisfatória vivida naquele momento estava à disposição, a serviço do cultivo da rebeldia. Enquanto o “sistema” oferecia, como supostas alternativas, a indústria cultural massificada, o discurso de fundo moralizante e tradicionalista do mundo “democrático” ou a versão estreita da ortodoxia comunista soviética, os jovens buscaram respostas e modelos alternativos: Che Guevara e Cuba, Mao-Tsé e a China, o Vietnã e as lutas dos povos oprimidos nos países do Terceiro Mundo, intelectuais e novas organizações de esquerda que criticavam o comunismo soviético (o filósofo alemão Herbert Marcuse e a Escola de Frankfurt, novas revistas e organizações de nova esquerda na Europa, grupos de discussão e ação estudantil) e contestadores culturais.

Creio que não se devem idealizar os jovens do passado, nem desprezar os do presente, muito menos usar os primeiros para condenar os segundos. As possibilidades de rebeldia não são as mesmas em todos os tempos. Os jovens não são socializados sempre com os mesmos valores, nem sempre as alternativas de contestação estão abertas a todos. Quase nunca as manifestações de descontentamento se dão do modo esperado, da forma “clássica” de fazer revolta política. Se houve condições sociais e políticas que praticamente empurraram os jovens estudantes das classes médias à revolta em 1968, os jovens de hoje não deixam de protagonizar outros e novos protestos. Temos protestos recentes contra a globalização neoliberal que contaram com importante participação dos jovens entre os seus manifestantes, durante reuniões das instituições financeiras e políticas supranacionais (como o Fundo Monetário Internacional − FMI −, o Banco Mundial e o G-7 – o grupo dos sete países mais ricos do mundo). Também, contra a segunda guerra do Iraque, em 2003, em muitos países.

Outro questionamento logo se apresenta. É preciso perguntar sempre de qual jovem estamos falando,seja hoje, seja em 1968. A juventude das camadas trabalhadoras não é a mesma das camadas mais bem providas de recursos financeiros. A própria possibilidade de viver a juventude como tempo de preparação para o futuro papel adulto é algo que esteve e está mais à disposição de certas classes, certo gênero, etnia e regiões do país que de outras. Os jovens rebeldes de 1968 foram, em ampla margem, filhos das classes médias.

Vladimir Palmeira, presidente da União Metropolitana dos Estudantes (RJ), liderou a passeata dos Cem Mil. Foto: Acervo Iconographia

Como último ponto, apresento uma breve descrição desta revolta no Brasil. O Brasil também fez parte da onda mundial de revoltas estudantis-juvenis de 1968. Aqui, ela mobilizou parte considerável dos estudantes universitários, em especial nas capitais dos estados, mas também há notícias de importantes ações em regiões interioranas, como no estado de São Paulo. Se a seguir destacarei os eventos das capitais paulista e carioca, entretanto, é preciso enfatizar que manifestações muito importantes se deram em quase todas as demais capitais, como em Brasília, Belo Horizonte, Goiânia e Curitiba. O principal oponente deste movimento foi o regime militar instalado no Brasil pelo golpe de 1964. O golpe derrubou a ordem populista em crise promoveu prisões políticas, cassações, torturas, exílios e tentou, paulatinamente, institucionalizar um sistema político autoritário em nosso país, com Atos Institucionais, leis e Constituição que foram minando o pouco de democrático que sobrevivera a 1964. O final de 1968 selaria a entrada deste regime em seu momento mais autoritário e violento, com a decretação do Ato Institucional n° 5 (AI-5). Mas isto se daria apenas em dezembro. Antes disto, desde março até outubro, 1968 fora o ano de revoltas estudantis que sacudiram o país e que estiveram no centro de esperanças democráticas e de pesadelos da violência.

Por outro lado, o movimento também era cultural, contracultural, ainda que não muito consciente disso, pois ao menos na prática, nos atos da massa estudantil, também se expressou o desejo da libertação dos comportamentos e dos valores, no campo da arte, da sexualidade e das drogas. Por fim, 1968 foi o ponto culminante de uma verdadeira revolução nas artes populares iniciada no começo da década de 1960, em torno do Centro Popular de Cultura (CPC), do Teatro de Arena e do Teatro Opinião, do Cinema Novo, dos Festivais de Música Popular, da canção de protesto, da emergente Música Popular Brasileira, da jovem guarda, do tropicalismo etc.

Encabeçando as manifestações, ainda que de modo mais formal que de fato, já que a direção dos acontecimentos tomava rumo próprio nas massivas manifestações populares, esteve a União Nacional dos Estudantes (UNE).  A UNE havia sido declarada ilegal pelo governo e teria culminando na prisão de todos os participantes do 30ºCongresso da UNE em Ibiúna (SP), em outubro de 1968. Mas, antes disso, ao lado das uniões estaduais dos estudantes, diretórios centrais estudantis e centros acadêmicos, a UNE ajudou a imprimir a marca da nova esquerda nestas ações e contribuiu para uma relativa organização das mesmas.

Entretanto, enquanto para boa parte dos estudantes a revolta significava “libertação”, tanto política quanto comportamental, e para a própria classe média se tratava antes de tudo de uma luta pela redemocratização do país, para os líderes de 1968 e militantes dos partidos estudantis (em geral informados pelos socialismos heterodoxos e pela apologia da luta armada) o maior desejo era tornar possível a “revolução popular” que levaria o Brasil ao socialismo:

Nós éramos profundamente libertários. O que mais se gritava naquele momento era a palavra de ordem “Liberdade”. O curioso, e paradoxal, é que toda essa visão e toda essa prática muito libertárias coexistiam   com um discurso ideológico que apontava para outras direções. Todos nós, naquele momento, piamente defendíamos a ditadura do proletariado (Sirkis 1999, p. 114).

Dois ápices marcaram os oito meses de revolta (Moraes, 1989). O primeiro se deu entre 28 de março e o início de abril, contando com 26 grandes passeatas em quinze capitais estaduais. O fato que precipitou essas passeatas foi o assassinato do estudante secundarista Edson Luís1. Em meio à enorme manifestação popular em que se transformou seu enterro, criou-se um slogan certeiro: “Mataram um estudante. Podia ser seu filho”.

Edson Luís, primeiro estudante assassinado pela ditadura militar, morto durante o confronto no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro. Foto: Hamilton/JB

O segundo grande momento se deu na metade de junho, houve dezessete grandes passeatas em oito capitais de estado. Outro fato ocorrido no Rio de Janeiro teria disparado essa segunda onda, quando a polícia, em 20 de junho, reprimiu com brutalidade uma passeata estudantil no centro da cidade, na  chamada “quarta-feira sangrenta”. No dia 21, centenas de estudantes que estavam em assembléia na Universidade Federal foram agredidos pela polícia no Estádio do Botafogo, quando a televisão transmitiu cenas da violência oficial. Estava preparado o cenário para a “sexta-feira sangrenta”, no dia 22: a população apoiou os estudantes e também atacou a polícia, e o confronto que se estendeu até o final da tarde deixou muitos feridos e mortos. Novo ato se convocou para o dia 26, que ficaria conhecido como a Passeata dos Cem Mil. Postaram-se ao lado dos estudantes, artistas, membros do clero, das classes médias e até dos trabalhadores, angariando à revolta ampla – mas breve – legitimidade.

A resposta da ditadura não tardou: decretou-se a proibição de passeatas em todo o país. Estava fechado o principal meio até então legal de expressão da revolta estudantil e dos anseios de democratização. As manifestações que foram convocadas a partir de então sofreram repressão cada vez mais vigorosa, desencorajando aqueles que antes facilmente se animavam a seguir os protestos.

Outro importante modo de ação também tinha seus dias contados, a saber, as greves e ocupações de unidades estudantis. Destacaram-se as ocupações na Universidade de São Paulo (USP). Momento bastante indicativo de mais este fechamento foi a guerra da Maria Antonia (rua da capital de São Paulo onde se deu o conflito), quando integrantes do grupo ultraconservador Comando  de Caça aos Comunistas (CCC), alojados na Universidade Mackenzie, travaram violento duelo contra os estudantes esquerdistas que ocupavam a Faculdade de Filosofia da USP. Ao final, a Faculdade de Filosofia foi incendiada, sob o olhar conivente da polícia.

Diante do crescente da violência da ditadura, que culminou na prisão de quase oitocentos delegados no 30º Congresso da UNE e no AI-5, o ímpeto juvenil e rebelde de 1968 se dispersaria. Enquanto a classe média logo se acomodaria ao sistema – fechado politicamente, mas com novas oportunidades de enriquecimento acenadas pelo “milagre econômico” –, a rebelião juvenil bifurcou-se em duas frentes. Uma delas, a da rebeldia comportamental de nossos hippies, amantes da liberdade sexual e da experimentação psicodélica, não tinha interesse central pela transformação do regime político. A outra, a da luta armada, organizações de esquerda que entraram em clandestina mas sangrenta batalha contra o regime, pouco puderam diante da violência quase absoluta daquele Estado – que mobilizou com mais eficácia os diversos órgãos de repressão na temível Operação Bandeirantes (Oban).

Contra os estudantes universitários, militantes ou não de qualquer rebelião, o Estado reservara para o início de 1969 o Decreto n° 477, que estipulava que fazer ou participar de greve, passeata ou simplesmente distribuir “material subversivo” era um grave delito. Deste modo, os estudantes dos anos 1970 viram seu espaço constantemente cerceado e vigiado, punidos por um radicalismo que não tinha sido o de sua geração e, ainda por cima – como os jovens de  hoje –, foram acusados de alienados pela mesma sociedade que não lhes dava condições de ser um verdadeiro protagonista da vida política.

Bibliografia

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Katsiaficas, G. The Imagination on the New Left. A Global Analysis of 1968. Boston, South End Press, 1987.

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Morais, P.; Reis Filho, D. A. 1968. A Paixão de Uma Utopia. 2ª ed. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1998.

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Zaidan Filho, M.; Machado, O. L. (orgs.). Movimento Estudantil Brasileiro e a Educação Superior. Recife. Editora Universitária UFPE, 2007.

Luís Antonio Groppo é professor do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (Unisal), Unidade Americana, e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Autor, entre outros, de Autogestão, Universidade e Movimento Estudantil, Uma Onda Mundial De Revoltas: Movimentos Estudantis de 1968 e Juventude: Ensaios Sobre Sociologia e História das Juventudes Modernas (Difel, 2000).