Internacional

Como um golpe de Estado organizado por EUA e Grã-Bretanha instalou uma ditadura no Irã e alimentou as tensões entre o país e o Ocidente

A desconfiança e os conflitos entre o Irã e o Ocidente têm origem no início dos anos 1950, quando um golpe de Estado, organizado e financiado por EUA e Grã-Bretanha, instalou uma violenta e corrupta ditadura no país

Anúncio do acordo nuclear: esforço brasileiro na busca de soluções negociadas e pacíficas. Foto: Ricardo Stuckert/PR

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Convido o leitor a situar o Irã no mapa e observar sua estratégica e potencialmente explosiva localização. Vamos no sentido anti-horário: a sudeste, o Paquistão; a leste, o Afeganistão; a nordeste, o Turcomenistão; ao norte, o mar Cáspio, onde faz fronteira marítima com as Repúblicas Autônomas do Daguestão e Kalmikia, pertencentes à Rússia; a noroeste, com o Azerbaidjão, a Armênia e a Turquia; a oeste, com o Iraque; através do Golfo Pérsico, faz fronteira marítima a oeste com a Arábia Saudita, Kuwait, Catar, Emirados Árabes Unidos, Barein; a sudoeste, faz fronteira marítima com Omã.

Domina o Golfo Pérsico a leste e o Golfo de Omã ao sul. Tem ampla saída para o Mar da Arábia e daí para o Oceano Índico. A passagem do Golfo Pérsico para o Golfo de Omã se dá pelo Estreito de Ormuz, um pedaço de oceano relativamente pequeno entre o Golfo de Omã, a sudeste, e o Golfo Pérsico, a sudoeste. Na sua costa norte está o Irã e na costa sul, os Emirados Árabes Unidos e um enclave de Omã. Com 48 quilômetros de largura mínima, é a única passagem de grandes áreas de exportação de petróleo para o mar aberto. De acordo com a US Energy Information Administration, uma média de quinze petroleiros, carregando de 17,2 milhões a 18,5 milhões de barris de óleo cru, passam pelo estreito diariamente, o que torna Ormuz o mais importante "checkpoint" do mundo. O volume de tráfego diário corresponde a quase 50% de todo o transporte de óleo por mar e 20% de todo o transporte marítimo mundial.

Tampouco o Irã é desses países que no Oriente Médio se originaram literalmente numa mesa de gabinete quando o Império Otomano e o Império Britânico, régua à mão, criavam países e definiam suas fronteiras. A civilização persa é milenar e sua formação como nação foi se conformando e consolidando ao longo dos séculos.

Hoje o Irã é uma república islâmica presidencialista, com população de mais de 70 milhões de habitantes, bastante homogênea, predominantemente xiita, uma única língua oficial, o persa. O país estende-se por 1,65 milhão de quilômetros quadrados. Seu IDH é médio, a renda per capita em torno de US$ 9 mil. A economia é fundamentalmente baseada na mineração, mas possui indústria e agricultura relativamente diversificadas.

No início dos anos 1950 havia no Irã um governo nacionalista, cosmopolita e democrático, chefiado por Mohamad Mossadegh, advogado formado em universidades europeias, líder autenticamente democrático e visto como incorruptível.

Eleito democraticamente, em 1951, instalou um governo laico no Irã e, com maciço apoio popular e das forças de esquerda, nacionalizou a indústria petrolífera do país. Em 1953, foi derrubado por um golpe de Estado organizado e financiado pela CIA e pelo M-16, serviço secreto britânico, com autorização direta da Casa Branca (Eisenhower) e da Downing Street (Churchill).

Foi exatamente a nacionalização da indústria petrolífera iraniana pelo governo de Mossadegh que desencadeou o golpe de Estado, quando a Grã-Bretanha perdeu o controle absoluto que exercia sobre o petróleo iraniano, através da British Petroleum.

Stephen Kinzer em sua obra Todos os Homens do Xá, baseada em documentos secretos desclassificados, conta toda a história do golpe de Estado. Derrocado Mossadegh, foi instalada uma ditadura brutal e corrupta no Irã, liderada pelo xá Rheza Pahlevi. Apoiada por Washington e Londres, a ditadura do xá era odiada pelo povo iraniano e somente foi derrubada depois de quase 26 anos pela Revolução Islâmica dos aiatolás. A descoberta do envolvimento dos Estados Unidos no golpe fez com que nascesse uma enorme desconfiança em relação a esse país e às potências ocidentais em geral.

Reside aí a origem dos conflitos entre o Irã e os EUA mais países do Ocidente.

Derrubar Mossadegh foi uma trágica decisão dos EUA. É verdade também que a ascensão dos aiatolás ao poder trouxe consigo, ao longo dos anos, um repertório de posições abomináveis: dirigentes que põem em dúvida a existência do holocausto, violações de direitos humanos fundamentais, difusão e prática de valores decorrentes do fundamentalismo religioso, expressão cultural de uma revolução popular que deu vida a uma autocracia religiosa medievalmente anti-imperialista.

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Os interesses dos EUA 

Tendo esse quadro histórico como pano de fundo, como evolui a conjuntura hoje? Os Estados Unidos necessitam vitalmente das fontes energéticas do Oriente Médio, em especial as originárias da Arábia Saudita e demais países da costa ocidental do Mar Cáspio. Em termos estratégicos, precisa contar com nações amigas para que o fluxo não seja ameaçado e eventualmente interrompido. Para tanto, as grandes corporações usamericanas mantêm relações comerciais vultosas e constantes com as companhias petrolíferas locais, garantindo aos regimes monárquicos árabes recursos para suas economias e estabilidade política. Mas o conceito basilar do "destino manifesto" da maior potência de todos os tempos e a doutrina geoestratégica de Washington impõem a presença física militar na região com tripla finalidade de ocupação, dissuasão e intimidação.

Os EUA concentram no Golfo Pérsico uma moderna e formidável máquina de guerra. A concentração naval está coordenada com o planejamento de ataques aéreos. O planejamento do bombardeio aéreo do Irã começou em meados de 2004, de acordo com a formulação do Conplan 8022. Em maio de 2004, foi emitida a Diretiva Presidencial de Segurança Nacional NSPD 35, intitulada Nuclear Weapons Deployment Authorization. Apesar de seu conteúdo permanecer classificado, a presunção é de que a NSPD 35 se refere ao posicionamento de armas nucleares táticas no teatro de guerra do Médio Oriente. Os tipos de unidade militar e de sistema de armas posicionados no Golfo Pérsico e no Mar Arábico são considerados os mais adequados para o combate contra o Irã, tendo também em vista manter o Estreito de Ormuz aberto para os petroleiros. O USS Enterprise, nau capitânia da U.S. Navy de um vasto complexo militar aeronaval, é um porta-aviões movido a energia nuclear. Este e os outros navios da frota estão preparados para conduzir operações de segurança naval e missões aéreas na região, dispondo inclusive de mísseis atômicos táticos. Operam a partir de bases navais da região e são parte da Guerra ao Terror conduzida pelos EUA sob a denominação Operação Liberdade Duradoura (Operation Enduring Freedom).

O nome original da Operação Liberdade Duradoura foi "Operação Justiça Infinita", o que destaca o âmbito e as intenções ilimitadas da Guerra ao Terror. Apesar de se dizer que esse posicionamento está relacionado com operações militares em andamento no Iraque e no Afeganistão, os navios de guerra carregam consigo equipamento que não é destinado a esses dois teatros de guerra. Detectores de minas e caça-minas não têm absolutamente nenhuma utilidade no Afeganistão cercado de terra e não são necessários no Iraque, que tem um corredor marítimo e portos totalmente controlados pela aliança anglo-americana.

Esses navios de guerra podem ser utilizados no confronto com forças iranianas em combate de proximidade (close-quarter). A velocidade será um fator importante para responder aos potencialmente letais mísseis iranianos e a ataques de mísseis antinavio. Menção especial deve ser feita ao esquadrão de helicópteros especializado em combate a submarinos. O Helicopter Anti-Submarine Squadron 11 está a bordo do USS Enterprise. O Golfo Pérsico é conhecido por ser o lar da frota submarina iraniana, a única nativa da região.

O Irã tem estado num processo de fortalecimento naval ao longo da última década. Testou também uma série de mísseis antissubmarino durante os seus jogos de guerra de agosto de 2006, que levantaram preocupação pelo fato de que o Irã poderia interromper o fluxo de petróleo através do Golfo no caso de um ataque usamericano ou de qualquer outro país. Os mísseis testados confirmaram-se como "os mais rápidos do mundo", com uma velocidade máxima de cerca de 360 quilômetros por hora. O míssil antinavio é destinado a destruir grandes submarinos e diz-se ser "demasiado rápido para que a maior parte dos vasos possa escapar" mesmo que ele seja detectado pelos radares. Na hipótese de guerra, os EUA teriam de manter o Estreito de Ormuz aberto, o tráfego internacional de petróleo em movimento e, simultaneamente, enfrentar uma grande barragem de mísseis iranianos de terra, ar e mar. Isso inclui mortíferos mísseis antinavio que os iranianos desenvolveram com a ajuda da Rússia e da China.

No entanto, para Teerã, todo esse desenvolvimento não bastava. Teriam de possuir a bomba atômica, única capaz de dissuadir uma eventual invasão militar, e passaram a trabalhar no enriquecimento do urânio.

A ordem é desestabilizar 

A disputa, porém, não se trava apenas no campo da força. O terreno político é também crucial, posto que uma terceira guerra depois do Iraque e do Afeganistão é politicamente insustentável e está fora de cogitação.

Contudo, não se pode evadir da questão: a que desideratos se presta a demonização do Irã, que mais se parece uma paródia das "armas de destruição em massa", fraude que justificou a agressão ao Iraque? Está no ar uma campanha midiática cujo objetivo é criar na opinião pública internacional uma matriz de que se trata de um Estado-bandido. Isso é feito em nome da liberdade e dos direitos humanos, muitas vezes alardeados por quem tem dupla moral sobre o assunto.

A desestabilização do Irã e sua eventual transição para a esfera de influência norte-americana, como se passou com o Iraque, significariam formidável aporte aos recursos petrolíferos sob tutela da grande potência.

Além de impedir o acesso de Teerã à produção de energia nuclear, o que mais importa para Washington é asfixiar, desestabilizar e derrubar um governo hostil a seus interesses, de acordo com a doutrina político-militar que preside suas atitudes. Antes, os EUA agiam com a mão de gato de países aliados na região, como Israel, Arábia Saudita ou Egito, agora têm de tratar diretamente do assunto.

Derrotar o regime dos aiatolás representa uma dramática mudança no equilíbrio regional de forças. Tel-Aviv deixaria de ter qualquer contendor militar à altura. Grupos mais radicais da resistência palestina, o Hamas e o Hezbolah, perderiam o principal aliado com seu apoio logístico armado. Governos árabes pró-ocidentais teriam maior tranquilidade com o possível arrefecimento das correntes islâmicas internas.

Os limites atualmente prescritos pelo Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), que estabeleceu o monopólio das armas nucleares nas mãos dos cinco países com direito a veto no Conselho de Segurança das Nações Unidas -­ EUA, Inglaterra, França, Rússia e China -­, tornaram-se insuficientes porque não coíbem o desenvolvimento de todo o ciclo da tecnologia nuclear ou a comercialização de urânio enriquecido pelos países que estão fora do clube da bomba. Cumpre ressaltar que os signatários do TNP renunciaram ao enriquecimento de materiais com finalidade bélica, no entanto existem não signatários que fazem parte do clube atômico, como Índia, Israel e Paquistão.

Washington tem conseguido a boa vontade da Rússia na questão iraniana, em troca do compromisso de manter desnuclearizados os países de seu entorno. O mesmo aceno é feito à China quanto à sua zona de influência, além de outras compensações econômicas. No fundo, os atuais membros permanentes do Conselho de Segurança não querem perder nem dividir a hegemonia política com nenhum outro país.[/nextpage][nextpage title="p3" ]

A posição do Brasil 

O Brasil, na voz do presidente Lula, afirmou que o país não assinara o protocolo de aditamento ao TNP visto que não só criaria obstáculos ao desenvolvimento da tecnologia nuclear para fi ns pacíficos  nunca é demais recordar que a Constituição brasileira proíbe a produção de armas nucleares ­- como violaria a soberania nacional. O presidente Lula vem repetindo que quem possui artefatos atômicos não tem moral para pedir que outros não os tenham e que o desejável é que todos os países do fechado clube atômico se desfizessem totalmente dos seus arsenais nucleares.

O acordo Brasil-Turquia-Irã, firmado em Teerã em 16 de maio de 2010 pelo presidente Lula, pelo primeiro-ministro Erdogan e pelo presidente Ahmadinejad, abre as portas para uma saída justa e pacífica da questão nuclear. Os chefes políticos das grandes potências farão o que puderem para desacreditá-lo e levá-lo ao fracasso. A formação de alianças fora da órbita imperial, porém, é tudo o que não interessa a Washington e seus subservientes associados europeus. Trata-se de inaceitável desrespeito ao acordo tácito para transição do unilateralismo pós-guerra fria a um multilateralismo circunscrito às nações do G5+1. Contudo, ou cuidam de analisá-lo seriamente, com apoio nas informações e verificações dos peritos da Agência Internacional de Energia Atômica, pois se trata de compromisso rigoroso firmado com aval de membros do Conselho de Segurança, ou haverá total retrocesso. Sanções não irão resolver, só farão complicar o cenário. Embargos e punições não levarão o Irã a recuar. Isso simplesmente fará acelerar seu programa nuclear e aí com vistas a enriquecer o urânio a 90%. E haveria um forte apelo nacionalista interno a apoiá-lo.

Lateralmente, uma solução para o impasse nuclear iraniano poderá criar um cenário favorável para toda a região e abrir caminho para avanços no conflito entre Israel e os palestinos.

A intervenção do presidente Lula traduz a consciência de uma política externa independente que busca fortalecer laços de amizade, gerar relações de confiança e franqueza e construir espaços para soluções negociadas e pacíficas, princípio que também está inscrito em nossa Constituição.

Max Altman é jornalista e membro do Coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT

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