Cultura

Antonio Candido passou a vida como professor, ofício do qual nunca deixou de se orgulhar

O lugar que Antonio Candido ocupa em nossa cultura é múltiplo. De saída, há que destacar seu papel numa reflexão de que é pedra angular o livro de 1959, Formação da Literatura Brasileira. Ali procura retomar, a seu modo, o esforço de obras magistrais, como Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

Foto: Guilherme Maranhão

Antonio Candido passou a vida como professor, ofício do qual nunca deixou de se orgulhar. Sua matéria, no departamento que criou na USP, se intitula Teoria Literária e Literatura Comparada, desde então se disseminando e dando nome a perto de uma centena de departamentos similares pelas universidades do Brasil afora. Até então, estudava-se literatura brasileira, literatura portuguesa, literatura inglesa, literatura francesa, e assim por diante: tornou-se possível retirar os estudos literários da camisa-de-força da província, conferindo-lhes envergadura para sobrevoar as fronteiras nacionais. Para isso, são cruciais tanto o alcance teórico quanto a perspectiva comparatista. Passou em revista, assimilando o que filtrasse por seu crivo crítico, as principais doutrinas que embasam tais estudos, como a tradicional escola francesa, a filologia alemã e espanhola, a psicocrítica, a sociologia da literatura, o New Criticism inglês e norte-americano, o estruturalismo, os “círculos lingüísticos” e o legado brasileiro, aparando-lhes com firmeza as arestas onde fosse necessário, quando tendessem ao fundamentalismo ou à visão única. Viria assim a elaborar um método próprio, integrativo, em que o primado do estético seria reafirmado, porém com reforço advindo da informação histórica, psicológica e sociocultural do contexto.

O lugar que ocupa em nossa cultura é múltiplo. De saída, há que destacar seu papel numa reflexão de que é pedra angular o livro de 1959, Formação da Literatura Brasileira. Ali procura retomar, a seu modo, o esforço de obras magistrais, como Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Jr., e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

É nesse livro que Antonio Candido desenvolve o argumento de que tal formação pode ser vista como se, a partir de certo momento, fosse comandada pelo desejo dos brasileiros de construir uma literatura que expressasse o país. Ao mesmo tempo, essa literatura deveria marcar sua diferença em relação à matriz: o que se faria mediante adaptação de modelos. Os escritores vão-se impregnando dos modelos que vêm da Europa e adaptando-os às condições locais, o que, justamente, vai dar resultados de extrema originalidade. Quando a literatura brasileira deixa de se referir a eles e passa a auto-referir-se, é que chegou ao ponto de maturidade. E o argumento será depois estendido por outros estudiosos a diferentes ramos da cultura.

Antes e depois da Formação, foi publicando volumes que reuniam ensaios avulsos: Brigada Ligeira, O Observador Literário, Literatura e Sociedade, Tese e Antítese, Vários Escritos, Teresina Etc., A Educação pela Noite, Na Sala de Aula, O Discurso e a Cidade, Recortes, O Albatroz e o Chinês, entre outros. Nesses livros alia, sem pedantismo, a abrangência da erudição à finura da sensibilidade. Estuda outros repertórios que não o brasileiro, embora este esteja sempre presente, nem que seja como horizonte. Move-se à vontade entre Dostoievski e Proust, entre Shakespeare e Stendhal, entre Verga e Baudelaire, sem esquecer os mais remotos teóricos europeus das origens do romance; ou então elege e discrimina, entre os poetas nativos, os baudelairianos e os pantagruélicos. Estudou tanto os escritores dos tempos coloniais como os mais recentes. Sem contar que, no exercício da crítica de livros novos, se dedicou incansavelmente a perquirir já no lançamento os mais relevantes dentre os poetas e ficcionistas seus contemporâneos, à medida que iam surgindo. Desse modo, vai fornecendo ao leitor, ao longo de sua obra, um panorama completo do que houve em nossas letras no período, indo desde a poesia modernista, passando pela prosa do regionalismo, até as produções que marcaram uma superação de ambas.

Erigiu em princípio condutor a meta de identificar no interior das obras o traço exterior reelaborado, e grande parte de seus trabalhos concentra-se nisso. Mas nem por isso deixa de ser autor de algumas das mais belas análises formais entre nós, como o comprovam, na Formação, dois tópicos que são descobertas suas: as metáforas na poesia do Arcadismo e a ruptura dos cânones do verso no Romantismo. Ou, no campo da prosa, a simbolização das cores em A Taverna, de Zola, e dos espaços, em O Cortiço, de Aluísio de Azevedo. Ou ainda, na poesia, os ensaios sobre Rimbaud, François Villon, Murilo Mendes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, onde o que não pertence estritamente à obra como que fica entre parênteses.

Uma de suas conquistas é a clareza da escrita, que sempre fez questão que fosse de máxima acessibilidade. Sem concessões nem barateamento, o que seria menosprezar o leitor. Nessa ordem de raciocínio, suas preocupações levaram-no a questionar a relação entre literatura e privilégio, porque, em princípio, ela não deveria ser apanágio de poucos, mas sim um dos direitos humanos: o que é um postulado original, além de avançado.

Walnice Nogueira Galvão faz parte do Conselho de Redação de Teoria e Debate, foi aluna e se tornou primeira-assistente de Antonio Candido na USP.