Sociedade

Vítima de machismo, candidata Dilma foi confrontada pela intolerância sexista e religiosa

Além de ser vítima de machismo, a candidata Dilma Rousseff, durante a campanha, foi confrontada pelo que há de mais persecutório e conservador na sociedade brasileira: a intolerância sexista e religiosa

A partir da II Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, realizada em 2007, a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM) definiu como uma de suas prioridades a ampliação da participação das mulheres nos espaços de poder e decisão. De lá para cá, a SPM vem trabalhando em duas vertentes principais: a viabilização de condições mais favoráveis à participação política das mulheres, com intervenções no Congresso Nacional, financiamento a programas de capacitação política, campanhas de estímulo à participação e ao voto em mulheres nos processos eleitorais de 2008 e 2010 e o fomento à reflexão sobre a inclusão das mulheres brasileiras no campo da política formal. Tais vertentes visam ampliar a compreensão relativa ao aparente paradoxo que se assenta no fato de que é justamente no país que ostenta o movimento feminista e de mulheres mais vigoroso da América Latina que se têm as menores taxas de participação feminina no Parlamento e no Executivo nacional.

O pleito de 2010, com duas candidatas mulheres à Presidência da República, exigia de nós uma atenção especial. Apresentava a oportunidade de quebrar o mito da exclusividade da presença masculina na eleição presidencial, com a possibilidade de uma mulher sair vitoriosa, mas também a oportunidade de documentar todo esse processo para análise posterior. Foi assim que a SPM lançou, no primeiro semestre de 2010, um edital nacional dirigido a pesquisadores/as para a realização de uma investigação relativa a todo o período das campanhas eleitorais majoritárias e proporcionais. O objetivo desse edital era acompanhar prioritariamente os seguintes aspectos: a percepção da sociedade brasileira sobre as candidaturas femininas, o tratamento dado pela mídia a essas candidaturas e aos temas tidos como de interesse das mulheres e o próprio desempenho das candidatas durante a campanha. No processo seletivo disposto no edital, foi vencedor o Consórcio Bertha Lutz, que reuniu um conjunto amplo de pesquisadores/as de diferentes universidades brasileiras, institutos de pesquisa e organizações não governamentais. Os resultados dessa investigação estão sendo analisados e serão apresentados em seminário já programado para março de 2011. Os dados apurados serão de inestimável valor para todas e todos que quiserem entender o que ocorreu nas eleições de 2010 com relação às candidaturas femininas. Além disso, possibilitarão a compreensão dos temas que emergiram durante a campanha, tais como  o aborto, a união civil entre pessoas do mesmo sexo e outros inseridos no campo dos “valores” e da “moral”, principalmente ao final do primeiro turno e início do segundo, como um vulcão ameaçador ao pensamento democrático e libertário de parcela significativa da sociedade brasileira.

Enquanto os dados “objetivos” não chegam, arriscamos neste artigo discutir o conteúdo conservador introduzido no debate eleitoral, pela campanha adversária, neste processo que, felizmente para o Brasil, terminou com a vitória de Dilma Rousseff.

Desde o início da campanha eleitoral, tendo pela primeira vez uma candidata feminina com reais chances de vitória, Dilma foi tratada com descrença quanto a seu preparo para a campanha, depois com desconfiança acerca de suas capacidades e, por fim, com tentativas quase desesperadas de desqualificação moral. Assim, na virada do primeiro para o segundo turno, a possibilidade de vitória de Dilma fez aflorar na arena política a misoginia dominante, presente sobretudo nos espaços formais da política nacional. Entre nós, os avanços vividos pela condição feminina no mundo do trabalho e nas esferas doméstico-familiar não se reproduzem e não se deslocaram para a arena da política. Somos poucas nos espaços de poder, sendo a nossa baixa representatividade causa e consequência dos obstáculos que se interpõem em nosso caminho para a igualdade. Isso se deve, certamente, como bem evidenciado nas últimas eleições, à intolerância à presença feminina, baseada no preconceito que ainda discridiscrimina as mulheres no espaço público, mais especificamente na luta política.

Por que a intolerância discrimina?

As manifestações de intolerância e de discriminação se fizeram sentir a partir do momento em que questões relativas à condição feminina foram introduzidas no debate político com cunho moral e hostil ao controle da reprodução humana. Tais manifestações de intolerância desmembram-se e visibilizam outras formas comuns  de ações de controle social, tais como sexismo, racismo, homofobia, intolerância religiosa, por idade ou nacionalidade, além da intolerância política. Todavia, não se limitam a essas formas: alguém pode ser intolerante a quaisquer ideias e pensamentos de qualquer pessoa. Esse foi o cenário caracterizado no processo eleitoral, transmitido e vivenciado cotidianamente pelos/as eleitores/as brasileiros/as.

A candidata Dilma Rousseff e o candidato José Serra, ambos seguramente não religiosos, pelo menos no sentido tradicional do termo, e com longa trajetória na defesa dos direitos humanos, foram confrontados pelo que há de mais persecutório e conservador na sociedade – a intolerância religiosa e sexista. Tal intolerância se caracteriza pela falta de habilidade e pela ausência de vontade em reconhecer e respeitar as diferenças em relação às crenças e opiniões alheias. Dada a oportunidade, a candidatura masculina não resistiu a esse apelo fácil e maniqueísta de trazer à baila, no debate eleitoral, a questão dos direitos reprodutivos – centrando-o no aborto.

Por que a acusação de que a candidata Dilma defendia a descriminalização do aborto tomou conta da propaganda eleitoral e da web de assalto? Diante do desespero de uma possível derrota para uma mulher, a apelação ao mais sórdido e mesquinho se fez presente na campanha a partir das declarações de Mônica Serra, mulher do candidato José Serra (Estado de S.Paulo, 14/9/2010), na tentativa de convencer um eleitor na cidade de Nova Iguaçu (RJ) a votar no marido: “Ela é a favor de matar criancinhas”.

É evidente que essa frase, dita pela mulher do candidato adversário, não se deve apenas à queda do candidato do PSDB, indicada pelas pesquisas que já apontavam para uma derrota. Devese sobretudo à onda antiaborto que se instalou em setores da sociedade para minar e varrer do terreno político a possibilidade de eleição de uma mulher conectada com os direitos das mulheres. Além disso, deve-se ao pressuposto acusatório de que, como é atribuída às mulheres a responsabilidade pela reprodução da vida, essa acusação colocava uma agenda negativa para a candidata adversária. A preservação do princípio constitucional do Estado laico e da liberdade religiosa, como direito fundamental, foi aviltada por parte significativa dos bispos e padres da Igreja Católica Apostólica Romana e das Igrejas Evangélicas.

A afirmação perversa de que Dilma defendia o “assassinato de criancinhas” foi uma forma cruel de pôr em discussão as reais implicações enfrentadas pelas mulheres frente a uma gravidez indesejada. E, lamentavelmente, a questão foi debatida pelo ângulo mais retrógrado e inquisitorial da sociedade, pelo lado do crime e do pecado. Indo em sentido contrário à própria responsabilidade do Estado frente a essa questão, uma vez que a Constituição de 1988 e a Lei nº. 9.253/1996 estabelecem que o planejamento familiar é um direito das pessoas e cabe ao Estado fornecer as informações e os meios para o controle voluntário da fecundidade.

Nesse debate enviesado e equivocado foi estabelecida uma forte ligação entre religião e Estado, tendo como epicentro a questão da descriminalização do aborto e no fundo o controle secular sobre o corpo feminino.

No cotidiano da campanha eleitoral, a intolerância manifestou-se por meio de argumentações raivosas, que menosprezavam a candidata adversária em função de seus pontos de vista e, nos momentos mais extremos, chegando à violência e agressão verbal entre militantes.

A história é pródiga em exemplos de manifestações de intolerância política, sendo que o registro mais extremado se traduz na barbárie do Holocausto. O colonialismo, que foi baseado, em parte, na falta de tolerância dos colonizadores para com as culturas diferentes daquela da metrópole, deixou como heranças a hostilidade e a intolerância, que ainda se manifestam, por meio de grande parte das elites políticas, em relação aos segmentos diferenciados presentes no processo político – as mulheres e os/as negros/as.

Não se pode esquecer que os direitos humanos foram construídos lentamente ao longo da história da humanidade. A luta social das mulheres contra a intolerância foi o que permitiu colocar a cidadania feminina nesse processo. Todavia, esses direitos chegaram de forma tardia às mulheres, apenas nas últimas décadas do século 20. A Declaração de Viena (1993), subscrita por 171 Estados, reiterou a concepção de que são igualmente humanos os direitos das mulheres, as quais não estavam nominadas ou subsumidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Por sua vez, em 1994, a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada na cidade do Cairo, definiu um marco para essas conquistas, pois 184 Estados reconheceram os direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos. E, consolidando essa vitória, a concepção foi reiterada pela Plataforma de Ação de Beijing de 1995, que consagra os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais de homens e mulheres. Tais recomendações dos organismos internacionais fortaleceram a cidadania feminina e trouxeram as questões da sexualidade e da reprodução para o centro do debate das sociedades do planeta. Vale lembrar que todos esses acordos foram ratificados pelo Estado brasileiro.

O destaque da mídia e a intolerância religiosa e sexista

Desde os anos 1970 a luta das mulheres no mundo e no Brasil continua tendo como uma de suas principais consignas a máxima: nosso corpo nos pertence, numa dialética contrária aos dogmas religiosos hegemônicos na sociedade. Essa luta persistente se manifestou na campanha eleitoral de forma midiática, representada  pela contundência das manifestações religiosas de controle sobre o corpo feminino ao centralizar-se na questão do aborto. O corpo feminino tornou-se moeda de troca, como se fosse um território de disputa política, baseado na equação perversa do tipo: ser contra o aborto = ganhar a eleição: ser a favor do aborto = perder a eleição.

A questão do aborto foi assim, insistentemente, objeto de manipulação midiática por setores conservadores das Igrejas, com o claro intuito de atingir negativamente a candidatura Dilma, e ao ser imposta aos candidatos jogou para fora do debate temas relevantes e caros às mulheres, como saúde, educação, transporte, moradia, entre outros. Exigiu-se da população um posicionamento moral frente a uma campanha política.

A máxima – nosso corpo nos pertence – é alvo de rejeição porque fundamentalmente expressa o desejo de autonomia das mulheres, de ter direitos e de poder exercê-los sem o controle dos homens ou de sua família, do Estado ou das instituições religiosas. Tal afirmação recobre as discussões sobre a imposição de padrões de beleza, de normas na sexualidade e na reprodução. É extensiva ao questionamento das visões morais, religiosas e culturais, intolerantes e limitadoras das possibilidades de plena expansão e expressão da condição de ser mulher.

Ainda, a máxima nosso corpo nos pertence contraria o determinismo biológico que naturaliza as questões sociais de di reito e contrapõe-se ao determinismo econômico que define a autonomia da mulher pela sua condição econômica. Opera dessa forma uma separação binária entre a esfera da produção e da reprodução.

Por tanto, esse processo eleitoral nos deixou algumas lições: evidenciaram-se o conservadorismo e a intolerância da sociedade brasileira em relação aos temas que dizem respeito à agenda das mulheres e à autonomia sobre o próprio corpo; a participação das mulheres nas eleições para a Presidência da República representa uma ruptura com a hegemonia masculina no campo da atuação política, como bem demonstrado pelos debates; e, por fim, a apelação a questões morais e religiosas que se situam na esfera do foro privado foram equivocadamente deslocadas para o espaço público. Esse contexto do debate político nos informa da imensa necessidade de cada vez mais ampliar e fortalecer as políticas públicas de promoção da igualdade entre homens e mulheres na sociedade brasileira.

Nilcéa Freire é ministra de Estado da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) 2004-2010, professora e ex-reitora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)

Lourdes Bandeira é subsecretária de Planejamento e Gestão da SPM, e professora titular da Universidade de Brasília (UnB)

Hildete Pereira de Melo é coordenadora geral de Programas e Ações da Educação da SPM, professora Associada da UFF e editora da revista Gênero (UFF)