Mundo do Trabalho

Antonio Lucas Filho, secretário de assalariados e assalariadas da Contag, fala sobre acordo para melhorar condições de trabalho

Como foi o processo de construção do Compromisso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar, que contou com a participação de governo, trabalhadores e empresários?
Trata-se da primeira iniciativa que a Contag tomou em função de várias mortes que ocorreram no estado de São Paulo, noticiadas pela mídia nacionalmente. Passamos a cobrar do governo, durante os Gritos da Terra, uma discussão com o setor para melhorar as condições de trabalho da produção, já que as mortes têm a ver com isso. O governo federal então criou uma comissão nacional de trabalho, em 2008, e convidou a Contag, a Feraesp (Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado de São Paulo), a Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar) e o Fórum Nacional Sucroenergético. Sua posição era participar e mediar a discussão entre trabalhadores e empresários, no sentido de humanizar as relações de trabalho. Durante um ano, definimos pontos que deveriam ser debatidos, como contratação de migrantes, transparência na aferição na hora da pesagem da cana por metro ou tonelada, alimentação, transporte, questões da relação de trabalho, saúde e segurança. Um dos primeiros pontos que queríamos discutir era a forma de contratação, que é muitas vezes terceirizada. A proposta da Contag era que fosse feita diretamente pelas usinas. Fizemos mais de dez reuniões e chegamos ao termo do Compromisso, lançado no final do mês de julho.

Qual o significado da assinatura do Compromisso?  
Era preciso dar um caráter de responsabilidade das partes ao Compromisso, por isso, em nosso entender, tinha de ter lançamento e assinatura de adesão. Na verdade, tudo o que está no Compromisso é para que os usineiros cumpram questões que gostaríamos que avançassem além da legislação. Questões novas, acima da lei. Por isso cobramos do governo o lançamento e a adesão dos usineiros a esse termo de boas práticas das relações de trabalho, e assim aconteceu. E como será possível incorporar as empresas, já que não há contrapartidas, benefícios fiscais, por exemplo, com o Compromisso? Quais as vantagens para as empresas? Essa é uma pergunta bastante interessante, pois, se uns terão boas práticas e outros não e a adesão é voluntária, por que aderir? Os produtos da cana-de-açúcar, principalmente o álcool, disputam mercado, inclusive internacional, porque é energia mais limpa. Como a demanda por energia no mundo é muito grande, para que esse álcool ganhe mercado precisa ter uma espécie de selo social, ambiental. Ainda não temos uma proposta definitiva, mas, como o presidente Lula nos pediu para manter a Comissão com o objetivo de fazer cumprir o acordo, continuamos buscando alternativas para incentivar as empresas a aderir. Iremos descredenciar as que não cumprirem, estamos criando critérios e, além da Comissão e dos sindicatos de trabalhadores rurais, que monitoram e denunciam as empresas que ferem o Compromisso, provavelmente teremos uma entidade que monitore, produza relatórios, a exemplo do carvão, que é monitorado pelo Instituto  dão. Quando se trata de questões legais, o Ministério do Trabalho é acionado. O governo pensa em criar um selo para identificar as empresas que produzem respeitando a legislação trabalhista e ambiental. Mas até agora não temos uma proposta concreta sobre isso.

E os empresários concordaram que a Comissão fosse permanente?  
Sim. Participam da Comissão e também concordam com a ideia de alguma premiação à empresa que tiver boas práticas, apesar de não terem apresentado nenhuma proposta. O que muda em relação às condições de trabalho? Quais as vantagens para os trabalhadores? Esse acordo, na verdade, não é um objeto jurídico. É uma adesão voluntária, um compromisso moral dos usineiros e das partes envolvidas. Mas abriu a possibilidade de discutir, por meio dessa Comissão, políticas públicas para os trabalhadores que estão ficando desempregados em razão do fim da queima da cana. Antes não tínhamos um espaço onde debater questões como essa, que precisam envolver o governo e também os empresários. Em São Paulo, por exemplo, até 2014, provavelmente cerca de 140 mil trabalhadores ficarão desempregados. Para onde irá esse pessoal? Fará o que no campo? Fizemos essas perguntas aos usineiros e ao governo. Como a grande maioria desses trabalhadores é analfabeta, propusemos que o Ministério do Trabalho faça um programa de capacitação para que, dentro da mecanização, possam conseguir emprego em outras atividades no campo.
Outra proposta é que o governo crie condições para que esses desempregados sejam público-alvo da reforma agrária em assentamentos específicos, porque são pessoas do campo e queremos que continuem lá. Lidar com a terra e a lavoura é o que sabem fazer. Estamos numa grande negociação e apostamos que o governo vai oferecer políticas públicas. Com relação à escolaridade, há o Programa Brasil Alfabetizado. Basta definir o público, acertar com as prefeituras as parcerias, com o movimento sindical e com as empresas para executar o programa.

Qual o prazo para implementação do Compromisso?  
A ideia são dois anos. De um total de 413 usinas hoje em funcionamento, 332 assinaram o Compromisso. Nosso primeiro trabalho agora é identificar essas usinas, checar se estão cumprindo e descredenciá-las em caso de algum problema, como trabalho escravo, considerado falta gravíssima. Empresas reincidentes em questões como não pagamento de salário, que não cumprem normas de saúde e segurança também não podem ser mantidas. Mas, se dentro de prazos legais forem resolvidas as pendências, poderão voltar. Do contrário, iremos divulgar o nome das que não cumpriram o combinado. No momento, a empresa que aderir não ganha nada. Mas quem tem um termo como esse na mão, com um relatório de uma comissão nacional declarando que a empresa está apta, poderá usar isso no mercado internacional, e com certeza seus produtos terão boas condições comerciais. Aquelas que forem descredenciadas serão apresentadas à imprensa e, com certeza, terão problemas para negociar seus produtos no mercado internacional.

Com a continuidade da Comissão, será possível equacionar temas que não entraram no Compromisso, como a questão da alimentação e o piso nacional?  
Este é o nosso objetivo: avançar, além de fazer cumprir o acordo. Quase tudo o que está no Compromisso consta de legislação, e portanto já deveria ser cumprido. Saúde e segurança, por exemplo, estão na lei. Contratação direta também, uma vez que é ilegal a terceirização no campo. Apostamos no avanço na questão do trabalho por produção, que não teve consenso na Comissão, para pelo menos diminuir o ritmo de produção que é implantado hoje. Alimentação, não conseguimos. Algumas empresas, após o acordo, começaram a fornecer, mas são casos isolados e voluntários. Queremos que todas forneçam alimentação ­ essa é a proposta dos trabalhadores. E precisamos avançar também no piso nacional. As negociações coletivas nesse setor, que ocorrem em 99% dos estados que plantam cana, têm pisos muito baixos, na faixa de R$ 500,00. Para cortar cana nesse ritmo de produção, de sol a sol, é muito pouco. A partir de janeiro o salário mínimo estará maior que o piso.

Se o governo não criar nenhum organismo para fiscalizar, o que será possível fazer?
Nossos instrumentos para monitorar são os sindicatos, que estão na ponta, as federações e a própria Contag. Como o Compromisso não é um objeto jurídico, não temos como acionar a Justiça para fazer cumpri-lo. A ideia de ter um monitoramento feito por outra entidade já está em negociação, e devemos chegar a isso. Os usineiros também têm interesse. Qual usina não gostaria de contar com uma entidade com confiabilidade para ter um relatório dizendo "esta empresa está apta porque cumpre os termos do Compromisso Nacional"? Em qualquer negociação internacional que a usina vá fazer, um documento nesses termos tem um peso considerável. Não temos dúvidas de que eles têm muito a ganhar. Os usineiros têm uma herança histórica muito ruim. Mas há muitas empresas que se modernizaram, dão tratamento melhor a seus trabalhadores, têm transporte melhor, algumas já estão dando alimentação. Aos poucos a realidade está mudando. E não é bondade dos usineiros. Trata-se de exigência de mercado, que acaba ditando algumas regras, e eles têm de se adequar.

Estamos divulgando o acordo em alguns países que vivem problemas similares. E percebemos que o mercado dita as regras. "Se esse álcool foi produzido com trabalho escravo, não vamos comprá-lo", diz o mercado. O que o governo precisa criar é uma forma de identificar as empresas e denunciar, porque o álcool, quando vai para a exportação, se mistura e não há como saber de qual usina é. Contamos com a imprensa também para que nos ajude a denunciar as empresas irregulares. Elas vão ter de mudar na base da pressão. Não admitiremos no Compromisso nenhuma empresa que tenha trabalho escravo. É inaceitável. Em novembro temos um coletivo nacional e faremos um pedido para que as empresas sejam denunciadas.

O governo anunciou o zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar. Quais os impactos dessa medida?  
Do ponto de vista de zoneamento para identificar as áreas em que se deve ou não plantar cana, como Amazônia, Pantanal, áreas de preservação, como o Cerrado, o governo está acertando. É a primeira vez que se propõe algo assim no Brasil e deve servir também para outras culturas. Mas há a discussão do fim da queima da cana. O presidente Lula chegou a dizer que não pode mais queimar cana, e o Código Ambiental já proíbe essa prática, mas se o governo quer reafirmar essa proibição tem de responder para onde irão os mais de 600 mil trabalhadores e suas famílias, que hoje dependem da atividade canavieira para sobreviver. Na atividade agrícola não se troca de emprego de um dia para o outro. Muitas culturas já estão sendo mecanizadas ­ laranja, café, soja, milho, algodão. Não sobram muitas oportunidades para essas pessoas, que não sabem fazer outra coisa. Até se adaptarem a outra atividade, leva tempo e precisam de capacitação para alcançar outros empregos.

Mas há políticas públicas boas neste governo e a reforma agrária pode transformar esses futuros desempregados em agricultores familiares. É um desafio grande que temos pela frente.

Fernanda Estima é editora assistente de Teoria e Debate