Estava aberto o caminho para um governo de juízes, que coloca a sentença em oposição ao voto e a técnica no lugar da soberania popular
Estava aberto o caminho para um governo de juízes, que coloca a sentença em oposição ao voto e a técnica no lugar da soberania popular
Com o passar do tempo foi construída uma teoria que, a pretexto de efetivar os direitos constitucionais, substituiu a política e o Parlamento pela supremacia judicial, gerando um déficit de legitimidade. Estava aberto o caminho para um governo de juízes, que coloca a sentença em oposição ao voto e a técnica no lugar da soberania popular
A Constituição brasileira decorre do Parlamento brasileiro, mais especificamente de uma Assembleia Constituinte que, convocada pela soberania popular, obteve mandato para, em nome do povo brasileiro, substituir o regime autoritário por um coerente com a redemocratização.
Promulgada a Constituição, houve sua apropriação pelos juristas, resultando na transformação de tal documento de político em estritamente jurídico.
A democracia, a política e o Parlamento foram progressivamente mitigados e em seu lugar houve a construção de uma teoria que, a pretexto de efetivar os direitos constitucionais, os substituiu pela supremacia judicial, operada pela complementaridade entre controle de constitucionalidade e mutação constitucional, ocasionando um déficit de legitimidade.
Os momentos de tal processo são: a transformação do processo constituinte em processo apartado da política, de modo a produzir um fetiche do poder constituinte segundo o qual a assembleia constituinte exerceria poder absoluto, e não poder representativo; construída a imunização do poder constituinte em relação à política, as intervenções desta na ordem constitucional foram tidas como maculadoras de sua pureza, instalando-se uma dicotomia entre democracia e Constituição; e, com o propósito de conservar a pureza e a magia da ordem constitucional, purificando-a da política, justifica-se o caminho que possibilita a interdição da política pelos tribunais, com o respectivo impedimento do processo político, com a transformação das eleições em ato judiciário, com a criminalização da política e sua judicialização e, por fim, com a substituição do Parlamento como foro legitimado para produzir as normas jurídicas (constitucionais e legais) pelos tribunais, operada pela interpretação constitucional, seja com o controle de constitucionalidade, seja pela mutação constitucional. Desse modo, caminha-se para um governo dos juízes, no qual a sentença substitui o voto e a soberania popular é substituída pela técnica.
Esse processo de interdição da política precisa ser substituído por um projeto que revigore a democracia e lhe restitua a tarefa de estabelecimento do futuro. Aos tribunais compete tarefa retrospectiva, isto é, de manutenção daquilo que democraticamente fora deliberado; e às instâncias políticas, a construção do que deve ser.
Por conseguinte, caberia à democracia a última palavra sobre o que é válido do ponto de vista jurídico. É imprescindível uma reforma política democrática que estabeleça o financiamento público de campanha, a fidelidade, a lista partidária, a revisão do papel do Senado e novas regras atinentes às relações entre os poderes. Visamos fortalecer o princípio democrático segundo o qual "o poder emana do povo".
A crise da democracia e qualquer crise, inclusive a política só tem solução na democracia.
Por isso propomos a transformação do Senado Federal em câmara revisora, à qual caberia a revisão dos atos tanto do legislador positivo (a Câmara dos Deputados) quanto do legislador negativo (o Supremo Tribunal Federal). A última palavra da democracia seria operada pela Revisão Parlamentar do Controle de Constitucionalidade.
O poder da constituinte e do Parlamento
O que distingue o poder constituinte do processo legislativo? Ambos decorrem da soberania popular, do poder que emana da associação dos cidadãos. O poder que torna possível a Constituição torna possível também os códigos e as leis.
É a autorização expressa (o voto) dos cidadãos que dota a assembleia constituinte do poder necessário para constituir todas as relações. Sua autoridade criativa repousa antes na faculdade que detêm os sujeitos de direito para criar uma nova realidade jurídica do que em um ato fundante. Assim, os cidadãos são livres e plenos de poderes para fazer tantos atos fundadores, constituintes, quanto acharem conveniente, isso porque o ato fundador congênere do poder constituinte é tão somente uma convenção.
Por uma faculdade do livre dispor, a soberania dos cidadãos (os sujeitos de direito) põe em marcha a formulação das novas engrenagens da sociedade, e a soberania do cidadãos detém o poder constituinte, que convoca a assembleia especialmente para dispor sobre aquilo para o qual foi convocada.
São os sujeitos de direito, em ato soberano, que conferem existência e autorizam o exercício do poder constituinte.
O poder constituinte é a formalização da soberania de sujeitos que, associadamente e por portarem direitos decorrentes do processo cultural e civilizatório, materializam seus anseios por uma nova ordem jurídica ao dotar a assembleia de uma faculdade constitutiva em exercício. O poder constituinte não é sede de poder algum, detém apenas o exercício de uma faculdade que emana dos cidadãos. Não há de se falar tampouco em poder originário, porque o poder não se origina no ato fundante, nem na assembleia convocada para constituir o sistema jurídico. Origina-se dos cidadãos, por intermédio de projeto orquestrado pelos sujeitos de direito de constituir um sentido às normas e estruturá-las conforme o sentido atribuído.
A distinção entre poder constituinte e processo legislativo não remonta à origem, mas ao modo de seu exercício. Isto é, não há distinção categorial que oponha um ao outro, mas os dois processos comungam da mesma gênese. Fundando-se no poder dos cidadãos, tanto o processo constituinte quanto o processo legislativo permitem a atualização de um poder que estrutura a liberdade e a perpetua por meio de um ordenamento concatenado. Interpor-se, obstruindo a passagem da estrutura da liberdade (a Constituição) à sua ordenação concatenada (o Código), seria uma das grandes armadilhas da modernidade, ao tornar indisponível à soberania popular exprimir-se por meio de um processo que se atualiza mediante um trâmite diversificado.
Portanto, cabe à ciência do direito articular a passagem da estruturação da liberdade à sua ordenação concatenada, estabelecendo degraus que criam momentos diferentes de aplicação da soberania, aplicação que se desdobra como forma de a soberania se prolongar, compreendendo o amplo espectro do processo legiferante.
O processo legiferante, como forma jurídica do poder político, desdobrar-se-ia nos seguintes passos: 1) o poder soberano dos sujeitos de direito põe a assembleia constituinte e lhe infunde poder; 2) como exercício desse poder, a assembleia promulga as normas que exercerão o controle de validade das demais normas jurídicas; 3) somente um novo ato constituinte pode substituir o ato constituinte precedente. E em decorrência: 4) fica estabelecido quorum especial às emendas à Constituição, mais exigente e com tramitação diferente daquele do 5) processo legislativo, comumente de maioria simples.
Os processos constituinte e legislativo decorrem da soberania popular e, como formas de exercício da representação do poder político, circunscritos apenas aos cidadãos, não se distinguem entre si, tendo por isso mesmo apenas uma diferença quantitativa, mas de modo algum uma diferença qualitativa, pois o mandato de ambos é obtido da mesma fonte, ou seja, dos cidadãos.
A transformação da assembleia constituinte em instância apartada da política resultou em uma engenharia constitucional segundo a qual a representação do poder é deslocada das instâncias que decorrem do voto para as instâncias judiciárias, pois caberia à cúpula dos tribunais garantir a efetividade da Constituição, por um lado, e por outro, em substituição ao Parlamento, atribuir sentido às normas, pois mediante a interpretação constitucional fecha-se o círculo de judicialização da vida. Esse círculo submete a democracia deliberativa ao processo judicial por meio de uma complementaridade entre o controle de constitucionalidade e a mutação constitucional.
Acossada por um sistema jurídico que entende o Parlamento como maculador da assembleia constituinte, a sociedade vê-se alijada de formas de expressão de vontade e de representação, operada por um ativismo judicial que passa a ser o titular da formulação, da interpretação e da efetividade das normas, reunindo, sob seu arbítrio, as prerrogativas legislativas, judicativas e executivas.
Esse estado de exceção ganha efetividade mediante uma complementaridade institucional entre Estado Executivo e Estado Judicial, justificado pela complementaridade ideológica entre as teorias de Carl Schmitt (todo o poder ao Executivo) e de Hans Kelsen (todo o poder ao Judiciário); com a judicialização da política, operada pela submissão dos poderes políticos aos tribunais, com o respectivo controle judicial sobre as leis e sobre as políticas públicas; com o protagonismo da justiça eleitoral, que transforma as eleições em dia de luto, no qual os candidatos são substituídos pelos juízes e promotores eleitorais; e com o estabelecimento da submissão da Política à técnica, mediante a dicotomia entre Estado e governo, formulada pela blindagem das carreiras de Estado ante o resultado das urnas.
Política e Direito
É preciso dotar o Brasil de uma nova separação dos poderes.
O desafio é fomentar a opinião pública para um debate, com o qual o Brasil possa sobriamente aprender com as lições do passado e construir uma fundação mais sólida para a democracia no século 21, capaz de repor a questão da legitimidade.
A democracia atual requer um novo arranjo institucional, no qual as relações dos poderes se deem de modo complementar, sem a supremacia do Judiciário sobre o voto, sobre a Política, pois à política cabe pensar o futuro e solucionar as crises decorrentes do conflito entre as distintas visões de mundo. Ressalte-se: o mundo moderno é o reino das crises e, como tal, só à democracia cabe solucioná-las.
É preciso desinterditar a democracia, liberando a força criativa da política de modo que seja reconhecida à democracia o condão de dotar o direito e a constituição de legitimidade. A justiça se realiza nas situações de fato, situações que encontram formatação no encontro de vontades, sintetizadas apenas nos parlamentos, com as leis. Utilizando uma metáfora: a sentença é o retrovisor; a política, o para-brisa, isto é, a tarefa do Judiciário é retrospectiva, vez que a sentença é delimitada por aquilo que foi normatizado pelo Parlamento, enquanto a tarefa deste é prescritiva, ao estabelecer consensualmente (pela Política) o que deve ser.
Essa separação dos poderes seria empreendida com a reforma política, revisando a relação dos poderes.
Assim, o Parlamento federal, como bicameral, teria uma Casa Propositora, a Câmara dos Deputados, e uma Casa Revisora, o Senado Federal. Transformado o Senado em Câmara Revisora, a ele caberia estabelecer o controle sobre a Jurisdição Constitucional, assim como estabelecer o equilíbrio federativo. Do mesmo modo que o Parlamento tem a prerrogativa de derrubar veto do presidente da República, o Senado realizaria a Revisão Parlamentar do Controle de Constitucionalidade. Essa Revisão e uma ampla e democrática reforma política devolveriam ao ordenamento jurídico legitimidade, tornando efetiva a relação entre Direito e Política.
José Genoino é deputado federal (PT-SP) e vice-líder do partido na Câmara dos Deputados; foi presidente nacional do PT (2002 a 2005)
Luiz Moreira é mestre em Filosofia e doutor em Direito pela UFMG, pesquisador de Filosofia do Direito na Universidade de Tübingen, na Alemanha, e autor, entre outros livros, de A Constituição como Simulacro.