Economia

A crise financeira questiona os preceitos neoliberais e exige dos Estados nacionais uma nova base econômica

A crise financeira questiona os preceitos neoliberais e exige dos Estados nacionais uma nova base econômica. As altas taxas de juros desviam recursos que poderiam ser dirigidos aos investimento produtivo e fariam grande diferença para o crescimento e distribuição de renda

Vive-se no Brasil um período inédito em termos históricos, e isso não é pouca coisa, apesar de se desejar muito mais. O país voltou a crescer e a inflação está relativamente baixa para nossos padrões passados ­ até meados dos anos 1990. No período de 2004 a 2008, acumulou crescimento, medido pela variação do PIB, acima de 26% e uma taxa de inflação de 30%, medida pelo IPCA. Em 2006 e 2007, a taxa de crescimento econômico foi superior à inflação, o que é outro fato pouco conhecido na economia brasileira. Essa nova dinâmica econômica ocorre em um ambiente democrático, de liberdade e segurança institucional.

No fim dos anos 1980 e na década de 1990 ocorreu um debate que punha em dúvida se seria possível ­ em países caracterizados por profunda desigualdade social e econômica e por longos períodos de autoritarismo, como o Brasil ­ engendrar uma estratégia de  sucesso que combinasse crescimento com distribuição de renda e da riqueza em um ambiente democrático.

A história recente, porém, confronta essa tese, pois o crescimento econômico brasileiro ocorreu ao mesmo tempo em que houve a melhora dos indicadores sociais, revelada por meio da redução da pobreza, da queda na concentração de renda pessoal. Foi acompanhado ainda de significativa redução da taxa de desemprego, com aumento da ocupação e dos empregos com carteira de trabalho assinada, que asseguram postos de trabalho com melhor qualidade. Também cresceu a renda do trabalho, com a elevação do rendimento real médio e com forte expansão da massa salarial.

Esse movimento que combina crescimento econômico com melhorias sociais que elevam a qualidade de vida e do trabalho pode ser caracterizado como uma das dimensões que constituem o que se pode denominar de desenvolvimento.

Por sua vez, a crise internacional, agravada a partir de setembro de 2008 com a quebra do banco americano Lehman Brothers, fragilizou a concepção da dominância neoliberal que dá ao mercado a supremacia da ação econômica, social e política. São os Estados nacionais e, com o apoio e governança destes, as instituições multilaterais que estão atuando para evitar o pior e recuperar o nível de confiança dos agentes econômicos, base para a atividade econômica assentada no mercado e na iniciativa dos indivíduos. O Estado, aquele ente desprestigiado pela "vida e vigor do mercado", é chamado a cumprir o papel de indutor e regulador das mazelas deste. As saídas da crise colocarão para os Estados nacionais desafios de grande monta, bem como poderão representar oportunidades interessantes de mudança de rumo na condução de sua política econômica.

No Brasil, como nos demais países, recuperou-se o tema do desenvolvimento nos debates políticos e acadêmicos, agora necessariamente qualificado como sustentável social e ambientalmente. A retomada da pauta é da mais alta relevância, construir concepções da relação entre crescimento (produção da riqueza) e desenvolvimento (sua distribuição) em um ambiente sustentável ambientalmente é tarefa política de primeira importância, para a qual o movimento social ­ sindical e popular ­ deve atuar de forma determinante, por meio de diagnósticos consistentes e propostas ousadas e inovadoras.

A sociedade brasileira é ainda hoje expressão de uma correlação perversa entre crescimento e desenvolvimento. O país cresceu no século passado a taxas espetaculares, com processos de acelerada industrialização, como no final dos anos 1950 com o "Plano de Metas", que propunha realizar "cinquenta anos em cinco", ou, ainda, durante o regime militar, com o 1º e o 2º Planos Nacionais de Desenvolvimento. Entretanto, as altas taxas desses períodos não foram acompanhadas do mesmo avanço nos indicadores sociais. Isso porque os mecanismos que produzem as desigualdades ­ educacionais, patrimoniais, regionais, entre tantas outras ­ atuam e se reforçam com o crescimento econômico. O aumento da quantidade de riqueza ­ ou seja, o crescimento econômico ­ não é necessariamente sinônimo de desenvolvimento, ao contrário, sob sua égide podem ser aprofundadas as desigualdades sociais e econômicas. Construir outro resultado significa desenhar e implantar processos sociais e políticos capazes de promover outra distribuição econômica do crescimento. Não há como fazer esse enfrentamento sem olhar para a questão do trabalho, da educação, da reforma patrimonial, com destaque especial para a reforma agrária, para as diferenças regionais, para a perspectiva local, para a ciência, tecnologia e inovação para médias, pequenas e microempresas, entre tantas outras capazes de promover a distribuição de riqueza e renda.

Para o desafio futuro, mais uma vez, a experiência recente traz contribuições relevantes. O crescimento do país foi resultado de uma atuação vigorosa do Estado brasileiro, orientado por uma política de governo que se voltou para a recuperação da capacidade de investimento público combinada com políticas redistributivas, especialmente para os mais pobres, e forte capacidade de mobilização dos atores sociais. O investimento público em infraestrutura (estradas, portos, aeroportos, usinas hidrelétricas, entre outros); em infraestrutura urbana (saneamento, habitação, mobilidade urbana etc.), com a organização do PAC como programa que articula esses investimentos; o fortalecimento da Petrobras; e os investimentos nos biocombustíveis são alguns exemplos de iniciativas do Estado responsáveis por novo dinamismo na base econômica. Os investimentos em educação (PDE) básica, técnica e superior e na segurança pública, por exemplo, atacam problemas estruturais. Os mecanismos de transferência de renda, em especial o Bolsa Família, ou de incremento do valor do salário mínimo, com rebatimento sobre os benefícios da Previdência, revelam outra concepção de política pública, de papel do Estado na relação com a economia de mercado, seja no investimento, seja na geração de renda e emprego para a base da pirâmide social.

Nessa dinâmica, o Estado tem papel central e sua capacidade de ação é política, institucional e econômica.

Assim, fortalecer o orçamento público é tarefa primordial. Para tanto, deve-se rever o regime de metas de inflação que vigora no país, bem como a política monetária, que são os instrumentos utilizados pelo Conselho de Política Monetária (Copom) para domar a inflação. Um equívoco na avaliação sobre a tendência da inflação, assim como em seus mecanismos de controle, pode ser trágico para a estratégia de crescimento e desenvolvimento.

A taxa de juros básica é pensada e usada pelas autoridades monetárias como instrumento de política de controle da inflação. Uma maior taxa de juros desanimaria o agente econômico ao investimento produtivo pelo incentivo do ganho financeiro fácil e sem risco. Com menor crescimento, reduz-se a demanda econômica global, aliviando-se a pressão sobre os preços, garantindo-se a queda da inflação. Segundo essa concepção, a economia brasileira não estaria preparada para um crescimento acima de uma taxa determinada em torno de 3,5% ao ano.

O Brasil tem praticado as mais altas taxas de juros do mundo para a graça do sistema financeiro e daqueles que vivem do rentismo. Como consequência, o gasto público com o pagamento dos juros da dívida desviou centenas de bilhões de reais ao longo dos últimos anos ­ e as altas taxas de juros contribuem para aumentá-lo de forma despropositada. Ganham alguns rentistas e perdem todos os brasileiros. Esse recurso, drenado pelos juros, se fosse dirigido ao investimento produtivo, à pesquisa, inovação, entre tantas outras necessidades e prioridades, teria feito toda a diferença na conformação econômica e social do país.

Perseguir o desenvolvimento é gerar maior capacidade de ação para o Estado. Um dos aspectos essenciais nesse sentido é enfrentar a dívida pública ­ que vem caindo em relação  ao PIB ­, em especial e com determinação, a taxa básica de juros que a remunera. Uma redução desta para padrões médios praticados internacionalmente liberaria o correspondente a 2% do PIB de folga fiscal no orçamento público. É bom lembrar que o Banco Central, ao contrário, já fala em sua elevação para a casa dos 10% no próximo ano, com inflação estimada em 4,5%. Nesse caso, não haverá folga, mas sim aperto fiscal para fazer frente ao aumento do gasto com pagamento dos juros. Combater a inflação é um imperativo macroeconômico. Para esse fim, entretanto, são necessárias outras políticas econômicas na medida em que os juros, em vez de remédio, podem representar um veneno contra o desenvolvimento.

Trata-se de uma luta central para a perspectiva do crescimento e do desenvolvimento, para uma mudança radical de uma economia assentada no rentismo para uma economia assentada na produção e na distribuição da renda e riqueza.

Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e do Conselho de Administração do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos