O século 21 precisa de uma nova ONU, que não legitime intervenções insólitas, e também de um mundo menos dominado por uma única superpotência
O século 21 precisa de uma nova ONU, que não legitime intervenções insólitas, e também de um mundo menos dominado por uma única superpotência
Salvar a humanidade do “flagelo da guerra” é o princípio básico da ONU, que erra quando, a pretexto de impedir que ditadores matem o próprio povo, deixa que países poderosos violem os princípios da lei internacional, com desrespeito total à soberania nacional de nações mais fracas
O século 21 precisa de uma nova ONU, que não legitime intervenções insólitas. Foto: Jamal Saidi/Reuters
Os acontecimentos na Síria, após aqueles na Líbia no ano passado, têm suscitado pedidos por uma intervenção militar a fim de “proteger civis”, sob a alegação de que é nosso direito ou dever fazer isso. Como no ano passado, algumas das vozes mais inflamadas em favor da intervenção são ouvidas em meio à esquerda ou entre o Partido Verde, que usam e abusam do conceito de “intervenção humanitária”. Na realidade, as raras vozes radicalmente contra tais intervenções geralmente são associadas à direita, a exemplo de Ron Paul nos EUA e do partido Frente Nacional na França. A ação que a esquerda deveria apoiar é a não intervenção.
O alvo principal dos intervencionistas humanitários é o conceito de soberania nacional, no qual a lei internacional atual se baseia e a qual eles estigmatizam porque permite que ditadores matem o próprio povo à vontade. Às vezes se tem a impressão de que a soberania nacional nada mais é do que uma proteção para ditadores cujo único desejo é matar seu povo.
A verdade é que a justificativa básica da soberania nacional é exatamente proporcionar pelo menos uma proteção parcial a Estados fracos contra os fortes. Um Estado suficientemente forte pode fazer o que quiser sem se preocupar com uma intervenção externa. Ninguém espera que Bangladesh interfira nos assuntos internos dos EUA. Ninguém vai bombardear os EUA para obrigá-los a modificar suas políticas monetárias ou de imigração por causa das consequências humanas de tais políticas para outros países. A intervenção humanitária parte sempre dos poderosos e atinge os fracos.
O próprio princípio básico da ONU era salvar a humanidade do “flagelo da guerra”, tendo as duas guerras mundiais como referência. Isso deveria ser feito justamente pelo respeito total à soberania nacional, a fim de impedir a intervenção militar de grandes potências em nações mais fracas, qualquer que fosse o pretexto. A proteção da soberania nacional na lei internacional se baseava no reconhecimento do fato de que conflitos internos em países fracos podem ser explorados por países fortes, a exemplo das intervenções da Alemanha na Tchecoslováquia e na Polônia sob a alegação de “defesa das minorias oprimidas”. Isso levou à Segunda Guerra Mundial.
Houve então o fim da colonização. Na esteira guerra, dezenas de países recém-independentes se libertaram do jugo colonial. A última coisa que queriam era ex-potências colonialistas interferindo abertamente em seus assuntos internos (embora isso muitas vezes tenha persistido de maneiras mais ou menos veladas, sobretudo em países africanos). Essa aversão à interferência externa explica por que o “direito” de intervenção humanitária tem sido universalmente rejeitado pelos países do Sul, como na Cúpula do Sul em Havana, em abril de 2000. No encontro em Kuala Lumpur em fevereiro de 2003, um pouco antes do ataque dos EUA ao Iraque, “os chefes de Estado ou de governo reiteraram a rejeição pelo Movimento Não Alinhado do chamado ‘direito’ de intervenção humanitária, que não tem base na Carta das Nações Unidas nem na lei internacional” e “também observaram semelhanças entre a nova expressão ‘responsabilidade de proteger’ e ‘intervenção humanitária’, e pediram ao órgão coordenador para estudar minuciosamente a expressão ‘responsabilidade de proteger’ e suas implicações com base nos princípios de não interferência e não intervenção, assim como em relação à integridade territorial e à soberania nacional dos Estados”.
A principal falha das Nações Unidas não foi deixar de impedir ditadores de matar o próprio povo, e sim deixar que países poderosos violassem os princípios da lei internacional: os EUA na Indochina e no Iraque, a África do Sul em Angola e Moçambique, Israel nos países vizinhos, a Indonésia no Timor Leste, sem falar em todos os golpes, ameaças, embargos, sanções unilaterais, eleições compradas etc. Muitos milhões de pessoas perderam a vida devido a violações constantes da lei internacional e do princípio de soberania nacional.