Economia

Em oito anos foi possível mudar muito a cara do Nordeste e transformar a região na mais dinâmica do país

Em oito anos foi possível mudar muito a cara do Nordeste e transformar a região na mais dinâmica do país. Tânia Bacelar, economista e professora na UFP, fala sobre o desempenho econômico dos programas sociais do governo Lula e a necessidade de se olhar o país regionalmente, levando-se em conta diferenças, carências e peculiaridades

Tania Bacelar

Tânia Bacelar, economista e professora na UFP, fala sobre o desempenho econômico dos programas sociais do governo Lula...Foto: Rossana Lana

Quais foram as principais transformações que o governo Lula promoveu no Nordeste?

O primeiro eixo estratégico importante para o Nordeste foram as políticas sociais, que tiveram impacto diferenciado pelo Brasil, uma vez que o país é muito diferenciado. Assim, o Bolsa Família, que inegavelmente transfere renda em grande volume, tem grande impacto na região. Com 28% da população do país, mas 55% do contingente nacional com renda mensal até um quarto do salário mínimo, ou seja, na linha de pobreza, o Nordeste consome 55% do Bolsa Família. O Sudeste é seu segundo maior destino, 25%. A pobreza no Brasil tem essas duas faces: rural, no Nordeste, e urbana, no Sudeste, nas grandes cidades do país.

O impacto é diferente porque a pobreza rural do Nordeste está concentrada em lugares onde a base econômica é muito frágil. A política social promoveu dinamismo econômico em alta escala – 87% dos municípios brasileiros têm menos de 30 mil habitantes e é neles onde se concentra a pobreza rural. Assim, uma massa de recursos significativa, permanente, mensal, em lugares quase sem base econômica, tem impacto social e econômico. O mesmo não é perceptível em São Paulo, Rio de Janeiro ou Belo Horizonte, porque essa renda adicional faz diferença na proteção social, mas não econômica, uma vez que a economia dessas cidades é bem maior.

A segunda coisa importante foi o aumento do salário mínimo, iniciado no final da última década do século passado, mas acelerado com o governo Lula. Essa medida é importante para todo o país, mas rebate diferente regionalmente. O Norte e o Nordeste foram mais beneficiados porque a proporção de pessoas na faixa de até um salário mínimo é muito maior que nas regiões mais ricas. O Nordeste tem metade dos brasileiros que ganham salário mínimo. Isso aumenta a renda, o poder de compra, o consumo, e dinamiza a economia. Já em uma região como São Paulo, por exemplo, esse impacto é menor porque a maioria da população está acima de dois salários mínimos.

Também o crescimento do crédito foi maior no Norte e Nordeste do que no Sul e Sudeste, tanto para pessoa física como jurídica.

Essas três políticas faziam parte da estratégia econômica do governo Lula, que começou a redinamizar a economia aproveitando o cenário externo favorável. Mas, em um segundo momento, por uma opção estratégica, passou a visar o consumo popular – ao invés de olhar para o topo da pirâmide, focou na base. Isso melhorou a renda e o consumo, promoveu crédito. O consumo dinamiza a economia, a produção vem atrás e, em seguida, atrai investimento. Assim, o impacto das políticas que melhoram a renda foi maior no Nordeste e também no Norte. Essas regiões lideram o crescimento do consumo no comércio varejista nesse período e sua média é superior à média nacional e à média do Sul, Sudeste. Além disso, atraíram as grandes redes de supermercados, grupos da indústria de alimentos, como Sadia, Perdigão, Bauducco, Ambev, entre outros investimentos.

O segundo eixo foi o PAC, no segundo governo. Um grande volume de investimento que também dinamizou a economia do Nordeste, com obras importantes de infraestrutura, como a Transnordestina e a transposição do São Francisco. O interior de Pernambuco, que era um vazio econômico, com 75% da economia do estado concentrada na Zona da Mata para o Litoral, hoje é um canteiro dessas duas grandes obras, com empreiteiras com demanda por habitação, alimentos. Há ainda a duplicação da BR-101, a construção de várias obras hídricas importantes. O PAC também é um segundo elemento de explicação. O estudo “PAC e a leitura regional”, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, do Ministério do Planejamento, concluiu que o PAC é desconcentrador regional, ou seja, seus impactos são mais favoráveis às regiões mais pobres. E dentro do PAC, além de obras de infraestrutura pública e social, há o Minha Casa, Minha Vida. Os dados que temos do dinamismo da indústria da construção civil no Nordeste são taxas chinesas. Esses mesmos programas atuaram no Sul e Sudeste, mas o tamanho da base produtiva, novamente, faz a diferença.

E o terceiro eixo é a Petrobras, que tem realizado obras de grande porte principalmente em Pernambuco e no Rio Grande do Norte. Duas políticas da estatal mudaram no governo Lula e nos beneficiaram: em vez de ampliar as refinarias antigas, fazer novas –três no Nordeste, uma em construção e duas prometidas; e, ao invés de comprar navios no exterior, fazer licitação nacional, estimulando a retomada da indústria naval do país. A refinaria em construção em Pernambuco é um empreendimento de grande porte e chegará a empregar 20 mil pessoas em 2011. Antes sem indústria naval, o estado foi amplamente beneficiado: hoje tem dois estaleiros, caminhando para cinco.

Dinamismo do consumo, investimento por meio das políticas de renda e do PAC e o peso da Petrobras explicam o essencial do que aconteceu com as políticas do governo de emprego e sua formalização. O Nordeste também lidera o crescimento do emprego e do emprego formal.

E alguns setores, embalados pela grande mídia, reduzem as políticas do governo para a região ao Bolsa Família...

O Ministério do Desenvolvimento Social, criado no governo Lula, conta hoje com um orçamento de mais de R$ 30 bilhões. O Bolsa Família tem investimento de R$ 11 bilhões. Os demais programas, com os benefícios continuados, são muito maiores. Superestimam o Bolsa Família, que tem impacto econômico porque define outro salário mínimo, digamos. Regulariza o mínimo na vida das pessoas, e isso é fantástico. Acordar de manhã e saber que vai ter o que comer faz uma diferença fundamental na nossa vida. Claro que dentro daquele orçamento de R$ 100, R$ 120 até R$ 200. Outra coisa é não ter isso e precisar lutar pela comida a cada dia. Esse é o mérito. Não é um programa de desenvolvimento, mas de proteção social. E um país como o Brasil tem de fazer isso. O peso do programa no Orçamento é muito pequeno para o grande impacto social que promove.

Mesmo que grande parte das famílias não venha a sair do programa, que é uma preocupação e também uma crítica?

Acho que uma parte das famílias não vai sair do programa. Na Zona da Mata, a taxa de analfabetismo é de 40%. São pessoas já idosas, que não têm como se reinserir na vida produtiva. Em Pernambuco, metade das usinas fechou na década de 90. No centro de São Paulo também encontramos pessoas que não vão se reinserir na vida produtiva e têm o direito à proteção do Estado. Um país que é capaz de pagar R$ 150 bilhões ao ano de serviços da dívida a ricos não pode pagar R$ 11 bilhões de proteção social aos pobres? A crítica não pode ser pelo econômico... Agora, muita gente diz que o povo não vai mais querer trabalhar. Se ganho R$ 200, por que vou trabalhar por um preço aviltante, como era, R$ 5 por dia? Definiu-se outro patamar. Mas todas as pesquisas do Bolsa Família mostram que se o beneficiário tivesse um emprego de salário mínimo deixaria o programa.

Ao programa também foi atribuído o resultado eleitoral a favor do governo.

Só a população do Bolsa Família não explica a diferença do resultado eleitoral positivo. Seria preciso muito mais gente. O Brasil passou muitas décadas investindo muito mais no Sul e no Sudeste do que no Nordeste. E agora a região está mostrando que, com bons investimentos, tem potencial. É muito ruim ser vista no país como a região que só depende, só pede. É importante as pessoas se sentirem parte do desenvolvimento do país. Isso mexeu com a autoestima das pessoas, teve impacto psicossocial, não foi só no bolso. Mexeu com a leitura da potencialidade da região. O Nordeste começa a ser revisitado e reanalisado.

Há estatísticas sobre o êxodo?

Vamos ter surpresas interessantes com o Censo, porque já há uma tendência, faz duas décadas, de diminuição do êxodo rural. Na década de 1990, a primeira grande cobertura social, que foi a previdência rural, teve impacto na emigração. Segurou os velhos, que na família é quem tem lastro. Essa decisão da Constituinte foi muito importante para evitar o êxodo rural no Nordeste, porque coincidiu com o fim do algodão no semiárido, na década de 1980, que era a única fonte de renda monetária da maioria da população local. O semiárido estava montado em três grandes atividades: pecuária, algodão e agricultura de subsistência.

Mas mesmo assim o Censo deve mostrar que houve um processo de urbanização intenso. Os nordestinos não vão para São Paulo ou Rio de Janeiro, mas para outras cidades da mesma região. E há também sinais de um movimento de retorno.

Verifica-se um êxodo de mão de obra mais qualificada, necessária a esses grandes investimentos. Temos filhos de antigos emigrantes que se qualificaram no Sudeste e estão voltando. Os estaleiros de Pernambuco estão cheios de gente com esse perfil: jovens, com formação de nível médio, com experiência no mercado de trabalho, salário bom, padrão de vida razoável, custo de vida menor e menos estressante do que em uma cidade como São Paulo. Já tem vantagem para voltar.

Pensando que o novo ciclo deve avançar – o que pode ser feito para isso?
Tem de fazer um pouco o que Lula fez. Trabalhar a desigualdade regional em todas as políticas. Se vamos aumentar, abrir novas universidades, a primeira pergunta deve ser onde. E a resposta, onde tem menos. Lula fez isso. O mapa do crescimento do ensino médio de seu governo é fantástico, assim como o das universidades. Ambos estão no interior do Brasil. É uma diretriz importantíssima em todas as políticas.

Por exemplo, o Instituto de Fármacos, criado pelo governo Lula, funciona em rede com diversas universidades, que é a forma mais moderna, em vez de concentrar tudo em um mesmo lugar. Mas o comando do Instituto de Fármacos, que é um dos cinco setores de ponta da política industrial do Brasil, está na Universidade Federal de Pernambuco, e não na Universidade de São Paulo. Já o Instituto de Antibióticos da Federal de Pernambuco é muito bom há muito tempo, mas nunca liderou nada.

O Instituto de Neurociências do Brasil, que reúne cientistas que estavam espalhados pelo mundo e resolveram voltar quando Lula ganhou a eleição, está em Natal. Isso é política de ponta de ciência e tecnologia. É uma diretriz importante porque pensa na desigualdade o tempo todo. Políticas de infraestrutura precisam ter essa visão estratégica das regiões que têm potencial mas, por razões históricas, não foram tão aproveitadas.

O que a senhora acha da crítica de que as políticas do governo Lula estão estimulando o desenvolvimento pelo consumo, por exemplo, de carros?

O Brasil sempre foi assim, o que puxa a economia brasileira é o consumo interno. O problema é que não mudou o padrão de mobilidade urbana no país. As pessoas compram automóveis porque não há transporte de massa. A saída é o transporte individual. E a renda da população melhorou, e ela quer se mobilizar na alternativa que tem. Lula não teve cacife para empurrar outra solução, sobretudo porque, para enfrentar a crise, acabou por estimular essa estratégia de transporte individual. Tirou o IPI, facilitou o financiamento, reforçando essa tendência. Se para combater a crise foi uma estratégia consistente e com bons resultados, em uma perspectiva de longo prazo não é a alternativa. A longo prazo, a política de mobilidade é transporte coletivo de qualidade. Trem, e não ônibus, que polui menos.No PAC já tem uma presença grande das ferrovias, hidrovias. Não tanto quanto o Brasil pode, mas há uma tendência à multimodalidade tanto no Plano Maranhense de Logística e Transportes quanto no PAC, combinando rodovia com hidrovia e ferrovia.

Morei cinco anos em Paris e não precisava de carro. A sociedade fez aquela opção: transporte coletivo, que se sabe a hora que chega, quando parte, não tem acidente, problema com estacionamento e engarrafamento. É caro, mas essa nossa solução é cara para as pessoas, para a sociedade, para a natureza.

A agenda legislativa tem pautadas algumas mudanças na distribuição do dinheiro público, como Lei Kandir, revisão dos fundos de participação, reforma tributária, royalties do petróleo. Quais seriam as mais importantes e efetivas em termos de desenvolvimento regional?

Todas. A reforma tributária é importantíssima. Não existe país no mundo que tenha ICM na origem, isso é uma excrescência em termos de legislação tributária e favorece as regiões mais produtoras. É um mecanismo de concentração regional da renda. O sistema tributário brasileiro é uma máquina de gerar desigualdade social e regional, tem de mudar.

A Lei Kandir penaliza os estados exportadores mais pobres, como o Pará. Foi boa em um momento. Tudo que é bom para um momento não é bom eternamente.

Essa rediscussão da origem da receita pública no Brasil, que é a reforma tributária, vai precisar ser feita.

Como estudiosa defensora do desenvolvimento regional, quais seriam as diretrizes ideais, nesse caso?

Políticas explícitas de desenvolvimento regional. Não avançamos porque faltou financiamento. Lula tentou criar o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, no primeiro ano de governo, e a proposta morreu no Congresso. A culpa é do Congresso, não é de Lula. Ele tentou por duas vezes, mas, como colocou no pacote da reforma tributária, não andou. Tivemos uma concepção interessante no Ministério da Integração, mas não teve recurso. Avançamos pelas políticas sociais, de investimento, de educação superior, fazendo uma leitura regional nas políticas setoriais, mas nas políticas regionais, stricto sensu, caminhamos pouco. E o Brasil precisa delas porque tem problemas regionais importantes.

Nisso as superintendências teriam papel importante...

A Sudam e a Sudene não deslancharam. Os próprios governadores boicotaram. Lula tentou. Passei seis meses trabalhando, repensando a Sudene. Quando a lei chegou ao Congresso, na primeira rodada de discussão, os governadores do Nordeste negociaram parte do fundo para ir diretamente aos estados.
Ficou claro que não tinha o apoio dos governadores.

O Brasil, pela dimensão das desigualdades regionais que tem, precisa dos dois tipos de política: as regionais explícitas e as que consideram a questão regional nas outras políticas. São duas lógicas de formulação de políticas diferentes, avançamos em uma e na outra, não.

Qual sua consideração sobre o equívoco do discurso separatista que surgiu com os resultados da eleição?

Não existe equívoco, é preconceito mesmo. A campanha de Serra abriu espaço, destampou a vergonha do povo de exprimir o preconceito, que é real. E acho que é mais contra os pobres – e, como a concentração de pobres está no Nordeste, aparece contra a região.

É resquício da escravidão. Há um desconhecimento histórico enorme. O Nordeste é o lastro da constituição econômica, cultural e política do Brasil. Mas a discriminação, se em parte é por ignorância, tem também um componente social. Na verdade é contra os pobres, um preconceito de classe.A contribuição da região para a economia e cultura do país é evidente. No século 20 perdemos o trem da industrialização e os investimentos se concentraram no Sudeste. Foi a trajetória do século 20, e não uma fatalidade. Oligarquia não tem só no Nordeste, há também em alguns estados do Sul.

A leitura que o Sul e o Sudeste têm do Nordeste, de que só há miséria e qualquer dinheiro que se coloca lá desaparece, é parte da verdade construída pelo discurso das oligarquias regionais. Estas usavam a pobreza da população para captar políticas públicas em favor delas próprias, e não da população.

Então, com a perda de poder político das oligarquias abre-se espaço para outro discurso: a região tem potencial e se houver investimento prospera. A mudança política é tão importante quanto a mudança econômica. Hoje temos uma safra de governadores apostando no desenvolvimento do Nordeste, querendo investimento para produzir e gerar emprego.

E, do ponto de vista da população, há consciência de estar votando em quem a beneficia?

Claro! Os ricos podem fazer essa opção e os pobres não? Política social no Brasil e no Nordeste também era assistencial. A lógica era gerar dependência, ficar agradecido, ficar em dívida. O Bolsa Família tem de ser visto como um direito da sociedade, da população. O Brasil, que negou tantas oportunidades a essa população, tem a obrigação de sustentar essa população.

Eu queria que Dilma se dedicasse à educação. Ela terá uma chance histórica com o pré-sal, que vai dar uma receita adicional pública importante. A fome de educação é grande. Ela poderia fazer essa opção estratégica.

O Brasil precisa ter todas as crianças e jovens até 18 anos em período integral nas escolas, que devem proporcionar não só formação intelectual, mas também esporte, cultura...

Para o Nordeste, isso seria fundamental. Nossos indicadores educacionais ainda estão muito distantes da média do Brasil. A taxa de analfabetismo é muito maior, o dobro; o número médio de anos de estudo é mais baixo e, do Nordeste rural, muito mais baixo. Seria um investimento estruturante, com uma repercussão enorme, que se juntaria ao dinamismo econômico, o qual também pede gente mais qualificada. E a chance de ter o dinheiro do pré-sal talvez seja única. Era um dinheiro que não estava previsto, portanto tem um espaço de decisão muito grande. Não se faz a revolução de um dia para outro. Precisa ter professor bom, escola boa, equipamentos nas escolas.

Hoje já há muitas universidades e escolas médias no interior. Seria uma grande melhoria investir agora em favor da escola fundamental.

Temos uma deficiência de qualidade que não é só no Nordeste.

É no Brasil todo, mas no Nordeste é muito grave, pelos indicadores de educação que temos. Quem rompeu essa barreira na marra foram as mulheres – os indicadores educacionais delas são fantásticos. A taxa de analfabetismo era o dobro da masculina. Hoje tem mais meninas do que meninos nas escolas superiores e mais doutoras do que doutores. E no começo do século 20 não tinha escola para menina e as famílias preferiam dar formação aos homens.

As mulheres escolheram a educação como estratégia de inserção na vida pública. Agora faltam poder e salário.

Rose Spina é editora de Teoria e Debate