Nacional

Além de mostrar em toda a sua crueza os limites profissionais da cobertura da imprensa e seus interesses, o processo eleitoral passado trouxe de volta o tema da redemocratização das comunicações para a agenda política nacional

Uma das características mais marcantes das eleições de 2006 foi, sem dúvida, a atuação da mídia, quase toda ela crítica às candidaturas de Lula e do PT, quando não em posição visceralmente contrária. Essa partidarização da mídia coloca sérias questões para o aprofundamento da democracia brasileira e para a avaliação dos resultados eleitorais, pois tal intervenção político-eleitoral não pode ser menosprezada. Apesar dessa problemática intervenção, Lula e o PT saíram vitoriosos das eleições de 2006: Lula foi eleito presidente com 60,8% dos votos válidos; o PT aumentou o número de governos estaduais de três para cinco e foi o partido mais votado para a Câmara dos Deputados, ainda que não tenha eleito a maior bancada e seu número de deputados federais tenha diminuído em relação ao pleito de 2002.

A vasta bibliografia existente no país sobre comunicação e política e mídia e eleições (ver www.cult.ufba.br) aponta para uma série diferenciada de estratégias da mídia na cobertura das recentes eleições presidenciais brasileiras. Na primeira delas, em 1989, tivemos os favorecimentos explícitos, como, por exemplo, a já famosa manipulação do debate final de Collor e Lula pela Rede Globo, no segundo turno. Em 1994 a predominância dos apoios indiretos, por meio de posicionamentos sistemáticos favoráveis ao Plano Real, levou muitos analistas a falar em uma eleição do real, e não de FHC. Em 1998 houve um grande silenciamento por parte da mídia em relação aos problemas do governo – incluindo as inúmeras denúncias de corrupção, em total contraste com o que se verá em 2006 – e ao próprio processo eleitoral, além do clima de reeleição antecipada de FHC, assumido pela mídia. Em 2002 ocorre uma superexposição da eleição, com o pretexto de dar condições idênticas aos candidatos, mas a mídia lhes impõe, de modo sutil, uma agenda e um leque de compromissos a serem assumidos sobre temas de seu interesse, como a manutenção da política econômica.

A cobertura das eleições

Parecia que o posicionamento aberto e a intervenção direta da mídia no processo eleitoral estariam superados no Brasil, em prol de uma atitude mais profissionalizada e jornalística, ainda que ela comportasse interferências mais sutis. Mas as eleições de 2006 mostraram em todo a sua crueza os limites profissionais da cobertura da imprensa, seus interesses e posicionamentos, além de fazer emergir em plenitude o vital tema da democratização das comunicações no Brasil.

Cabe registrar a tendência de uma busca desenfreada pelo escândalo na cobertura jornalística da política no Brasil recente e, por certo, em outros países. Tal busca envolve, sobretudo, temas como corrupção e deslizes de variadas espécies na vida pessoal. Ou seja, uma atitude que reduz, em notável medida, a política a uma dimensão puramente moralizante, sob o pretexto de obter uma política conjugada com a ética.

Não resta dúvida de que os tempos atuais de crise da política nas sociedades contemporâneas reivindicam uma reinvenção da política, que incorpore uma essencial dimensão ética e utópica, assim como imagine em novos patamares a fundamental dinâmica entre representantes e representados e, inclusive, busque combinar a democracia representativa com inventivas modalidades de democracia direta. Mas pode-se afirmar que não é esta a diretriz que tem orientado a cobertura política recente na mídia brasileira e quiçá de muitos outros países.

O que tem acontecido com a febre do escândalo não se insere, a rigor, nesse horizonte. Tal exacerbação tem transformado toda avaliação da política em uma questão apenas moral, esquecendo outras dimensões essenciais para uma avaliação consistente da política. Por exemplo, os governos deixam de ser avaliados pelas políticas gerais e setoriais que desenvolvem. Isto é: pelas políticas, estatais ou públicas, formuladas e implementadas que têm vital ressonância na vida dos cidadãos e no presente e futuro da sociedade. A cobertura jornalística, por vezes até bem-intencionada, paradoxalmente, em vez de nos dar uma política com ética, tem esquecido a política e colocado em seu lugar a moral.

Nesse sentido, o caráter assumido pela cobertura jornalística do escândalo político pós-maio de 2005 dificultou uma avaliação, acadêmica ou cidadã, mais consistente do governo Lula, das políticas formuladas e implementadas, das suas promessas e realizações e de seus projetos e ambigüidades. Pior que isso, o predomínio assumido por essa visão moralizante da política serviu, em alguns casos facilmente detectados na imprensa, por sua virulência e por sua relevância na constelação da mídia brasileira, para esgrimir uma luta política que sepulta, muitas vezes, o conhecimento e o fazer jornalísticos.

Em resumo: no pleito de 2006 a mídia colaborou intensamente para a antecipação da campanha eleitoral, iniciada, a rigor, em maio de 2005; assumiu, quase sem exceções, uma postura radicalizada contra o governo, contra Lula e contra o PT, através de um discurso udenista moralizante, e se tornou um ator político de primeira linha e nada desprezível nas eleições.

A novidade de 2006

Entretanto, a grande novidade na análise das relações entre mídia, política e eleições de 2006 não é a atuação política assumida pela mídia, que em razoável medida retrocede a uma postura partidarizada como a de 1989. Mas sim o enorme descompasso e o acentuado contraste entre a ampla, e muitas vezes feroz, cobertura predominantemente contrária ao governo, ao PT e ao candidato presidente Lula e a posição favorável à reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva, expressa pela parcela majoritária da população brasileira, em especial em seus setores populares, através de inúmeras sondagens de opinião e dos resultados do primeiro turno e, sobretudo, do segundo. Neles, Lula obteve, respectivamente, 46.661.741 votos (48,6% dos votos válidos) e 58.295.042 votos (60,8%), maior votação absoluta e a segunda maior votação relativa de um candidato à Presidência no Brasil.

Por conseguinte, o descompasso, enorme e persistente, entre a cobertura da mídia, que busca legitimar-se como porta-voz da opinião pública, e a postura majoritária da população torna-se, por certo, o tema mais significativo e enigmático desta cobertura da imprensa.

Venício Lima tem chamado atenção para esse aparente paradoxo que, de algum modo, põe em xeque o poder da mídia na sociedade brasileira1. A postura da quase totalidade da grande imprensa contra o governo não impediu a persistência do apoio majoritário da população à reeleição de Lula. As explicações do autor para tal fenômeno são variadas. Ele lembra, por exemplo, a comunicação direta que Lula vem fazendo com o povo brasileiro, através de viagens, discursos e de um programa produzindo pela Radiobrás, retransmitido semanalmente por cerca de 1.300 emissoras 2. Mas Venício coloca no centro de sua análise, como principal fator explicativo do descompasso, a emergência de uma complexidade de mediações oriundas da sociedade civil em expansão e consolidação no país. Desse modo, a cobertura da imprensa teria seu poder relativizado por essa mediação. A formulação do autor está expressa nas seguintes palavras: “A hipótese nova é que parcela importante de nossa sociedade civil, praticamente excluída do acesso à mídia impressa, estaria hoje em condições de multiplicar as mediações das mensagens recebidas por intermédio de suas inúmeras e diferentes formas de organização. Na verdade, a “massa” estaria sendo diluída não pela fragmentação da audiência da grande mídia em segmentos (nichos) de consumo, mas em formas organizadas de cidadania”3.

Atento a tais transformações e em uma perspectiva algo similar, o comentarista político Franklin Martins sugere que o antigo padrão de formação da opinião pública no Brasil estaria mudando em profundidade4.

Conforme Franklin Martins, esse padrão estaria em xeque com a consolidação de uma parcela da população, intitulada em geral como “classe C” (com ganhos de dois a cinco salários mínimos). Segundo estatísticas recentes, por volta de 6 milhões de brasileiros foram incorporados a essa “classe”. Para Franklin Martins,  “a partir de agora é a classe C que vai formar opinião. É um fenômeno novo, que vamos ter que estudar”.

A mídia e a novidade

Em geral, a imprensa, cega pela luta eleitoral, não foi capaz de observar a novidade e dar a devida atenção a esses acontecimentos. Pelo contrário, buscou sempre desqualificar a persistência dessa opinião majoritária e dissonante, por meio do acionamento de velhos dispositivos. Para ela trata-se tão-somente de uma adesão ilegítima dos pobres ao poder em decorrência da atuação do governo, considerada pela grande mídia como meramente assistencialista. Nessa perspectiva, são sempre citados programas como o Bolsa-Família, que atinge hoje por volta de 11 milhões de famílias. A adesão é então “explicada” recorrendo a expedientes tradicionais da política brasileira, como populismo e fisiologismo, além do carisma de Lula. Em síntese, a adesão não decorreria de relações de representação e interesses genuínos, porque a população não teria nem mesmo autonomia e capacidade para traduzi-los em opiniões.

A desqualificação torna-se ainda mais contundente porque vem sempre associada a outra exigência. A grande imprensa, com seu discurso moralizante, cobra a adesão de todos – inclusive dos marginalizados – a essa cruzada. Assim, a postura da maioria da população é mais uma vez criticada, agora por seu desleixo com a questão ética. Assistencialismo e desprezo pela ética seriam os signos “explicativos” da rebeldia da população frente à posição majoritária imposta pela imprensa, em plena consonância com os partidos de oposição. Em verdade, a atitude da grande mídia transpira elitismo.

Cabe fazer uma reflexão sobre essa interpretação, desenvolvida pela grande imprensa, acerca da persistência da votação em Lula, apesar de toda a blitz da mídia, realizada desde meados de 2005. A supremacia da dimensão moralizante é tão avassaladora na cobertura da mídia que faz submergir e mesmo bloqueia a circulação de informações e de análises que permitam uma avaliação mais consistente das políticas do atual governo. Em nome de uma cruzada que pretensamente busca uma política com ética, produz-se uma cobertura na qual a dimensão moralizante (e não mais a ética) toma o lugar da política. Difícil crer que essa postura moral e despolitizante, mas partidarizada ao extremo, possa balizar de modo rigoroso uma crítica à posição assumida pela maioria da população, atribuindo a ela a pecha de despolitizada, sem mais.

Pode-se propor que as convergências entre as teias de organização da sociedade civil e os novos segmentos de classe em processo de fortalecimento estejam possibilitando uma atitude crítica de formação de opinião, com variáveis graus de autonomia frente aos tradicionais formuladores da opinião pública, incluindo a mídia e os setores médios. Esse procedimento permitiria uma avaliação das políticas de governo sob a ótica própria desses segmentos populares.

Tereza Cruvinel – colunista do jornal O Globo e crítica do governo, como a quase totalidade dos colunistas da grande mídia – elaborou, ancorada em pesquisas, um trecho bastante elucidativo sobre o tema: “Muito se escreveu, com frustração ou preconceito, sobre a suposta leniência brasileira com a corrupção. Houve até uma pesquisa sustentando que os mais pobres, os mais negros e os menos escolarizados têm menor exigência ética que os mais ricos, brancos e cultos. O eleitorado voltou a Lula não por complacência nem por causa de seu carisma, que não evitou três derrotas. Pesquisas qualitativas captaram uma outra razão. Nelas, os grupos de discussão diziam não aprovar as transgressões petistas, mas diziam, também, que elas não eram inaugurais na política brasileira. Diziam também não acreditar que se tratava do “maior esquema de corrupção do mundo” nem na santidade da oposição. Acabou prevalecendo, no julgamento, o desempenho do governo sobre seu déficit ético, que continua existindo”5.

Assim, diferentemente do que publicizava com insistência a mídia, a população não menosprezou o tema da ética, mas foi capaz de olhá-lo criticamente e discernir no embate político o caráter de seus atores, além de – e isto é fundamental – fazer uma avaliação de caráter político, e não tão-somente moral do governo, como pretensamente pretendiam a oposição, a mídia e setores das classes médias.

Para comprovar essa postura de julgamento político, independente e consciente da maioria do eleitorado, torna-se necessária uma rápida incursão, com base em alguns dados oficiais6, sobre as políticas, em especial aquelas que têm maior relação e repercussão na vida desses setores sociais. Com este recurso aos dados, tomados como condensações de políticas, pretende-se elucidar, mais uma vez, a existência ou não de outros fatores, para além do assistencialismo, que possam explicar o apoio ao presidente candidato. Um quadro comparativo pode contribuir para este empreendimento analítico.

Indicadores gerais dos governos FHC (1995-2002) e Lula (2003-2006)

Indicadores

FHC (2002)

Lula (2005)

Índice de desigualdade social

0,573

0,559

Participação dos mais pobres na renda

14,4%

15,2%

Desemprego no país

12,2%

9,6%

Criação de empregos

700 mil

6 milhões

Valor do salário mínimo (em US$)

55

152

Inflação

12,53%

2,8%

Transferência de renda (em R$)

2,3 bilhões

7,1 bilhões

Empréstimo para habitação (em R$)

1,7 bilhão

4,5 bilhões

Compra de terras para Reforma Agrária (em R$)

1,1 bilhão

2,7 bilhões

Crédito para agricultura familiar (em R$)

2,4 bilhões

6,1 bilhões

Eletrificação rural

2,7 mil

3 milhões

O quadro, ainda que não exaustivo, aponta para um conjunto de políticas, nem todas de fácil inclusão na rubrica assistencialismo, com foco e repercussão socioeconômicos pronunciados, ainda que diversos questionamentos possam ser formulados sobre elas.

Portanto, não parece insensato imaginar que a conjunção entre as novas circunstâncias apontadas por Venício Lima e Franklin Martins e tais políticas possa ter levado uma parcela significativa da população a considerar que elas atendiam e representavam seus interesses. Enfim, em lugar de aderir à opinião, moralizante e contraposta a Lula, construída pela mídia e por setores das classes médias, os segmentos populares, com base em seus interesses e em sua avaliação das políticas de governo, teriam, de modo independente, formulado suas opiniões e se colocado efetivamente como sujeitos políticos, capazes inclusive de influir sobre outros atores políticos, mudando suas opiniões e votos, como aconteceu em relação a outras camadas sociais, até mesmo médias, no segundo turno da eleição presidencial de 2006.

Algumas observações

Diferentemente do de FHC, o governo Lula nunca contou com um apoio confiável da mídia. Houve tão-somente um certo apoio conjuntural, seja pela tradição governista de alguns veículos, seja por alguns interesses em jogo. O governo, por seu turno, abriu mão de colocar na agenda pública da política o tema da democratização das comunicações.

Uma das poucas iniciativas governamentais que causou polêmica sobre o tema teve origem no Ministério da Cultura, que propôs a transformação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) em Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav). O projeto buscava regular a área audiovisual no país e sofreu brutal oposição de quase toda a imprensa, que não aceita que a comunicação seja regulamentada e tenha controles da sociedade, como qualquer outra esfera social, em circunstância democrática. Censura, stalinismo e outras expressões, de campo semântico semelhante, foram sacadas para interditar o projeto. Logo, ele foi retirado de cena pelo governo, que prometeu, em seu lugar, criar uma lei geral das comunicações, inexistente no país7. É bom lembrar que a legislação brasileira na área remonta ao ano de 1962.

A proposta de criação do Conselho Nacional de Jornalismo, deliberada pela Federação Nacional de Jornalistas e encampada pelo governo, também suscitou intensa polêmica de igual teor. Outra vez, a ampla maioria da mídia se colocou visceralmente contra essa outra modalidade de controle social da comunicação.

As eleições de 2006 trouxeram de volta o tema da democratização das comunicações para a agenda política nacional do mesmo modo que outros temas vitais para a democracia brasileira, tais como a reforma política. Seu enfrentamento, por certo complexo e delicado, não pode ser mais uma vez adiado, pois a democracia na sociedade e no Brasil contemporâneos não pode existir sem a pluralidade do espaço público eletrônico e sem a democratização das comunicações.

Bibliografia

COLLING, Leandro. “Os estudos sobre mídia e eleições presidenciais no Brasil pós-ditadura.” Salvador, Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA, 2006 (tese de doutorado).

RUBIM, Antonio Albino Canelas. “Espetáculo, política e mídia”, in FRANÇA, Vera; WEBER, Maria Helena; PAIVA, Raquel; SOVIK, Liv (orgs.). Estudos de Comunicação. Porto Alegre, 2003, v.1, pp. 85-103.

RUBIM, Antonio Albino Canelas e COLLING, Leandro. “Mídia, cultura e eleições presidenciais no Brasil contemporâneo”, in CORREIA, João Carlos (org.). Comunicação e Política. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2005, pp. 11-44.

Antonio Albino Canelas Rubim é professor da Universidade Federal da Bahia, pesquisador do CNPq e coordenador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura