Internacional

Após 28 anos de democracia argentina, presidenta toma posse no mesmo dia em que Raúl Alfonsín assumiu como presidente civil depois da pior ditadura do país

A relação com a América do Sul, os vínculos com o Estado brasileiro e a coalizão de governo que a apoia são frequentes nas referências públicas e decisões da presidenta argentina. O grande desafio de Cristina Kirchner para o novo mandato é enfrentar a crise mundial sem que o desemprego, hoje em 7,2%, volte a subir

Cristina Kirchner inicia, em 10 de dezembro, seu segundo mandato

Cristina Kirchner inicia, em 10 de dezembro, seu segundo mandato. Foto: Antonio Cruz/ABr

Cristina Fernández de Kirchner inicia, em 10 de dezembro, seu segundo mandato de quatro anos com apenas uma mudança importante em sua equipe. Trata-se de Juan Manuel Abal Medina, designado como novo chefe do Gabinete de Ministros, um cargo quase equivalente em importância ao de chefe da Casa Civil brasileira. Abal Medina é um cientista político de 43 anos que, em sua conta no Twitter, alterna duas imagens: uma, do ex-presidente Néstor Kirchner; a outra, abraçado a Luiz Inácio Lula da Silva. O chanceler Héctor Timerman, confirmado no cargo, também costuma se exibir em sua conta pessoal no Twitter com uma foto junto a Lula. Abal Medina torce para o River. Timerman, para o Boca. Se nenhum dos dois utiliza as cores de seu time de futebol para se apresentar nas redes sociais, e sim a figura de um ex-presidente brasileiro, é sensato interpretar suas iniciativas como um símbolo político.

Político de confiança dos Kirchner, Abal foi vice-chefe de Gabinete e, depois, secretário de Comunicação Pública de Cristina, além de um dos assessores de Néstor na União Sul-Americana de Nações (Unasul). O outro era Rafael Follonier, coordenador técnico da Unidade Presidencial com categoria de secretário de Estado.

Essa condição e seu conhecimento do governo e dos dirigentes políticos governistas e opositores lhe permitiram chegar ao cargo que está sendo deixado por Aníbal Fernández, eleito senador nacional pela poderosa Província de Buenos Aires.

No caso de Abal Medina, sua relação com a América do Sul não é um dado acessório. Ele colaborou com Kirchner, por exemplo, na decisiva mediação entre o venezuelano Hugo Chávez e o colombiano Juan Manuel Santos quando, em agosto de 2010, Venezuela e Colômbia estiveram prestes a entrar em guerra.

A América do Sul foi uma das chaves do primeiro mandato de Cristina Kirchner, entre 10 de dezembro de 2007 e 10 de dezembro de 2011, e será também do segundo, porque na Argentina, como no Brasil, só é possível uma reeleição, até 10 de dezembro de 2015.

Dentro da relação com a América do Sul, os vínculos com o Estado brasileiro e com a coalizão governante aparecem de forma frequente nas referências públicas e nas decisões. Quando Cristina Kirchner agradeceu por ter obtido 54,11% dos votos nas eleições presidenciais do último 23 de outubro, fez uma referência explícita a Dilma Rousseff, como presidenta da República Federativa do Brasil e como “amiga e companheira”.

No contexto da reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e  Caribenhos (Celac), celebrada no início de dezembro em Caracas, Cristina e Dilma fizeram uma reunião bilateral de uma hora e meia para tratar da formação do Mecanismo de Integração Produtiva, entre Argentina e Brasil. “Quando o Brasil cresce, a Argentina cresce”, disse o chanceler Héctor Timerman, em uma síntese que pareceu apontar para a visão de que para além das diferenças comerciais, que não superam 10% do volume total do intercâmbio entre os dois países, a Argentina aposta em um novo patamar na relação com o Brasil. E aqui não há espaço para a nostalgia sobre o PIB de cada país cem ou cinquenta anos atrás. O Brasil está quase superando o Reino Unido no ranking das economias mais poderosas do mundo e é, assim, o grande vizinho. Pragmática, a Argentina atua de acordo com essa realidade e se beneficia dela tanto em termos econômicos quanto em termos políticos. Um exemplo do último aspecto é o respaldo da Celac ao pedido de abertura de negociações diplomáticas com o Reino Unido para reaver as Malvinas.

Junto com a China, o Brasil é o principal destino das exportações argentinas, numa diversificação que permitiu à Argentina superar com sucesso a crise do Lehman Brothers e se recuperar com rapidez.

Quando Cristina Kirchner tomou posse com 45% dos votos, após quatro anos de mandato de Néstor Kirchner (2003-2007), Argentina, Brasil e Venezuela já haviam liderado a recusa à formação da Área de Livre Comércio das Américas na Cúpula de Mar del Plata, em novembro de 2005.

Os presidentes Kirchner e Lula tiveram apenas um período de desentendimento, no primeiro semestre de 2004, enquanto a Argentina renegociava sua dívida após o default do final de 2001. Passado esse momento, construíram afinidades estatais, políticas e pessoais que não sofreram jamais uma queda.

Cristina vai encabeçar o terceiro mandato do kirchnerismo à frente de uma coalizão heterogênea mas consolidada. Néstor Kirchner assumiu o poder em 2003 tendo obtido o segundo lugar no primeiro turno das eleições, com 22% dos votos. Não houve segundo turno. Carlos Menem abandonou a corrida presidencial antes da segunda rodada ao saber que as pesquisas o apontavam como perdedor por 65%. A partir desse momento, o governo eleito pelo povo após a crise do neoliberalismo de 2001 construiu legitimidade mediante a renovação da Corte Suprema, a quitação da maior dívida da história financeira do país, uma política econômica baseada no crescimento da demanda popular e uma marcada sintonia com o governo de Lula e com os demais Estados da América do Sul.

Kirchner terminou seu mandato com 70% de popularidade e, em 2007, Cristina o sucedeu com 45%, o dobro dos votos de 2003. A construção política kirchnerista foi abalada em 2008 pela disputa sobre os direitos de exportação com setores do agronegócio e pela perda de apoio nos setores médios. Em 2009, recebeu um alerta com a derrota legislativa na Província de Buenos Aires, que representa mais de 35% do eleitorado. Mas Cristina impediu que a crise do Lehman Brothers impactasse mortalmente na Argentina. E fez isso sem recorrer a ajustes. Ao contrário: estatizou os fundos privados de aposentadoria e dispôs o programa de renda universal por filho (asignación universal por hijo), de efeitos reparadores e estimulantes.

Enviou também ao Congresso e submeteu à discussão nacional, até conseguir maioria parlamentar, uma nova lei de serviços de comunicação audiovisual. O regime legal, aprovado em outubro de 2009, manda romper os monopólios em TV aberta e a cabo e rádios. Não regula conteúdos como a nova legislação do Equador nem tem jurisdição sobre a imprensa escrita. Aliás, Cristina conseguiu que o Congresso aprovasse seu projeto de despenalizar as calúnias e injúrias dos jornalistas contra funcionários políticos.

Cristina será a primeira presidenta sul-americana reeleita em uma situação inédita nos 28 anos de democracia que, alías, se completam no dia de sua posse, relembrando o dia em que Raúl Alfonsín assumiu o cargo como presidente civil após a pior ditadura de nossa história. Como diz o consultor Zuleta Puceiro, “desta vez não houve crise no momento das eleições”. Por isso, a saída da crise ou como a Argentina escaparia do abismo não foi colocada nos comícios presidenciais. “Os cidadãos não entregam um cheque em branco a seus dirigentes, mas votam com absoluta tranquilidade e expressam que escolhem Cristina Fernández de Kirchner para conduzir a Argentina na solução dos problemas pendentes”, explicou Zuleta.

O segundo lugar nas eleições, com quase 40% de diferença, foi do socialista moderado Hermes Binner. Os votos de ambos, somados, representam 70% dos votantes. A direita não encontrou expressão partidária, uma vez que sua principal figura potencial, o prefeito da cidade de Buenos Aires, Mauricio Macri, decidiu se preservar de uma derrota e não concorreu. Ele sonha com um ocaso da onda de centro-esquerda para as eleições de 2015. Mas para essa data faltam doze anos consecutivos de governos baseados no modelo sul-americano de inclusão e reforma.

O desafio exposto por Cristina para seu novo mandato é enfrentar aquilo que o colombiano Santos descreve como um furacão mundial sem que o desemprego volte a subir. Hoje está em 7,2%, ou seja, menos da terceira parte da taxa de 2003, quando Néstor Kirchner assumiu a Presidência.

Também nesse ponto há coincidências entre os governos da Argentina e do Brasil como membros da discussão econômica e financeira mundial dentro do G-20. O mesmo ocorre com a concepção que vê a América do Sul como região nuclear de qualquer estratégia diplomática de cada Estado. Está claro que a Celac não substitui a Unasul, criada em 2004, relançada em 2007 e consagrada em sua eficácia regional com a secretaria executiva de Néstor Kirchner em 2010. Em termos políticos, a Unasul continua sendo o núcleo homogêneo e, como tal, foi o motor da Celac. Ao impulsionar o novo organismo, brasileiros e argentinos cuidaram de não diluí-la, assim como a Unasul não diluiu o preexistente Mercosul.

A Celac inclui o México, e o próprio presidente Felipe Calderón abriu as sessões, mas a Argentina não repete velhos esquemas segundo os quais o México devia ser um contrapeso à densidade internacional do Brasil.

Agora a parceria com o Brasil é reconhecida como legítima, natural e útil.

Tradução: Celina Lagrutta

Martín Granovsky é colunista do jornal Página/12, analista internacional e professor do seminário “Brasil atual”, no Instituto do Serviço Exterior da Nação, da Chancelaria argentina  ([email protected])