Sociedade

Negócios, a economia, a política e o cotidiano dos cidadãos mudaram com a internet, mas ultraconservadores querem impedir o compartilhamento e o uso justo de bens culturais

Os negócios, a economia, a política e o cotidiano dos cidadãos foram reconfigurados com a internet, mas ultraconservadores querem impedir o compartilhamento e o uso justo de bens culturais. No Brasil, as cúpulas partidárias preferem seguir “as câmeras de TV” e deixar a acordos lamentáveis os ataques à rede

O Brasil já possui mais de 50 milhões de internautas. Infelizmente, a rede ainda está restrita fundamentalmente aos estratos da população de maior renda, mas sua penetração já é superior à da imprensa escrita. Gradativamente, a comunicação em rede vai avançando em direção aos segmentos pauperizados. A tendência mundial da internet de se tornar o principal arranjo comunicativo do século 21 confirma-se também no Brasil. Assim, a intensa digitalização da produção simbólica e cultural alcança até a mídia tradicional de maior impacto, a televisão. Esse cenário legitima a idéia de que vivemos em uma sociedade em rede (Castells). As redes estão adquirindo primazia na comunicação e, conseqüentemente, reconfiguram os negócios, a economia, a política e o cotidiano dos cidadãos.

Todavia, a comunicação em rede é completamente distinta da chamada comunicação de massas que caracterizou o mundo industrial. As redes digitais permitem a comunicação interativa, distribuída, descentralizada. Como afirmou o professor Yochai Benkler, a rede permitiu construir uma esfera pública interconectada com características muito mais democráticas que a esfera pública controlada pela mass media. Isso por dois motivos: primeiro, ela reduz os custos de nos tornarmos falantes e de comunicarmos amplamente nossas idéias; segundo, ela não exige autorização de ninguém para construirmos nosso site, portal, blog e até uma nova tecnologia de interação, como ocorreu com a invenção dentro da internet do P2P, da voz sobre IP e do YouTube.

Enquanto a Câmara dos Lordes, alta corte do tradicional Reino Unido, abre um canal permanente no YouTube (http://br.youtube.com/ukparliament), a Cúpula do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) no Brasil restringe o uso da internet nas eleições com o argumento de que é necessário controlá-la e coibir na rede o abuso do poder econômico. O enorme esforço do ministro Ayres Brito de tentar liberar o uso da esfera pública interconectada nas eleições brasileiras enfrentou a confusa e retrógrada oposição da maioria dos ministros que tratam a rede como algo semelhante ao rádio e à televisão. O pior é que os partidos oficialmente demonstram um total desconhecimento ou, o que é mais dramático, uma grande indiferença com a medida que vai na contramão de toda onda democratizadora trazida pela comunicação em redes digitais.

Barack Obama pode avançar nos Estados Unidos porque as redes sociais (Facebook, YouTube, Orkut, MySpace, Twitter) gratuitas puderam ser usadas. Até o conservador Boris Johnson usa o YouTube, a custos menores que a impressão de panfletos, para vencer as eleições à Prefeitura de Londres (http://br.youtube.com/backboris). Mas, e no Brasil? Lamentavelmente, confirmamos no ambiente das redes digitais a tradicional incompreensão dos partidos de esquerda da importância dos meios de comunicação. Despreparadas, as cúpulas partidárias preferem continuar agindo como impressionistas, seguindo “as câmeras de TV” e deixando a acordos lamentáveis os ataques obscuros à rede e à liberdade dos fluxos de informação.

A internet surgiu no cenário da Guerra Fria, de um projeto militar norte-americano e da reordenação das verbas e projetos de pesquisa dos Estados Unidos diante do então considerado avanço tecnológico soviético (fim dos anos 1950). Mas, logo a comunicação descentralizada de computadores em redes digitais que transferiam pacotes redundantes de informação foi deixada para os acadêmicos e para os hackers – termo originalmente empregado para os aficionados por códigos que desenvolvem programas de computador com excelência e qualidade. Como mostra o sociólogo Manuel Castells, o filósofo Pekka Himanen e a antropóloga Gabriella Coleman, a cultura hacker influenciou decisivamente o formato tecnológico da internet. A rede não tem um dono, não é controlada por nenhuma empresa, seus protocolos essenciais foram e são desenvolvidos com colaborações, sem patentes nem restrições de uso. Essa dinâmica fez com que Bill Gates afirmasse no início dos anos 1990 que ninguém aceitaria passar seus dados por uma rede que não tivesse um proprietário. O ex-monopolista se enganou.

Como bem esclareceu no lançamento do consórcio W3C, em São Paulo, um dos pioneiros da internet brasileira, o professor Demi Getschko: “A internet trabalha por camadas. A simplicidade do seu núcleo é que permitiu a adesão imediata de todas as outras redes existentes. Toda a complexidade da rede está em suas beiradas, em suas aplicações”. A internet é uma rede inacabada, não é um produto, é um arranjo de comunicação. Devido a seu processo de desenvolvimento baseado na liberdade, podemos criar conteúdos, formatos e tecnologias. Tim Berners-Lee não pediu autorização a ninguém para criar o protocolo HTTP, que tornou viável, no início dos anos 1990, a famosa web, uma das aplicações da internet que muitos confundem com a própria rede. Essa liberdade é que está em questão hoje.

A rede viabilizou a livre participação popular na produção e distribuição de conteúdos, coisa que a indústria cultural tinha colocado sob o seu total controle. A rede está destruindo as atividades de intermediação. O professor Henry Jenkis afirma que a rede expressa a cultura da convergência que está reconfigurando o modo de criar. Isso é evidente, pois nunca foi tão fácil compartilhar conhecimentos e bens culturais. A web é o maior repositório de informações já construído pela humanidade. Entre as dez maiores audiências da internet, estão os mecanismos de busca, como Yahoo e Google, e os sites de mensagens instantâneas, MSN, mas todos os demais são sites colaborativos em que os internautas produzem seu próprio conteúdo (YouTube, MySpace, Orkut, Wikipédia). Certamente, a participação é assimétrica, mas existe um grupo ativo de internautas que já ultrapassou milhões de pessoas em todo o mundo.

Exatamente quando compartilhar bens culturais se tornou tão fácil é que a velha indústria cultural e boa parte da indústria de telecomunicações querem impedir que essas características sociais se ampliem por intermédio da tecnologia. Repare que a indústria fonográfica deveria desconfiar que todas as pessoas que tinham gravadores K-7 faziam cópias de suas músicas preferidas nos anos 1970. Quando surgiu o reprodutor de CDs, o então presidente da associação de empresas cinematográficas de Hollywood (MPAA), Jack Valenti, tentou impedir judicialmente a sua fabricação e comercialização. Ironicamente, hoje os filmes de Hollywood rendem mais em cópias residenciais do que em salas de cinema. Repare que, enquanto não era pública e amplamente realizada a antiga prática de emprestar bens culturais, fotocopiar livros e gravar em uma fita K-7 os vinis do seu vizinho ou primo, era chamado de uso justo de obra protegida pelo copyright. Sem dúvida, o uso justo é a base da existência das bibliotecas e videotecas. O uso justo é o individual ou comunitário, sem finalidade de lucro.

A expansão da rede mundial de computadores permitiu que a antiga prática legítima das pessoas fosse realizada amplamente. Até porque no caso de bens digitais a pirataria é uma péssima metáfora. Músicas, vídeos, arquivos digitais, como dizem os economistas, não possuem rivalidade no uso, podem ser copiados infinitamente, sem desgaste do original. Quando se copia um arquivo digital não se está pilhando um navio. Quando se rouba uma bolsa, a vítima fica sem, quando dou uma cópia do meu livro digital para alguém ele continua comigo. A indústria de intermediação cultural sabe disso e reagiu. Ela quer criminalizar as possibilidades de compartilhamento na rede. Quer impor uma lógica de completa mercantilização da cultura e pretende liquidar as práticas solidárias do empréstimo, da colaboração, além de buscar evitar as práticas recombinantes e as remixagens de arquivos que caracterizam a cibercultura.

Como bem aponta o jurista Lawrence Lessig, a indústria dos intermediários quer substituir a cultura da liberdade pela da permissão. Quer impor na internet a lógica que impuseram na comunicação de massas do mundo industrial. Quer enrijecer as leis de propriedade intelectual que tratam idéias como coisas. Quer alargar os prazos de negação de acesso das obras culturais, impedindo que caiam mais rapidamente em domínio público.

Uma onda conservadora coloca a internet sob ataque. Os valores dos pioneiros da rede, dos hackers e acadêmicos estão sendo combatidos em vários países. A internet tornou-se demasiadamente estratégica para continuar livre do controle das corporações, pensam os ideólogos de Hollywood, os dirigentes das companhias de Telecom que perderam bilhões de dólares com a invenção da Voz sob IP, entre outros arautos do controle. O ultradireitista Nicolas Sarkozi acaba de aprovar uma lei na França que obriga os provedores de acesso a desconectar e a delatar os usuários de redes P2P. A Inglaterra pós-Tony Blair segue o mesmo caminho, aprovando uma lei semelhante. Felizmente, o ultraconservador Sarkozi foi derrotado no Parlamento Europeu, não conseguindo estender o bloqueio às redes de compartilhamento sem centro, par a par, para todo o Continente.

No Brasil, o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) queria exigir de todos os internautas a identificação positiva para que se acessasse a rede em território nacional, dito mais simplificadamente, o conservador queria acabar com a navegação anônima na rede. Como tal absurdo somente tornaria o rastro digital das pessoas de bem completamente visível para os criminosos, este artigo foi retirado do projeto. Para tentar aprovar as outras aberrações, inclusive o controle das redes P2P e a criminalização do uso justo de obras protegidas pelo copyright, o senador Azeredo incluiu:

1. o artigo de combate à pedofilia, centrando aí a promoção do projeto. Em meio à comoção de ações de desmantelamento de redes de pedofilia,

2. o senador percebeu que era hora de atacar e conseguiu aprovar seu projeto no Senado. Graças à ação de alguns senadores, o projeto aprovado foi melhorado. Ainda é nefasto, mas poderá ser alterado na Câmara, o que não será nada fácil devido ao desconhecimento da maioria dos parlamentares do que está em jogo.

Como a lei do copyright tem sido ineficaz para coibir a troca de arquivos digitais devido ao princípio do uso justo, para fins pessoais e não comerciais, o grupo de Azeredo quer criminalizar esta prática de outro modo: pela violação de dispositivo de segurança. Para se copiar é preciso acesso. O acesso só poderá ser realizado de acordo com as regras do dono do dispositivo. Se a proposta de Azeredo tivesse sido aprovada em 2007, os milhares de internautas que obtiveram nas redes P2P a cópia do filme Tropa de Elite teriam sido criminalizados. Por quê? Por “obter ou transferir, sem autorização ou em desconformidade com autorização do legítimo titular da rede de computadores, dispositivo de comunicação ou sistema informatizado, protegidos por expressa restrição de acesso, dado ou informação neles disponível” (Art. 285-B). Trata-se da nova linha de criminalização do compartilhamento e das práticas de remixagem com a aniquilação do uso justo de arquivos cerceados pelo copyright.

Quando se trata de restringir liberdades e direitos de comunicação não podemos aceitar redações confusas ou que gerem incertezas. Como bem defendia Norberto Bobbio, o Estado de Direito se baseia no poder discricionário e não arbitrário das interpretações dos membros da Justiça. A lei do tucano Azeredo tem artigos encomendados pelas Redes de TV a cabo, pela RIAA (associação da indústria fonográfica norte-americana), pela MPAA, tão ruins que podem ser instrumento para tornar milhares de internautas, fanfics, funsubbers, gamers, tradutores de mangás, ativistas das redes P2P e outros em criminosos. A lei de Azeredo é a lei da incerteza. Ela permite interpretações perigosas e inaceitáveis de vários de seus artigos. Esperamos que os deputados consigam perceber que juntamente com os artigos que permitem atuar contra crackers, ladrões de senhas, spammers e pedófilos, Azeredo quer contrabandear a criminalização do compartilhamento, das redes P2P e do uso justo de obras culturais.

Bibliografia

Benkler, Yochai. The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom. Disponível: http://www. benkler.org/wealth_of_networks/index. php?title=Download_PDFs_of_the_book

Bobbio, Norberto. O Futuro da Democracia: Uma Defesa das Regras do Jogo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

Castells, Manuel. A Galáxia da Internet: Reflexões Sobre a Internet, os Negócios e a Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

Himanen, Pekka. A Ética dos Hackers e o Espírito da Era da Informação: a Importância dos Exploradores da Era Digital. Rio de Janeiro: Campus, 2001.

Jenkins, Henry. Convergence Culture: Where OId and New Media Collide. New York: New York University Press, 2006.

Lessig, Lawrence. Cultura Livre: Como a Grande Mídia Usa a Tecnologia e a Lei para Bloquear a Cultura e Controlar a Criatividade. São Paulo: Trama 2005.

Lévy, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

Silveira, Sérgio Amadeu da. “Redes Virais e Espectro Aberto: Descentralização e Desconcentração do Poder Comunicacional”. In: Comunicação Digital e a Construção dos Commons: Redes Virais, Espectro Aberto e as Novas Possibilidades de Regulação. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.

Smiers, Joost. Artes sob Pressão: Promovendo a Diversidade Cultural na Era da Globalização. São Paulo: Escrituras Editora: Instituto Pensarte, 2006

Sérgio Amadeu da Silveira é sociólogo e doutor em Ciência Política, professor-titular da Faculdade Cásper Líbero. Foi membro do Comitê Gestor da Internet (2003-2005) e presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (2003-2005). É ativista do software livre