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Certos problemas dos municípios não têm solução no marco da cidade. É preciso compartilhar soluções. Algumas leis hoje induzem o consorciamento

A nova geração de prefeitos e prefeitas que assume em janeiro de 2013 terá de compreender seu contexto. Somos uma federação que tem concepção homogênea de seus entes federados, todos têm a mesma competência, mas são muito diferentes na prática

No século 21, o modo petista de governar enfrentará complexidades

No século 21, o modo petista de governar enfrentará complexidades. Foto: Daniel Garcia

Consultor da Presidência da Caixa Econômica Federal e membro da coordenação do Observatório dos Consórcios Públicos e do Federalismo,  Vicente Y Pla Trevas tem longa experiência na formulação do modo petista de governar. Como secretário nacional de Assuntos Institucionais do PT na década de 1990 acompanhou as gestões do partido nos diversos níveis. No governo Lula foi secretário de Assuntos Federativos da Presidência da República (2003-2007). Nesta conversa, o professor, forma respeitosa e carinhosa que usa para tratar todos, fala sobre o papel do município nesse novo ciclo de desenvolvimento.

O que explica o fato de o governo federal ser tão bem avaliado e a grande maioria dos municípios, aos olhos população, parecer que vai muito mal?

Nos dois mandatos do presidente Lula e na continuidade com a presidenta Dilma, as estratégias do governo federal, tanto em relação às políticas públicas quanto aos investimentos, tiveram no município um parceiro. Programas como Minha Casa, Minha Vida, Bolsa Família, Pronasci e de cada área do governo têm como ponto de partida uma decisão federal, com financiamento, na maioria das vezes, federal. Mas sua execução é federativa, o que implica contratualização com os municípios ou estados.

O presidente Lula sempre apostou no papel efetivo dos municípios nesse novo ciclo histórico de desenvolvimento. A postura do governo federal valoriza a relação com os municípios, entendendo-os como parceiros, tanto na concepção quanto na implementação das políticas públicas. Não fosse a participação dos municípios, o Bolsa Família, por exemplo, não teria sido tão bem-sucedido.

Sobretudo a partir do segundo mandato do presidente Lula, com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e os investimentos, as cidades começaram a ter a oportunidade de enfrentar seus problemas estruturais. O Brasil é majoritariamente urbano, mas suas cidades estão inacabadas, pois não completaram sua infraestrutura de saneamento, sistema viário etc. Mesmo em São Paulo há claramente uma área consolidada e outra inacabada, ruas sem asfalto, sem calçadas, paredes sem reboco.

As cidades são segregadas, pois uma parte de sua elite apostou no crescimento com conjuntos habitacionais de luxo, shoppings. O governo Lula começou a quebrar essa lógica à medida que passou a enfrentar com políticas públicas a pobreza, que tem hoje sua forma mais dramática na área urbana das grandes aglomerações, convivendo com riqueza e opulência.

Já que existem essas oportunidades, qual o problema, então?

Na minha avaliação, prefeitos e prefeitas não estão aproveitando suficientemente essa oportunidade de investimentos públicos oferecida pelo governo federal. Por exemplo, o grande volume de recursos para habitação no Minha Casa, Minha Vida. Essa grande quantidade de casas que vêm sendo construídas está produzindo novos tipos de bairro, um tecido urbano que integre mais as pessoas, ou reproduzindo os conjuntos habitacionais populares tradicionais, distantes dos serviços e de infraestrutura?

Quando há investimento federal, no caso da habitação, a execução do projeto pressupõe a presença da prefeitura, porque as competências para aprovar o projeto do loteamento e a construção, a regulação de uso e ocupação do solo, os códigos de habitação são municipais.

Falta ao município agregar o valor decorrente de suas próprias competências, em habitação, saneamento etc. Agora, vamos renovar os governos municipais, que funcionam com um preocupante déficit de capacidade de governo e com padrões de gestão pública inconsistentes.

São 5 mil municípios com todo tipo de disparidade e também muito diferentes.

Primeiro, os municípios se fortaleceram com o redesenho do pacto federativo na Constituição de 1988, quando estávamos saindo de uma ditadura militar. Houve vários avanços, estabeleceu-se uma relação entre federação e descentralização, porque a forma federal de organizar o Estado nacional tem por definição a existência de esferas autônomas de governo. E, no caso brasileiro, a Constituição deu ao município o estatuto de ente federado, podendo superar a condição de ator coadjuvante subalterno no jogo político da Federação.

Além da Constituição, novos marcos regulatórios foram constituídos. Por exemplo, o Estatuto da Cidade, aprovado em julho de 2001, empoderou os municípios, mas, após onze anos de sua instituição, sua incidência real na produção do espaço urbano e no desenvolvimento das cidades foi relativa.

A que o senhor se refere quando fala em capacidade de governo?

Capacidade de planejamento, de regulação do território, de gestão dos serviços... Opera-se tudo com um padrão de gestão inconsistente – a regulação pública da cidade, a regulação do uso e ocupação do solo, os serviços de saúde, educação e transporte. A ocupação de áreas de risco, por exemplo, de um lado decorre da pobreza, mas de outro da incapacidade de regulação do território e de fiscalização.

Vivemos uma situação promissora, mas contraditória. As cidades têm, como não tinham há duas décadas, condições de enfrentar seus problemas, pois o Estado brasileiro aumentou sua capacidade de investimento. Ao mesmo tempo, porém, há uma grande dificuldade de aproveitar esses investimentos para transformar os padrões das cidades, as funções do espaço urbano.

Continuaremos a separar emprego e moradia? Continuaremos a deixar nossas cidades expandirem-se territorialmente? Por que não enfrentamos o tema de adensar nossas cidades? Claro que para isso é preciso enfrentar sérios problemas, como o da mobilidade. As grandes cidades estão parando, porque estão vivendo as contradições do processo de crescimento do Brasil. Para enfrentar a crise de 2009, o país teve de operar políticas macroeconômicas antirrecessivas. A decisão de estimular a compra de carro tem razão macroeconômica em uma política anticíclica. O Minha Casa, Minha Vida teve razões de política urbana, mas também obedeceu a uma lógica de política macroeconômica, pois a cadeia da construção civil poderia garantir bom nível de emprego e renda, rapidamente.

A partir de janeiro de 2013, será estimulada a política dos resíduos sólidos. As prefeituras estão intimadas por lei a resolver essa questão até 2014. Então, é preciso aproveitar a agenda dos resíduos sólidos para definir um padrão mais inteligente de consumo da população, dar melhor qualidade de vida ambiental, implementando a coleta seletiva, vinculando lixo, produção de energia, geração de emprego e atividade econômica, incorporando os catadores.

Essa agenda dos resíduos sólidos tem um marco regulatório novo, a Lei dos Resíduos Sólidos, um plano nacional federal e os prazos legais. Pode ser uma oportunidade ou não. Uma hipótese é que por déficit de capacidade de governo, sem saber planejar e projetar, sob as intimidações da lei e do Ministério Público, o prefeito se renda às ofertas do mercado. Esse tema também sinaliza que certos problemas dos municípios não têm solução no marco da cidade. É preciso compartilhar soluções. A própria lei dos resíduos sólidos induz o consorciamento.

Hoje a Federação possui a Lei dos Consórcios Públicos, promulgada em 2005 e regulamentada em 2007. O consórcio público é um arranjo institucional para facilitar a cooperação, a gestão associada de serviços e políticas públicas. Acredito que nossos prefeitos não têm cultura de cooperação e precisam aprender a tê-la. Nosso sistema político é competitivo, não há tradição de cooperar. Os novos prefeitos terão não só de buscar recursos para enfrentar seus problemas como também pensar o modo mais adequado de fazê-lo. Pode ser uma forma mais inovadora, que dê maior potência de gestão, ou uma forma mais tradicional.

Qual é o grande desafio dessa geração que assume em 1º de janeiro de 2013?

Primeiro, essa geração terá de compreender seu contexto. Falamos dos municípios em pé de igualdade do ponto de vista do pacto constitucional, mas de coisas muito diferentes na vida prática. Existem as assimetrias federativas. Se compararmos qualquer indicador – população, PIB, capacidade de gestão –, a diferença é imensa. Somos uma federação que tem concepção homogênea de seus entes federados, todos têm a mesma competência, mas há um município com população de mais de 11 milhões, São Paulo, e outro no mesmo estado que não chega a ter novecentos habitantes. Borá é o menor do Brasil.

Então, os prefeitos e as prefeitas que vão assumir em 2013 precisam antes de tudo entender de seu município, onde se encontra. Um pequeno na Amazônia e outro de mesmas dimensões na região metropolitana de São Paulo, embora tenham condição similar, estão inseridos em contextos e lógicas diferenciados.

Um município pequeno não tem arrecadação.

Por dois motivos: parte da população não tem renda suficiente para ser tributada e a renúncia fiscal, como pacto das elites.

A maioria dos municípios não cobra os próprios impostos. E, portanto, só tem na agenda buscar recursos, tentando ampliar sua participação na apropriação da receita pública. O governo federal, os governos estaduais e os municipais se apropriam da receita pública diferenciadamente. Nos anos 1990, houve uma repactuação pela crise do ajuste fiscal, ou a recentralização da receita na mão do governo federal, pela criação de um mecanismo que capta as contribuições, que não são objeto da partilha federativa. Já os impostos, de um modo geral, são objeto da partilha federativa. Por exemplo, uma parte do IPI alimenta os dois fundos constitucionais: o Fundo de Participação dos Estados e o Fundo de Participação dos Municípios. O mesmo acontece com o ICMS, que é o maior imposto do Brasil, com 25% dele indo para os municípios. Então, há uma apropriação da receita pública pelos municípios em razão do acesso que têm ao fundo constitucional ou das políticas de transferência voluntária que o governo federal e os estados fazem.

Há o terceiro elo da cadeia, que são as receitas próprias dos municípios. Os prefeitos e as prefeitas que assumirão em 2013 encontrarão um país distribuindo renda e, portanto, com possibilidade de viabilizar os tributos municipais aos quais seus antecessores renunciaram. É um desafio para nossos governantes ter lucidez política para efetivar os impostos municipais. Mas, como eles vêm de cidades que têm a cultura da renúncia fiscal, muitas vezes falta-lhes coragem. Em Contagem, por exemplo, há um pacto muito estruturado no senso comum: o IPTU não pode incidir sobre as propriedades singulares (moradias).

Os prefeitos também vão receber um conjunto de investimentos em curso. Por exemplo, as cidades-sede da Copa terão de buscar padrões mais consistentes de gerir investimentos e serviços.

Que governabilidade se tem sobre isso?

Creio que tende a haver um pacto dos municípios com os estados e o governo federal para um desenvolvimento da capacidade de gestão. Até agora, as ofertas que tanto o governo federal como os estaduais fizeram nessa matéria são fragmentadas, não se originam de uma estratégia de direito institucional dos municípios. Às vezes um município entrega um projeto errado, malfeito, porque não tem capacidade, não tem uma burocracia minimamente profissional, não construiu procedimentos administrativos.

É possível até que desconheçam a que recursos têm acesso?

Alegar falta de informação é um argumento residual. O governo federal mantém diálogo com os municípios, há os portais. Anualmente prefeitos vão a Brasília, em uma grande marcha. A Caixa Econômica Federal tem atendimento às prefeituras, em cada uma das 78 superintendências regionais, que cobrem o território nacional. Opera o pagamento do Bolsa Família, do Fundo de Garantia, opera os programas federais de habitação e de outros ministérios.

Outro problema das cidades é a superpopulação. Hoje, 80% da população brasileira está em apenas 25% dos municípios.

Cerca de 75% dos municípios abrigam apenas 20% da população. E, dos 80%, quase metade está em menos de trezentos municípios.
Então, temos as grandes aglomerações urbanas, as grandes cidades, as regiões metropolitanas, sobre as quais pouco se avançou. As regiões metropolitanas foram constituídas na década de 1970, durante o governo militar. Essa forma de organizar o Estado estava sob tutela de um regime autoritário.

Com a Constituição de 1988, ocorreu a repactuação da Federação. Hoje é competência dos estados federados redesenhar as formas de governança das regiões metropolitanas e de outras duas categorias de agregação territorial: aglomeração urbana (foram criadas duas em São Paulo, Sorocaba e Jundiaí) e microrregiões.

Somente em 2011 a maior região metropolitana do país, São Paulo, se redesenhou à luz da Constituição. No anos 1990, o estado construiu uma lei geral das diretrizes metropolitanas, da qual derivaram primeiro a Baixada Santista, depois a de Campinas e só no ano passado a de São Paulo.

Os prefeitos precisarão ter capacidade de relacionamento em uma nova governança territorial. Muitos dos problemas das cidades têm solução compartilhada. Algumas cidades não têm mais território para abrigar a estação final dos seus resíduos sólidos. O lixo de Praia Grande, por exemplo, sobe todo dia a Serra do Mar para ser depositado em Mauá.

Além desses novos problemas, os prefeitos e as prefeitas terão de lidar com temas permanentes e recorrentes, como a educação, os serviços de saúde e transporte.

O padrão de insuficiência desses serviços decorre de duas variáveis: financiamento e gestão. Se prevalecer a lógica de financiamento, pode ocorrer um impasse que eu chamo de “saco sem fundo”. Alocam-se recursos, mas não transformamos a realidade. É preciso, portanto, alterar a capacidade de gestão.

Entre os novos problemas, quase todas as cidades, exceto aquelas diminutas, estão vivendo o da mobilidade. O tema da mobilidade urbana é emergente e um impasse para algumas cidades, como é o caso de São Paulo. Será preciso encarar alternativas ao carro.

No caso, transporte público de qualidade.

Transporte público, mas é preciso pensar também na mobilidade das pessoas no território, que pressupõe veículos e não pressupõe veículos, como as calçadas.

Outra nova agenda ainda é a qualificação dos espaços públicos. As populações estão começando a perceber que a lógica das cidades segregadas, a vida em condomínios, shoppings, clubes, não tem futuro. Infelizmente, nos anos 70, 80 e 90 do século passado, as elites e a opinião pública apostaram que qualidade de vida e espaços privativos eram sinônimos. E hoje estamos convencidos de que qualidade de vida passa por condições gerais de vida, que são abertas a todos. Não há mais segurança privada. Condomínios de luxo estão atraindo a criminalidade sofisticada.

Estamos vivendo uma crise de modo de vida nas cidades. Temos de construir uma nova sociabilidade. É preciso não só ter ações de inclusão social, mas enfrentar um tema correlato, a coesão social.

O que significa coesão social?

Não teremos uma vida saudável, um modo de vida compatível com nossos direitos, nossas expectativas, em cidades muito desiguais. Temos de construir coesão, pois não há segurança possível se a cidade não universaliza padrões mínimos de convivência, alimentação... Não é possível conviver em situação de opulência e fome. Temos de ter patamares mínimos de qualidade para a maioria da população, caso contrário prevalecerá o conflito.

Até o momento estamos incluindo as pessoas (porque não passarão mais fome), mas elas precisam ter padrões mínimos que constituem cidadania, saúde, educação, lazer, moradia etc.

A cidade não é só infraestrutura urbana, não é só sistema viário, iluminação pública. É também paisagem. É possível ter uma cidade que induza positivamente a população porque tem paisagens agradáveis. Por exemplo, a Avenida Sumaré, na capital paulista, poderia ser retrabalhada, ganhar qualidade arquitetônica, urbanística, que não há, seja por causa de burocracias municipais, seja porque seus planejadores têm baixa capacidade para renovar o padrão urbanístico. Outro exemplo ainda são as calçadas paulistanas, produzidas com materiais inadequados. Até hoje uma cidade que abriga as maiores universidades e centros de pesquisa não resolveu essa questão. Reparem, as calçadas são um caos visual, não há padronização, ladrilho, pedra portuguesa etc. Ter cultura urbanística e arquitetônica é essencial ao governante do município.

E quanto ao papel das Câmaras Municipais, nesse contexto?

As Câmaras Municipais, principalmente as maiores, têm um sistema de representação inadequado, sob uma lógica que não ajuda a dar densidade ao caráter democrático de conduzir a cidade. É preciso ser mais clara a relação entre cidade, território e representação política. Existe empiricamente uma geopolítica da representação, mas não é organizada. São colégios eleitorais informais, que não estão sob nenhuma regra pública.

O senhor trabalhou muito na consolidação do chamado modo petista de governar, que nasceu nas cidades administradas pelo PT. Muitas dessas políticas foram inclusive adaptadas para o governo federal. Existe ainda um modo petista de governar?

O modo petista de governar foi uma postura muito positiva do PT, que sabia que teria de inovar a forma de governar em relação a um padrão preexistente. E isso me remete a uma questão maior. Trata-se de um processo que tem várias versões. A primeira teve início a partir de 1989 e agora está faltando a versão da segunda década do século 21.

Seus grandes enunciados: operar a inversão das prioridades dos governos municipais, que significava deslocar os investimentos para as áreas despossuídas da cidade; levar para a condução do governo a participação popular, por meio do orçamento participativo, para a alocação dos recursos; tornar a ação de governo mais transparente. Então, a partir do tripé inversão de prioridades, participação popular e transparência constituíam-se as políticas públicas de saúde, educação, agregando os movimentos sociais.

Depois, ampliamos o número de prefeituras petistas e passamos a governar também na esfera estadual e federal. O partido, seus quadros políticos, seus dirigentes e militantes tiveram a oportunidade de entender que inovar na condução do Estado brasileiro é entender a complexidade dessa equação. Durante séculos, o país foi conduzido por oligarquias, de forma patrimonialista, autoritária e promíscua entre o público e o privado.

Para se atualizar, o modo petista de governar terá de se entender como um esforço da sociedade brasileira de produzir um novo padrão de condução do Estado, que seja democrático, republicano, com efetividade administrativa e inovador.

Isso não existe hoje?

Estamos conseguindo um padrão democrático, mas é preciso consolidá-lo. O anacronismo no sistema político está prejudicando o redesenho da nova versão do modo petista de governar. Se não fizermos a reforma política, teremos dificuldades, porque o atual sistema está nos obrigando a fazer concessões e barganhas políticas, que desconstituem ao longo do tempo nosso projeto de transformação.

O senhor se refere às alianças que têm sido feitas para governar?

Temos um sistema político complicado. No nosso presidencialismo, o governo não é a expressão da maioria parlamentar e, mais ainda, quem se elege, com raras exceções, não tem essa maioria. Ou seja, as alianças que se fazem para eleger não garantem governar, sendo preciso fazer uma segunda aliança depois da eleição, sob barganha. É o que a literatura chama de presidencialismo de coalizão.

O Estado brasileiro vive uma tensão estrutural, o conflito entre esses dois padrões. Persiste em vários níveis de governo o padrão oligárquico, patrimonialista, autoritário, burocrático etc., convivendo com ensaios de condução democrática, republicana, de inovação e participação.

Conduzir o Estado é também reorganizar o próprio Estado. Na dinâmica mais geral do país, preocupa, por exemplo, o fato de que estamos ampliando as burocracias do Estado na lógica das corporações. Não podemos refazer ou redesenhar o modo petista de governar se, além da reforma política, não agregarmos a reforma do Estado.

Também temos de revisitar nossas políticas públicas que foram muito exitosas. A saúde, por exemplo, que em termos de relações intergovernamentais está mais ou menos arquitetada, é um grande desafio, e o ministro Padilha está muito atento a isso. Acompanhei o caso de um prefeito petista, médico sanitarista, que assumiu seu papel de gestor proporcionando à cidade um padrão consistente de atenção médica. Ao fim de seu mandato, ele percebeu que aquela oferta estava se desconstituindo porque, em um raio de cerca de cem municípios, todos compravam ambulâncias e levavam seus pacientes para  lá. Não havia uma articulação estratégica horizontal e, portanto, o comportamento de seus pares territoriais, seus vizinhos municipais, tornou inviável uma política que poderia ser exitosa.

Hoje o orçamento participativo tem menor potência. Os ensaios em nível regional, estadual e federal são incompletos. Seu conceito também significa a construção de consensos majoritários. O Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, constituído pelo presidente Lula, é um exemplo. Nele têm lugar interesses diferenciados e contraditórios da sociedade na busca de entendimentos básicos.

No caso de São Paulo, estou convencido de que a forma pela qual os governos municipais, estadual e federal estão enfrentando o tema da mobilidade urbana não aponta um caminho de resolução. Ou há uma repactuação entre os governos dos municípios da região metropolitana, do estado e federal, ou não teremos futuro.

Também deverá haver um consenso das esferas governamentais com o mundo do trabalho e o setor empresarial. Não vejo futuro se não for pactuado um fundo público destinado à mobilidade urbana na região metropolitana, pois, se for contar apenas com recursos orçamentários, será insuficiente. Nesse sentido, o modo petista de governar nos obriga a desenhar agendas e pactuar agendas.

O modo petista de governar na segunda década do século 21 terá de operar mais complexidades. Temos vivido muito sob uma lógica operacional, reativa a pressões, ante a urgência e a emergência. Quando somos governo, enfrentamos problemas maiores que o tempo do mandato. Mas, se não tomarmos a decisão de resolvê-los, nunca serão solucionados. E para isso precisamos constituir estadistas, ou seja, condutores do Estado.

O passado é memória, é referência, o desafio é o presente e o futuro, não é voltar aos bons tempos, mas sermos contemporâneos de nós mesmos.

Rose Spina é editora de Teoria e Debate