Política

Entrevista com Maria da Conceição Tavares

Com a trajetória de um grande partido no século 20, resta saber como o PT prosseguirá nesse caminho. Segundo a economista Maria da Conceição Tavares, uma opção é organizar o subproletariado beneficiado com as políticas sociais

 Professora, ao completar 30 anos o PT fecha um ciclo, marcado com o fim do governo de Lula. É sobre a fase que se inicia que gostaríamos de ouvir sua opinião.

Nesses últimos anos quem cresceu foi Lula; o partido não cresceu tanto quanto sua maior liderança. Como Lula cresceu basicamente no subproletariado, estou muito de acordo com o artigo de André Singer ("Raízes sociais e ideológicas do lulismo"1) e, ademais, são elucidativos os dados apresenta dos pelo cientista político Wanderley Guilherme dos Santos2, que mostram como aumentou o eleitorado. Como ele chama a atenção, vivemos uma situação de "eleitores em busca de partidos que substituem partidos em busca de não eleitores". Nas décadas de 50, 70, 80, eram os partidos que recebiam os votos, mas depois não. Com o enorme crescimento da urbanização, aumenta muito o subproletariado, então ficamos na base das figuras carismáticas e um certo bonapartismo.

Há características do eleitorado que vão determinar de alguma maneira o que o PT tem de fazer se quiser prosseguir com sua trajetória vitoriosa e tentar levar a população um pouco para a esquerda. A maioria das votações se apresenta polarizada, pobres contra ricos. Entre os pobres, é claro que Lula ganha. Parece o pai dos pobres, tem características parecidas com as de Getúlio ­ bem claro, apenas parecidas, uma vez que tem autonomia diferente, não há manipulação e ele mesmo é oriundo do subproletariado.

Então, no caso de Lula, a senhora refuta a tese do populismo?

Sim, Getúlio era das classes do minantes, e por isso, nesse caso, dava para discutir populismo, o que não cabe na situação de Lula, que é o próprio popular. Então, temos um governo extremamente popular que se deve a ele por sua identificação de classe, com os debaixo. Quando digo os debaixo não é com os metalúrgicos, é com a camada mais baixa mesmo, com aqueles que vieram do Nordeste... Quando se veem as faixas de renda, é claro o quadro pobres contra ricos, a barreira é até cinco salários mínimos. O problema é que o subproletariado também tem um conservadorismo popular. Se as pesquisas da Fundação Perseu Abramo estiverem corretas, são tanto de esquerda quanto de direita, já o centro é classe média.

É engraçado os que tentam explicar a popularidade de Lula pelo fato de ele também ter agradado aos ricos. Isso é uma besteira, os ricos são uma minoria escandalosa neste país.

Outro fator relevante que a esquerda tem mania de esquecer é que estabilização é uma coisa que interessa ao povo. Os outros têm indexação dos títulos, indexação da renda, e se pre judicam menos. Como que a inflação não tem importância, se quem se ferra mais com ela é o povo?

A combinação políticas sociais, au mento do salário mínimo, previdência social para os do campo ­ aqueles que não teriam esse direito contributivo ­ ajudou muito a melhorar a distribuição de renda e a incorporação social. E essa gente que é incorporada não necessariamente é de esquerda.

Não há corte ideológico, são todos beneficiados com uma política de governo. Então, o PT se vê sem Lula candidato...

Agora tem de separar o lulismo do petismo. Uma coisa é a próxima eleição, pode ser ­ e espero que assim seja ­ que Lula consiga passar seus votos para Dilma, mas isso não tira a necessidade de o PT propriamente dito ser majoritário no eleitorado lulista. É evidente que, no Brasil, a direita clássica está mal e a esquerda está melhor. De toda maneira, para essa faixa de 50% da população a opção esquerda e direita não é clara.

E o que faz o PT diante disso?

Pois é, o PT tem como opção organizar esse subproletariado, que não é a sua raiz, pois o partido organizou o campo com as bases da Igreja, o proletariado com as bases sindicais e os intelectuais de classe média com a base ideológica. Na base ideológica está perdendo, disso não há dúvida, mas a direita também está perdendo. A população atual parece mais desideologizada que a das décadas anteriores. A escola de quadros do par tido tem de prestar atenção aos dados sociais, não adianta formular táticas e estratégias de mobilização eleitoral e partidária que atinjam apenas a base antiga. O PT já tinha perdido na juventude, que agora vem novamente se aproximando, não sei por que razão, se pelo charme de Lula ou se porque o partido voltou a ser mais ativo com esse segmento.

Atualmente, vem dando mais atenção e espaço à juventude.

O partido tem de trabalhar mais com os jovens e com a faixa enorme do subproletariado, provavelmente organizando. E isso não significa organizá-la apenas por intermédio da base dos movimentos sociais, pois estes têm altos e baixos. É preciso algo mais estrutural, quero dizer, além dos segmentos clássicos, como mulher, jovem, raça, o partido deve se dedicar ao subprolerariado. Talvez tenhamos de avançar nas pesquisas, é preciso ver os cruzamentos.

Singer conclui que na verdade há um conservadorismo popular. Não há nada de espantoso nisso, porque em uma sociedade de massas urbanizada não há como ter opção ideológica. Isso a Europa já havia descoberto a partir da década de 30. É preciso estar atento para não fazer um discurso excessivamente ideológico, quando não é o caso. Trata-se de atender às carências, saber o que precisam, organizá-los. É uma tarefa pesada, e nós não vamos deixar de ter subproletariado nos próximos trinta anos. Nos próximos dez seguramente não, trinta para mim é longo prazo, eu já estou com 80. Esse é um dos pontos centrais.

E os  diagnósticos sociais, as políticas sociais, a mobilização social têm de ser pesados. Não dá mais para re pousar no movimento sindical, que é uma das espinhas dorsais do partido, também não dá mais para repousar na Igreja Católica, com todo o respeito que mereça, porque há os pentecostais, que abrigam o subproletariado. O setor religioso também tem de tratar com atenção.

Importante ainda é a questão da intervenção do Estado. Paradoxal mente, de esquerda ou de direita, hoje todos acham que tem de haver maior intervenção estatal. É preciso saber qual a natureza da intervenção, sobretudo porque temos de um lado as políticas sociais e de outro a política econômica, e esta, embora favoreça os pobres ao estabilizar, é muito orto doxa, favorece mais os ricos. Não tem de tomar por garantida e confundir política de estabilização com política econômica ortodoxa. Não se pode achar que ao não ter inflação já está resolvido o problema. Mas creio que no programa de governo de Dilma isso estará claro. E acho que o partido já percebeu que ao fim do período de oito anos uma das vitórias de Lula foi não só retomar o crescimento e fazer política distributiva como ter mantido a estabilidade. Nunca tivemos um período tão tranquilo desse ponto de vista, como nesses dois mandatos do presidente Lula, até chegar a crise, na qual, por ser uma crise mundial, até nos saímos bem.

Então, é menos uma questão econômica e mais uma análise das pesquisas e qual o tipo de linguagem e modo de se comunicar a ser empregado.

É bacana infraestrutura. É claro que sem infraestrutura não vamos a lugar nenhum em matéria de desenvolvimento econômico. Mas a expressão desenvolvimento econômico em si, hoje, é muito abstrata. Desenvolvi mento social, direitos sociais, incorporação e democracia social, parece que são as expressões.

Além do que a população não foi ouvida sobre autonomia nacional e questão nacional. Não tenho ideia de como a população reage à política externa. De qualquer maneira soberania nacional é uma coisa que tem de ser mantida, pois sem isso fica difícil. Aí vemos a reação no exterior, como Lula é respeitado. De novo, uma coisa é o Lula e outra é o PT. De que ele é o estadista do povo não há dúvida no mundo. Outro dia até um sociólogo tucano concordou.

Por mais que isso incomode, eles têm de concordar. A grande questão é se ele passa parte de seus mais de 80% de popularidade para fazer a sucessora.

Como Lula é uma figura fora de série o tempo inteiro, talvez até seja mais fácil ele passar a votação para a candidata que para o partido. Isso é o que veremos este ano, que é decisivo para fazer o diagnóstico do que precisa ser feito.

O partido organicamente está ruim. As tendências estão um pouco confusas. Resta saber se foi o lulismo que esvaziou o petismo. Aparente mente, sim. Se não, vamos ver este ano. Uma coisa é passar o voto para a candidata a presidenta ­ é difícil mas é possível , outra coisa é passar o voto para o PT. Veremos como o partido reage eleitoralmente este ano.

O que o PT precisa mostrar é que parte do que o governo Lula fez consta do programa partidário.

Mas as teses das tendências nos encontros e congressos não mostram isso. Os elaboradores do partido são todos intelectuais de classe média. E quem disse que classe média entende de povo? O PT já teve mais lideranças populares, a começar pelo próprio Lula, por Olívio Dutra. Enfim, a estrutura de classes nas lideranças do partido parece que está meio arrevesada. Que os intelectuais do partido queiram, com toda a razão, uma nação mais republicana, mais democrática, apontando para o socialismo, tudo bem, eu também quero. Mas precisam traduzir isso para uma linguagem inteligível para o povo. Senão, como recrutar? Republicano, democrático, como explicar esses conceitos? Não é fácil, estamos vendo a discussão em torno dos direitos humanos. É tudo muito confuso, e daí fica um discurso genérico e segue-se a temática – mulheres, reforma agrária, negros, tudo segmentado.

Os dados mostram que Lula teve tanto votos à esquerda quanto à direita, a faixa em que teve menos votos foi do centro. E majoritariamente tem pobres de direita. E aí vamos continuar com a luta de classes formal, como aprendemos, do século 19, ou vamos aceitar que tem ricos versus pobres num país tão desigual quanto o nosso? Eu acho que tem de pôr o acento nas desigualdades, regionais, de renda, de acesso. Pela análise dos dados e pelo que vejo na rua, foram o ataque às desigualdades e a linguagem popular de Lula que permitiram a identificação.

Os núcleos do partido estão muito desativados e há algumas lutas fratricidas nas prévias pré-eleitorais. O PT precisa ficar atento à sua organização em todos os níveis, se quiser ter o partido mais aderente à realidade socioeconômica do país.

Outra coisa pela qual o PT deve lutar, e diz respeito a todos os partidos, é a reforma política, pelo menos o financiamento público. É um absurdo o que um deputado federal gasta para se eleger. Quando me elegi, em 1994, paguei a campanha com palestras, livros. Hoje se fosse candidata isso não seria possível.

No fundo, o maior problema é como que se passam as modificações táticas e estratégicas e de estrutura do partido para colar mais no fenômeno eleitoral, e não menos. Senão, será sempre preciso fazer eleição na base desses sujeitos que vão para a TV, custam uma fortuna e é uma chatice repetir o que eles dizem... Marqueteiros. Não há muito como ficar sem isso porque televisão é de massa, mas pode modificar a linguagem. Fazer com que a linguagem seja menos parecida com a dos adversários. São coisas muito complicadas sobre as quais eu não tenho certeza. O que eu tenho certeza é que, quando não se tem um partido que segure uma crise no país, esta pode jogar o subproletariado para a direita ou para um populismo de direita, que não é o caso.

Explique melhor isso, por favor.

Uma crise pesada como a de 1930 jogou todo o subproletariado para a direita. Aliás, essa era a convicção marxista, então ficaram convencidos ainda mais, chamavam lumpemproletariado. Não é porque as tendências são boas que não é possível ter um revés. É possível, sim. Eu vivi no Chile e sei que isso é possível.

Penso que o PT tem a obrigação de consolidar a sua estrutura, adequar a sua linguagem de comunicação de massa para colar no lulismo. Tem de colar nos problemas da sociedade, não adianta dizer que tem de ser ético, tem de colar nos movimentos sociais. Sim, mas vai fazer isso a partir de análises objetivas? No século 20 fomos um  partidaço, agora é século 21. O PT, como entidade, tem de fazer o que Lula fez.

Rose Spina é editora de Teoria e Debate