Política

O clima de indignação e saturação da sociedade com a corrupção tem impulsionado julgamentos precipitados de casos rumorosos de que o “mensalão” é um dos exemplos

Em um cenário em que a discussão da corrupção não está dissociada da discussão sobre representatividade ou governabilidade é fácil entender por que o caso do “mensalão” chama tamanha atenção e há tanta expectativa com o seu julgamento

STF Julgará o chamado caso mensalão

Esperemos que o julgamento do "mensalão" seja um exercício ponderado da democracia. Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr

O cidadão brasileiro está farto de tanta corrupção política. Isso é inegável e indiscutível. Chega a ser um truísmo afirmar que a corrupção no Brasil já virou lugar-comum. Há inúmeras causas para esse fato, mas gostaríamos de chamar a atenção do leitor para uma delas – a evidente desconfiança do cidadão eleitor em relação às instituições representativas e seus representantes.

É de fato enorme hoje o sentimento de desconfiança em relação às instituições representativas, especialmente o Congresso Nacional e os partidos políticos.

As instituições eletivas passam por uma síndrome de desconfiança que as corrói. De outra parte, a corrupção também parece contribuir com o fortalecimento das instituições de caráter não eletivo, como o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Polícia FederalInstituição que goza de grande apoio popular segundo pesquisas – aqui a imagem de combate ao crime organizado se faz presente (ações midiáticas à parte)1 e segmentos de auditoria pública.

Esse sentimento é perigoso porque leva à generalização de que não precisamos do sistema político e de seus representantes, pois existem “seus substitutos” mais eficazes.

Esse cenário, é verdade, não é prerrogativa brasileira, mas por certo tem afetado perigosamente a legitimidade das instituições (em parte por culpa de muitos de seus dirigentes), que se recusam a modificar e aperfeiçoar normas que pudessem elevar minimamente o padrão de moralidade no processo político e eleitoral brasileiro, cortando na própria carne, em que deveriam atuar de modo exemplar.

Temos, sim, dado passos algo vacilantes em relação ao tema. A aprovação da Lei da Ficha Limpa, por exemplo, foi sem dúvida um passo muito positivo para tentar alterar essa realidadeUma iniciativa popular, e não político-parlamentar , mas não se pode dizer que houve sua consolidação.

Os questionamentos judiciais sobre sua constitucionalidade, os sucessivos ataques da própria classe política a seu processo de elaboração e a forte reação à sua eficácia fazem dessa conquista algo duvidável. Será que um dia teremos sua efetiva aplicação? O próprio Tribunal Superior Eleitoral a cada momento sinaliza de uma forma a interpretação da lei, contribuindo assim, ainda mais, para o desgaste do “político” no BrasilLamentavelmente acabamos de saber que o Tribunal Superior Eleitoral, por uma votação de 4 a 3, decidiu que quem tem contas eleitorais sujas poderá ser candidato nas eleições municipais de 2012. De acordo com estimativas do próprio TSE, cerca de 20 mil políticos integram o cadastro da Justiça Eleitoral de contas rejeitadas. Essa posição confronta com uma anterior do mesmo tribunal, que estabelecia como condição para o registro de candidaturas apenas a apresentação das contas, e não a necessidade de que tenham sido aprovadas. Após as eleições, todos os candidatos têm de prestar contas sobre gastos e arrecadações da campanha.

Outro avanço importante na direção da democratização das relações de poder no Brasil foi a aprovação da Lei de Acesso à Informação. As notícias que a imprensa vem revelando sobre os escaninhos dos poderes no Brasil preocupam o povo brasileiro. Tornar públicos salários, cargos, padrões remuneratórios – algo que deveria ser natural em uma democracia – tem se tornado um cavalo de batalha.

Mas aqui também os “heróis sem voto” tornam-se vilões, ao conceder liminares que apoiam o sigilo dessas informações – às quais o povo brasileiro tem direito –, afrontando igualmente a dignidade dos cidadãos.
De outro lado, é inegável que a transparência (sobretudo do governo federal) – por força das sucessivas leis que buscam aplicá-la – vem permitindo maior acesso do cidadão comum à informação sobre a aplicação direta dos recursos públicos. Mas também é preciso ter consciência de que essa realidade não chegou a todos os municípios brasileiros, que são, como sabemos, em número infinitivamente superior ao dos Estados-membros da Federação.

Ademais, é preciso lembrar, a transparência por si mesma não resulta em eficiência do controle da corrupção se não é aplicada de acordo com os princípios que regem a administração pública, como a legalidade, a isonomia, a publicidade, a moralidade etc. O reforço da publicidadeO princípio da publicidade como uma prática corriqueira deveria, assim, ser incorporado ao dia a dia da cidadania brasileira.

Ninguém pode ou deveria achar exótico um servidor público ter seus padrões de vencimento estampado na imprensa como uma atividade corriqueira, seja ele um juiz, um promotor, um desembargador, um ministro do Supremo Tribunal Federal, seja um servidor do Legislativo ou do Executivo.

A publicidade é, desse modo, uma forte aliada do controle da corrupção e deve caminhar na direção de tornar mais claras as relações do sistema político e da gestão pública na dimensão cidadã e republicana.

Vê-se claramente e de uma forma geral que o poder político reage e renega sua fonte de poder e legitimidade – que é o povo. E o povo passa a olhar o político com desconfiança e desdém. Surge o perigoso círculo vicioso.

Parece de fato que ele quer confrontar a verdade universal contida no artigo 1º, parágrafo único, de nossa Constituição: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

A vontade do povo, nesse contexto, vem sendo sucessivamente desvirtuada por aqueles que deveriam representá-lo. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio nessa relação.

Instabilizar a fonte de legitimidade e a vontade popular nunca levou os detentores do poder a bons lugares. Ao contrário, a democracia e os políticos podem correr um risco que evidentemente deve ser evitado a qualquer custo.

O rumoroso caso do mensalão

Cremos, assim, que é nesse cenário e contexto que o rumoroso caso do “mensalão” será analisado. Por que tanta expectativa em relação a esse caso específico? Será porque ele, consciente ou inconscientemente, pode representar na psique brasileira o sentimento histórico de desapreço do sistema político pelo combate sistemático à corrupção? Ou será “simplesmente” porque se digladiam grupos políticos representantes de determinados setores do establishment político brasileiro, cada um deles torcendo e insuflando para que seu grupo saia menos desgastado de todo esse processo? Ou seria ainda porque o povo vê nesse, como em outros casos, apenas o reflexo de uma situação recorrente?

Faltam reformas que recoloquem sua vontade em seu devido lugar no cenário político brasileiro. E, enquanto o poder político não se fizer respeitar, não há alternativa senão tolerar sua existênciaEssa parece ser uma das leituras possíveis da situação, não a única, evidentemente. Até porque a corrupção é devida a múltiplos fatores e atores, não estando isolada em um dos poderes da República.

As recentes CPIs do Congresso Nacional parecem  mostrar como funciona a lógica do “poder do confronto”. Todos contra todos, para que tudo possa ser controlado a favor desse ou daquele grupo de poder...

Não temos respostas acabadas para essas perguntas, mas certamente elas bem ilustram o momento que vivemos e talvez, por esse caminho, possamos compreender um pouco mais toda a expectativa que envolve o julgamento do “mensalão”.

Sabemos que é extremamente difícil ao homem comum do povo conhecer filigranas jurídicas. Aliás, ele nem sequer tem obrigação de conhecê-las. Age em outro patamar, o da percepção. Sabe o que lhe convém e o que não lhe convém. O povo tem sua medida de julgamento – as eleições. O que nos parece importante tentar explicar, ao homem do povo, como trabalha o Poder Judiciário. Qual sua lógica, qual seu código, qual seu padrão.

Em regra, o Poder Judiciário não trabalha pela lógica da pressão (social ou política). Evidentemente recebe pressão, mas não é dominado a ponto de tornar a aplicação do Direito uma serva da pressãoPor isso me parece muito arriscada a tentativa de emparedar juízes com opiniões de sindicatos e de movimentos sociais a respeito de entendimentos do Poder Judiciário. Em uma democracia todos têm direito a ter direitos e visões diferentes do fenômeno social. Do mesmo modo, o monopólio da distribuição da Justiça é do Poder Judiciário. A solução para quem discorda da decisão judicial é o recurso, quando cabível. Nada além disso.

Em um cenário em que a discussão da corrupção não está dissociada da discussão sobre representatividade ou governabilidade é fácil entender por que o caso do “mensalão” (como outros parecidos) chama tamanha atenção, muito além de seus atores em si mesmos considerados.

Na verdade, em todo o mundo, as oportunidades para a corrupção aumentam quando os elos entre eleitores e representantes são tênues, quando o financiamento de campanha é fragmentado por milhares de candidatos, dificultando o monitoramento, e quando há a necessidade de negociar constantemente, pelos mais diversos meios e apoios, para formar maiorias no Congresso Nacional.

Portanto, a discussão sobre governabilidade e representatividade passa também pelo problema da corrupção.

Qualquer episódio sobre alegada malversação de dinheiro público e de escândalos que envolvem sobras de campanha, trocas de favores políticos em torno de posições no poder e fora dele se tornaram temas corriqueiros nacionais, sendo ainda certo que sobretudo após 2005 a imprensa parece ter se especializado mais nesse tipo de cobertura jornalística, como jornalismo investigativo.

Essa cobertura contínua prestou importante contribuição para aprofundar a transparência do sistema político brasileiro, mas também serviu para pôr em xeque as próprias práticas e instituições da política brasileira.

Dois escândalos impactaram fortemente a efetividade do último biênio do primeiro mandato de Lula, norteando a discussão eleitoral em 2006. O “mensalão” surge nesse cenário complexo.

A acusação era de uso de sobras de campanha, em valores milionários, para a compra de apoio político de correligionários da coligação do governo em votações de interesse do presidente. Pela intermediação de atores privados, o dinheiro seria canalizado para políticos em troca de votos, nas propostas do Executivo.

Em outros termos. Tratava-se de um esquema de corrupção ativa de parlamentares. Dos mais de vinte acusados e julgados em plenário, apenas três foram punidos, tendo o mandatos e os direitos políticos cassados por oito anos.

A falta de reformas políticas consistentes

Nesse cenário, parece inevitável, de um lado, reconhecer o nível de saturação do povo com o Legislativo. Lamentavelmente o legislador parece não se preocupar como deveria com o tema da corrupção. Falta-lhe vontade para aperfeiçoar as instituições políticas brasileiras. É dizer, cortar na própria carne com vistas a um futuro melhor para a cidadania brasileira tem feito muita diferença.

O Poder Legislativo parece não perceber que a médio e longo prazo a falta de seriedade em implementar reformas políticas consistentes levará a seu perigoso isolamento na sociedade brasileira, o que não contribui em nada com a democracia, que todos temos o dever de implementar e vivenciar.

E parece ser exatamente esse nível de indignação e saturação que tem impulsionado (para o bem ou para o mal) os julgamentos precipitadosReferimo-nos a “prejulgamentos” da imprensa sobre casos rumorosos, mediáticos e justiceiros de casos rumorosos de que o "mensalão" é um dos exemplos.

Acredito (e insisto nesse ponto) que o Legislativo não tem se debruçado com seriedade e vontade sobre as reformas políticas que o Brasil necessita ou que possam contribuir para aperfeiçoar a saudável relação cidadão-poder político.

Notem os leitores que, apesar de o legislador ser um dos principais protagonistas em regimes democráticos, no tema das reformas políticas o Legislativo brasileiro aprovou poucas medidas que caminhem nessa direção. Isso passa ao povo brasileiro uma mensagem extremamente negativa e cria um círculo vicioso muito perigoso.

É como se o povo pensasse: afinal, para que precisamos do poder político se ele não só não aperfeiçoa as instituições como parece prejudicar a vontade popular?

O inconsciente coletivo e a percepção rudimentar entendem que os políticos são pessoas que vivem para engordar sua conta bancária e passam longe dos desígnios republicanos e do interesse público.

Forma-se assim uma negativa e equivocada dimensão do “fenômeno político”, que leva à perda de credibilidade nos políticos e, consequentemente, em todo o sistema político.

Recorde-se que nas poucas vezes em que o Legislativo (e portanto seus parlamentares) atuou, a exemplo do caso da “cláusula de barreira”, a ausência de consenso inicial gerou um questionamento no Judiciário, ela não foi efetiva, o que levou este poder a reverter a decisão antes que a mudança surtisse efeito.

Assim, uma das únicas mudanças profundas propostas pelo Poder Legislativo foi revista e alterada pelo Poder Judiciário.

Como bem recordam Timothy Mulholland e Lúcio L. RennóReforma Política em Questão, Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, 2008, uma das únicas propostas aprovadas e ainda em vigor, de autoria do Poder Legislativo, foi o aumento do número permitido de nomeações nas eleições proporcionais para deputados federais, estaduais e vereadores, para cada partido e coligação em 2001. No mesmo ano, o Poder Legislativo alterou o rito de tramitação de medidas provisórias, proibindo sua reedição. Por esse lado, a reforma foi bem eficiente. Mas não foi feliz, de outro, pois ao tentar reduzir a emissão de novas MPs falhou duplamente. Primeiro, não reduziu a incidência de MPs. Segundo, criou o instituto do trancamento de pauta, que acabou por “punir o Legislativo” e tornar sua agenda ainda mais subordinada à do Poder Executivo.

No que diz respeito a reformas nas regras de financiamento de campanha (um dos aspectos que tocam no problema do “mensalão” direta ou indiretamente), foram apenas paliativas, tendo em vista responder à crise política gerada pelos escândalos de corrupção. Os gastos de campanha em 2006, aliás, aumentaram, apesar de alterações na Lei nº 9.096/1997, o que aponta a baixa eficiência da medida tomada.

Seja como for, é certo que as reformas políticas que vingaram nos últimos dez anos são incipientes, cosméticas e sempre adotadas às vésperas de eleição – e não após crises políticas profundas – e, em sua maioria, beneficiaram os políticos no poder.

Em razão da falta de consenso (cremos intencional) sobre a necessidade e o tipo de reforma política que o Brasil precisa para aperfeiçoar a relação político-povo, assim como do sistema eleitoral como um todo (lista fechada, financiamento de campanha, lealdade partidária, coligações e seus efeitos), não podemos ter grandes esperanças de mudanças estruturais positivas.

O julgamento do caso chamado “mensalão”

Talvez seja um bom exercício dizer o que devemos evitar nesse caso, como em qualquer outro em que haja grande mobilização midiática, em razão de seu conteúdo ou por representar um repositório de expectativas populares, funcionando como uma perigosa catarse voluptuosa de tudo contra todos.
O Poder Judiciário deve agir com base nas provas produzidas no processo. Nenhum julgamento pode ser um juízo de exceção ou uma vendetta de grupos políticos. O Supremo Tribunal Federal não pode nem deve julgar com os ouvidos voltados ao clamor público, o que abalaria a confiança de sua missão de se pronunciar com responsabilidade e independência.

É claro que o juiz é um ser humano sujeito a pressões. Isso é uma coisa; outra, bem diferente, é deixar-se levar pelo clamor público e pela pressão midiática. Isso seria intolerável e não acreditamos que o Supremo Tribunal Federal se preste a esse papel.

O Supremo Tribunal Federal deve julgar com os olhos voltados à Constituição, seu maior guia, sobretudo no que toca, nesse caso (em especial) às garantias processuais do acusado.

Como se trata de um processo gigante, com centenas de partes, tudo é grandioso, árduo, delicado e cansativo. Não pode haver tolerância com a chicanaProlongamento artificial do processo pelas partes, com má-fé , mas também devem estar atentos os ministros com as sagradas garantias dos acusados.

Aparentemente o STF já percebeu esse fato, pois no caso mesmo do "mensalão" deixou assinalado em uma questão de ordem que “considerando que cabe às partes fornecer, corretamente, o endereço das testemunhas que arrolaram, aliado ao fato de que o denunciado, por três vezes, informou erroneamente o endereço da testemunha (...) impõe-se o indeferimento da oitiva da testemunha, sob pena de conferir-se ao acusado o poder de perpetuar a instrução processual, mediante a indicação sucessiva de outros endereços igualmente incorretos", diz indeferimento da oitiva da testemunha, de 12/8/2010.

O constitucionalismo contemporâneo orgulha-se de ser atento às garantias constitucionais sem excessos ou formalismos cerebrinos. A teoria da argumentação, a obrigatoriedade da motivação exaustiva das decisões judiciais, a capacidade de convencimento de seus pares (no Supremo) e a honestidade intelectual na livre apreciação das provas são a maior garantia de um julgamento equilibrado e justo. Em qualquer caso.

Uma Corte Constitucional não pode ser palco onde vaidades são reveladas mediante jogadas de efeito, sem o devido amparo em prova e contraprova, argumento e contra-argumento. O processo deve caminhar como um pêndulo, assegurando a todos iguais oportunidades e garantias em todo o seu desenrolar.

O julgamento do "mensalão" não pode ser uma resposta ao sentimento popular por um Estado brasileiro com menos corrupção. Ele é o que consta do processo e dos autos. Nada mais, nada menos do que isso. Esperemos que o processo do "mensalão" seja um exercício ponderado de democracia, para todas as partes envolvidas, para que ninguém possa dizer que o Estado de Direito e suas regras foram violados ou mal interpretados.

Marcelo Figueiredo é advogado, consultor jurídico em São Paulo, diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP e professor de Direito Constitucional dos cursos de graduação e pós-graduação da mesma faculdade, presidente da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas, seção brasileira do Instituto Ibero-Americano de Direito Constitucional, com sede no México, e membro do Comitê Executivo da Associação Internacional de Direito Constitucional ([email protected])