Internacional

Os rumos da humanidade nem sempre são controlados e novos caminhos geraram outro desenho das forças do mundo

Os rumos da humanidade nem sempre são controlados e novos caminhos geraram outro desenho das forças do mundo. Os antigos países dominantes não são mais tão poderosos e os do Sul, antes sem voz, assumem o protagonismo de ações e articulações, transformando-se em centros dinâmicos da economia do planeta

Lula

Presidente Lula na cerimônia de entrega do Prêmio Félix Houphouët-Boigny pela Busca da Paz. Foto: Ricardp Stuckert/PR

O Planejamento Diplomático, um departamento que integra o organograma de quase todas as chancelarias do mundo, se vê frequentemente confrontado com um grande desafio: a imprevisibilidade histórica.

Como planejar o imprevisível?

As duas últimas décadas foram povoadas de acontecimentos imprevisíveis que mudaram o curso (e o ritmo) da história.

A queda do Muro de Berlim, o abrupto fim da União Soviética, o atentado contra as torres do World Trade Center, para só citar três exemplos relevantes, incidiram de forma intensa na evolução dos rumos da humanidade. Seguramente eles não estavam presentes nas espe­culações e previsões dos “planejadores diplomáticos”.

Mesmo acontecimentos mais “previsíveis”, como a crise econômica de 2008, que até hoje faz sentir seus efeitos, apesar de ter sido genericamente anunciada por muitos economistas, não foi previamente detectada. Quem poderia imaginar que o governo dos Estados Unidos deixaria quebrar o Lehman Brothers e que a falência dessa instituição provocaria a reação em cadeia que abalou o sistema financeiro internacional?

Isso não quer dizer que a cena mundial seja opaca, assemelhando-se a um imenso nevoeiro, e que não seja possível antecipar situações, detectar tendências e adotar políticas capazes de contra-arrestar movimentos.

Feitas essas advertências sobre certa fugacidade da situação internacional, não está excluída a possibilidade de prever algumas tendências da evolução da conjuntura mundial e, a partir daí, desenhar linhas de intervenção para a política externa brasileira.

O fim da unipolaridade

Antes mesmo da eclosão da crise de 2008 – mas, sobretudo, depois dela –, começou a esboçar-se um novo desenho na correlação de forças no mundo.

Os Estados Unidos não podem hoje exibir o mesmo viço que ostentavam depois da vitória na primeira Guerra do Iraque, que se seguira ao fim da Guerra Fria, ilustrada pela queda do Muro de Berlim, pela débâcle dos regimes socialistas da Europa do Leste e, finalmente, pela autodissolução da União Soviética.

A grande e indiscutível superpotência econômica e militar daquele fim de século exibia ainda sua hegemonia política e ideológica. O comunismo havia sido derrotado, a social-democracia tinha seu programa erodido pelo neoliberalismo, o “terceiro-mundismo” passara a ser uma obsoleta curiosidade histórica, confinada em um passado aparentemente longínquo. O futuro se confundia com o presente – um presente que se repetia ad infinitum –, e o próprio fim da história pôde ser anunciado por um trêfego funcionário dos Estados Unidos.

Mas os tempos mudaram.

A segunda Guerra do Iraque e a intervenção no Afeganistão mergulharam os EUA em um atoleiro que muitos chegam a comparar ao do Vietnã.

O crescimento do terrorismo islâmico nos últimos dez anos pôs em evidência a incapacidade de sucessivos governos norte-americanos de estabelecer um novo tipo de relação com o Oriente Médio e, particularmente, de ajudar a resolver a questão palestina. O efeito desestabilizador dessa problemática se faz sentir mais além daquela vasta e complexa região. Incide sobre a segurança coletiva global e sobre a paz mundial.

Os efeitos da crise econômica dentro dos Estados Unidos não foram menores e, longe de provocar um consenso nacional para enfrentá-la, parecem ter aguçado os conflitos internos, com efeitos politicamente paralisantes.

Na Europa, a situação não se anuncia mais promissora. A crise iniciada nos Estados Unidos golpeou fortemente muitas economias, acentuou desequilíbrios macroeconômicos preexistentes em alguns países e revelou a baixa solidariedade regional para resolvê-la.

A maioria dos governos europeus optou por políticas econômicas conservadoras, cujos efeitos negativos sobre o crescimento e o emprego se fazem sentir. Tudo isso, somado aos cortes nas políticas sociais e às medidas anti-imigratórias, faz da Europa um cenário de intensas manifestações sociais com desdobramentos políticos imprevisíveis.

Mas o cenário mundial revela outros atores em situação distinta.

Periferia antes, China, Índia, Brasil, Indonésia, África do Sul, para mencionar só alguns países “emergentes”, transformam-se em centros dinâmicos da economia mundial.

É natural que toda essa nova problemática e a mudança na relação de forças que acarretou suscitassem novos problemas e novas alternativas.

Aguçou-se a crise cambial internacional com a intensificação da “guerra das moedas”.

Aumentam as tentações protecionistas, o que condena a Rodada Doha da OMC a paralisia ainda maior.

Caducam os mecanismos de governança até então existentes, inclusive aqueles ad hoc, como o G-8, que teve de ser substituído pelo G-20 financeiro, onde estão incorporados países como Brasil, China, Indonésia, Arábia Saudita, Argentina, México, Turquia e África do Sul, anteriormente marginalizados das grandes decisões mundiais.

O espaço dessas notas limita a análise sobre a extensão e intensidade das transformações em curso no cenário internacional. Sem cair em análises precipitadas como as que anunciam “o declínio do império americano”, para retomar o título de um filme, é evidente que a história se pôs em movimento de novo e que paira, inclusive sobre os próximos anos, boa dose de imprevisibilidade.

Não estão excluídas, no entanto, duas possibilidades: a constituição de um mundo multipolar e turbulências globais nesse período de transição.

Quando um mundo declina – sobretudo se esse declínio é prolongado – e outro não se afirma, abre-se espaço para o surgimento de perversos fenômenos.
Mas a história não é somente destino.

Ela é também – e sobretudo – construção humana.

Desafios para o sul do mundo

A percepção dessa tendência internacional pelo governo Lula se refletiu já há alguns anos nas inflexões da política externa brasileira.

A primeira foi o fortalecimento de sua opção sul-americana, expressa na solidificação do Mercosul e na criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). O Brasil, compreendendo o novo desenho geopolítico e geoeconômico internacional, decidiu associar seu destino ao da América do Sul para, junto com ela, transformar-se em um polo do novo mundo em construção.

O peso econômico da América do Sul – grandes recursos energéticos, de alimentos, minerais, biodiversidade, indústria –, somado à extensão e variedade de seu território, às dimensões de sua população (que hoje configura importante mercado), complementa-se com o fato de a região ser zona de paz, sem conflitos étnicos ou religiosos, e governada por presidentes eleitos em pleitos livres.

O desafio que se colocará para os próximos anos é dar profundidade às políticas de integração física, energética, produtiva, financeira, social e cultural da região, construindo ou implementando as instituições necessárias para tanto, seja no Mercosul, seja na Unasul.

A segunda opção brasileira foi fortalecer nossas relações com os países da África e com o mundo árabe. Na África, tiveram e terão grande importância nossas políticas de cooperação nos domínios agrícola, de saúde, energia, infraestrutura. O Brasil continuará estimulando nosso comércio com esse continente que vive hoje um renascimento econômico e democrático. Fortalecerá a presença de nossas empresas públicas e privadas, que hoje têm grande papel no desenvolvimento da região. Mas será de fundamental importância rever nossos mecanismos de cooperação internacional – muito aquém do papel que o Brasil passou a desempenhar no mundo nestes últimos anos.

Com os países árabes, além de fortalecer mecanismos como a Aspa (América do Sul-Países Árabes), deveremos dar relevância à intensificação do comércio, da exportação de serviços e dos investimentos. Mas também há um importante diálogo político com esse grupo de países, que se estende à Turquia e ao Irã. Trata-se de buscar soluções de paz para os graves conflitos que afetam essa região e têm forte potencial desestabilizador sobre o resto do mundo.

Todos esses movimentos em direção ao Sul passam pela intensificação e formalização de instituições como o Bric, ao qual poderá juntar-se a África do Sul, assim como nossa aliança com esse país e com a Índia (Ibas).

Fortalecer o Sul não significa, no entanto, esquecer o Norte.

A despeito das dificuldades que enfrentam hoje, a Europa e os Estados Unidos têm papel fundamental no grande jogo político internacional. Mantêm, igualmente, intensas e tradicionais relações com o Brasil. Preservar e aprofundar essas relações será tarefa do governo que agora se inicia.

A defesa do interesse nacional e a afirmação de valores de paz, de democracia e de justiça, além do respeito aos direitos humanos na esfera internacional, podem e devem ocorrer sem confrontos. A defesa da soberania nacional, garantida pela altivez de nossa política externa, não se confundirá, como não se confundiu, com o exercício de uma retórica forte, que não resolve problemas, mas pode criá-los.

Uma nova governança mundial

Para os que se acostumaram com um Brasil apequenado, a decisão de participar ativamente nas grandes questões internacionais tem sido apresentada como resultante de uma “megalomania” do governo Lula, que deveria ser arquivada a partir de agora.

Mas o Brasil não será vítima, uma vez mais, do “complexo de vira-lata” que afetou nossa política externa em outros governos.

Continuará lutando pela reforma do Conselho de Segurança, pois esse órgão imprescindível para a manutenção da paz mundial está defasado, refletindo uma relação de forças global de sessenta anos atrás. Não só o Conselho deve mudar, com a incorporação de novos membros permanentes, mas também as Nações Unidas têm de ajustar-se aos novos tempos, sob pena de perder representatividade e legitimidade.

No Haiti, assumimos, mandatados pela ONU, junto com nossos irmãos latino-americanos, responsabilidades na estabilização daquele país. Levamos também nossa ajuda material para minorar as enormes dificuldades que sofre seu povo. Mas a mesma ONU tem sido impotente em carrear para o Haiti a ajuda necessária (e prometida) por parte dos países desenvolvidos.

Não hesitamos em responder a outras demandas da ONU para a manutenção da paz, como as que vêm do Líbano. Como não hesitamos em colaborar na resolução de intrincados problemas, sejam os relativos à Palestina e as relações de Israel com seus vizinhos árabes, sejam os temas da não proliferação nuclear.

Esses compromissos globais, próprios de um país que tem uma política externa universalista, mas, nem por essa razão, renuncia a seus compromissos regionais.

Além da intensa cooperação com a América do Sul, o Brasil fortalece seus laços com a América Central, com o México e com o Caribe. Faz-se visível que a política de integração sul-americana teve efeito de demonstração sobre toda a América Latina e o Caribe.

O Brasil ganhou o respeito mundial por suas iniciativas na esfera internacional, mas, sobretudo, pelos avanços que obteve no plano interno. Era necessário retomar o crescimento, depois de décadas de estagnação ou crescimento medíocre. Mas era imprescindível começar a enfrentar e resolver o problema secular que atravessava a sociedade brasileira – a desigualdade e a exclusão de grande parte de seus homens e mulheres.

O desafio foi aceito.

E, o que é mais importante, começou a ser enfrentado com o fortalecimento da democracia, a redução de nossa vulnerabilidade externa e a afirmação de nossa soberania.

Os brasileiros compreenderam que as políticas externa e interna de seu país guardam uma relação indissolúvel. Nossa presença no mundo ajuda a conformar nosso projeto nacional de desenvolvimento, e os êxitos deste contribuem para nossa projeção global.

Marco Aurélio Garcia é professor licenciado do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e assessor de Política Externa da presidenta Dilma Rousseff, cargo que exerceu durante os oito anos do governo Lula